Botar seu bloco na rua é direito à cidade

A praça Castro Alves é do povo
como o céu é do avião
um frevo novo, eu peço um frevo novo
todo mundo na praça
e muita gente sem graça no salão
(Um Frevo Novo - Caetano Veloso)

Para Caetano, a verdadeira alegria está na apropriação da praça e não no salão. Mas esta interpretação da maior manifestação cultural brasileira não é unânime.

Quando o samba surgiu, entre as décadas de 1900 e 1910, o carnaval oficial do Rio de Janeiro acontecia na Avenida Central e era destinado à elite, seguindo os padrões da Belle Époque. Não era permitido aos negros, mulatos e pobres percorrerem as ruas centrais da cidade durante os dias de folia. O carnaval dos moradores das favelas, por sua vez, acontecia nos fundos de quintais, nos terreiros de santo, nas feijoadas organizadas pelas “Tias Baianas”. Era uma música de improviso, de desafio em rodas de samba. No entanto, a despeito das proibições, muitos moradores do morro e sambistas desafiavam a ordem vigente e saíam em blocos nas ruas centrais da cidade, o que lhes garantia muito prestígio em suas comunidades de origem.

Por volta dos anos 20, a favela começou a se consolidar como o espaço urbano do samba através das canções de Sinhô, que afirmava que o samba pertencia ao morro e a mais ninguém. Apesar de o samba não ter nascido no morro - e sim na Cidade Nova, onde hoje está localizado o Sambódromo - no imaginário carioca ali era o local consagrado como o “berço do samba”, responsável pela produção de alegria. Com o tempo, os sambistas começaram a organizar seus próprios blocos, o que atraiu atenção geral não só pela irreverência, mas também pela exuberância e valentia, experiências que não faziam parte do cotidiano da cidade àquela época. Estes blocos foram os precursores das Escolas de Samba e dos desfiles carnavalescos, contribuindo de modo decisivo para associação entre samba e morro. Na década de 30, os blocos se institucionalizaram e se ordenaram, ficando clara a separação entre Escolas de Samba e blocos carnavalescos.

Com o tempo, as Escolas de Samba passaram a se profissionalizar. Na década de 1960, assistiu-se a uma grande mudança nos desfiles das escolas de samba que começaram a ter a escala de um grande espetáculo. Os desfiles, que ainda aconteciam nas arquibancadas da Avenida Presidente Vargas, começaram a ser comercializados e a classe média passou a entrar nas Escolas de Samba, não mais como visitantes, mas como participantes das alas. Estas mudanças ocorreram também na gestão de algumas Escolas, que passaram a ser administradas por pessoas de fora dos morros. Os blocos carnavalescos, por sua vez, cada vez mais acolhiam os foliões que ainda viam o carnaval como o lugar do improviso, da ressignificação da vida cotidiana, da ocupação da cidade.

Em São Paulo a história do carnaval é muito semelhante. Enquanto os ricos senhores se reuniam em bailes exclusivos que simulavam os carnavais venezianos em salões de hotéis e teatros, os negros e os imigrantes, não tendo a possibilidade de importar fantasias, começaram a brincar o carnaval na rua. Inspirados pelas procissões, pastoris, afoxés e demais folguedos, deram origem a blocos carnavalescos e outras formas originais de desfrutar o carnaval. A impossibilidade de brincar nos salões fechados levou a população mais pobre à rua. Assim como no Rio, em São Paulo a rua acolheu a festa dos que não tinham um lugar fechado para se divertir.

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© Mídia Ninja

Ainda hoje, um século depois, os blocos carnavalescos reivindicam a rua para si na intenção de ocupar o espaço público com espontaneidade. O carnaval cresceu muito desde seus primórdios - este ano estima-se que o ​carnaval de São Paulo receberá cerca de 5 milhões de foliões, enquanto o Rio contará com 7 milhões de pessoas na rua​. Neste cenário, o Poder Público municipal busca formas de disciplinar a festa, estabelecendo regras e trajetos para os blocos. Nas duas cidades os blocos carnavalescos devem se cadastrar junto à Prefeitura, que determina trajetos, horários e normas de conduta. Recentemente a Prefeitura de São Paulo, atendendo a reclamações de moradores da Vila Madalena, determinou a mudança de trajeto de uma série de blocos para a Avenida 23 de Maio. Esta decisão de realocar o carnaval de rua para uma avenida isolada e "sem cidade" no entorno demonstra claramente uma visão sobre a necessidade do cerceamento da ocupação do espaço público que remonta aos primórdios do carnaval, quando apenas certos "tipos de pessoas" poderiam estar na rua e nos desfiles carnavalescos.

No ano passado, ​o bloco Fanfarra Clandestina teve seu desfile interrompido enquanto passava pela região conhecida como “buraco da minhoca”, túnel que liga a Rua Augusta ao Minhocão​. Balas de borracha, destruição de instrumentos e apreensão de uma das integrantes dispersaram os foliões. A justificativa da Polícia Militar de São Paulo foi que o bloco não emitiu aviso prévio e estava bloqueando a passagem da via. Será a falta de um cadastro motivo para violência policial contra pessoas que ocupam a rua com instrumentos musicais numa noite de sábado?

A visão da rua como lugar de passagem, ordem e silêncio não é endossada pela Constituição, que prevê que ​“todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” (Art. 5o, XVI). O “aviso prévio”, portanto, não significa pedir autorização, e sua ausência não configura motivo legítimo para repressão. A divulgação nas redes sociais, por exemplo, pode ser compreendida como uma notificação prévia.

A obstrução da via também não pode ser considerada um motivo legítimo para repressão. Afinal, o direito de ir e vir tem o mesmo peso legal do direito à liberdade de reunião, e do direito à liberdade de expressão. Cabe ao Estado a conciliação entre os dois direitos, e não a sobreposição de um pelo outro. Afinal, quando uma via se fecha, as pessoas podem se deslocar por diversos outros caminhos.

Mas o movimento secular de blocos que nasceram como insurgência às regras sociais, ocupando as ruas e as transformando no lugar de acolhida da folia promete continuar transgredindo o ​status quo​. Enquanto novas regras são criadas para disciplinar o carnaval, ​como a recente medida da Prefeitura do Rio de Janeiro que anunciou multa para os blocos não autorizados no carnaval desse ano​, mais grupos se reafirmam como ”livres e clandestinos", mantendo seus trajetos secretos e autônomos enquanto arrastam milhares de pessoas pelas ruas da cidade em uma apropriação espontânea que vai transformando a cidade com seu rastro brilhante de glitter.

A produção do espaço urbano é uma construção social e coletiva, e que expressa as desigualdades e opressões existentes na sociedade. A rua sempre foi um lugar de disputa na cidade. Por ser o lugar primordial do encontro, o espaço público é também o lugar do conflito. As diferentes visões sobre a cidade se manifestam na reivindicação pelo espaço público e na tentativa de soberania de um grupo social sobre outro. No carnaval não poderia ser diferente: a ocupação da rua com ”bagunceiros", com blocos de "pessoas diferentes", ou com "pessoas que não são daqui" costumam ser foco de reclamações em bairros de elite.

No entanto, as manifestações culturais que ocorrem nos espaços públicos, além de produzir alegria, têm um importante papel de subverter as lógicas de dominação e exclusão estruturantes desses lugares. O carnaval, além da produção de fantasias, dispersão ​de confetes, uso de milhares de quilos de glitter e muito divertimento, tem o papel político de ocupar a rua demonstrando a possibilidade de novas formas de apropriação e uso da cidade.

Pensando nisso, o Instituto Pólis produziu um material de Ocupação dos Espaços Públicos, com dicas e argumentos jurídicos que podem auxiliar blocos em casos de repressão e abordagem policial (veja ​aqui​). Afinal, se a rua não é livre, nós também não somos.

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© Vitor Nisida

Não é a toa que o carnaval é um momento de disputa. Além de ressignificar a forma de vivência dos lugares da cidade, o carnaval de rua proporciona o encontro da diferença e a convivência com a diversidade em um período em que a rua está cheia, ocupada com muitos olhares, proporcionando pouca oportunidade para rejeição deste ou daquele grupo de maneira agressiva. Todas as pessoas podem estar na rua igualmente, expressando seus modos de vida e suas convicções. O carnaval tem a capacidade de projetar as populações socialmente oprimidas para posições de visibilidade, o que dificilmente acontece em outras épocas do ano ​(PINTO, 2017)​. Apesar deste fenômeno ser efêmero, fortalece os grupos e suas lutas por direitos e pela possibilidade de ocupar a cidade e vivenciá-las de maneira livre.

A ressignificação do local cotidiano nos dias de carnaval também permite ao folião um outro olhar sobre a cidade. Produz uma nova ideia, um novo simbolismo sobre o uso e a função da cidade e do espaço público, mostra novas possibilidades de ocupação e apropriação da cidade. Quando o local exclusivo do carro passa a ser o local do pedestre, percebe-se que a cidade pode ser transformada, e deixa-se de naturalizar as práticas para poder questioná-las.

O carnaval também possibilita que se descubra diferentes cidades na cidade cotidiana. O ato de ir atrás dos blocos leva as pessoas a andarem por locais que não circulam no seu cotidiano. Muitas pessoas, por exemplo, só vão aos centros das grandes cidades brasileiras na época de carnaval e neste momento exploram versões desconhecidas das suas próprias cidades.

E não só os foliões têm diferentes apropriações da cidade nos dias de carnaval. "​Os mais antigos traziam as cadeiras para a rua para assistir a folia​" (BRANDA; SILVA, 2017, p.7) O carnaval transforma o significado da rua não apenas para os foliões, mas também para os moradores que passam a ter um espetáculo com pessoas fantasiadas cantando e dançando na porta da suas casas. A porta da casa, sempre fechada para separar o privado do público, se abre para a rua, tornando-se platéia de uma cidade que deixa de ser apenas o espaço da reprodução da vida e passa a ser também palco da existência da diversidade e manifestação do prazer.

Estas novas possibilidades de apropriação da rua vislumbradas durante o carnaval são muito importantes para criar novas concepções de vivência nos centros urbanos. Estes momentos experimentados durante as festas de rua contaminam a visão da população sobre a cidade, e passam a ser incorporados e reproduzidos na existência cotidiana. A demanda por mais espaços abertos às diferentes apropriações vai se multiplicando e exigindo novas políticas para os espaços públicos nas cidades. São Paulo, por exemplo, tem experimentado nos últimos anos uma mudança significativa na ocupação dos espaços públicos que ultrapassa os dias de carnaval. O carro passou a não ser mais o dono absoluto da rua - nos domingos várias ruas e avenidas passaram a ser exclusivas de pedestres e milhares de pessoas agora ocupam com diferentes usos o lugar destinado antes apenas aos veículos. Multiplicam-se também na cidade parklets,​ hortas urbanas e outros usos que vão mostrando que a cidade não é monolítica e tem possibilidades diferentes de convivência.

Assim como o glitter do carnaval que impregna os corpos dos foliões ao longo do ano, botar o bloco na rua é um ato político que transforma a cidade ao longo tempo, impregnando novos usos e possibilidades de convivência na vida cotidiana. Botar seu bloco na rua é Direito à Cidade!

Beatriz de Paula​ é jornalista no Instituto Pólis.
Danielle Klintowitz ​é urbanista e Coordenadora Geral do Instituto Pólis

Referências bibliográficas

Publicado originalnente em 20 de fevereiro de 2020, atualizado em 9 de fevereiro de 2023.

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Sobre este autor
Cita: Beatriz de Paula e Danielle Klintowitz. "Botar seu bloco na rua é direito à cidade" 13 Fev 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/934182/botar-seu-bloco-na-rua-e-direito-a-cidade> ISSN 0719-8906

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