Motéis / Hotéis - Entre estranhamentos e familiaridades

O estímulo visual que disparou a presente pesquisa[1] foi a insinuante ambiguidade da letra m/h. Menos glamorosos que os de beira de estrada, os motéis hotéis são um convite econômico para uma experiência de realização sexual. Para dar conta de sua complexidade tanto material como intangível, o trabalho se constrói como uma ficção. Assim, a narradora inventou nos motéis hotéis um potencial de revelar outras partes componentes dela própria ‑ como se estes lugares, por também serem ambíguos e incógnitos, permitissem este encontro. Num processo simultâneo de libertação e frustração, as múltiplas narradoras se agenciam.

Marcamos nosso encontro para as treze horas. Passados poucos minutos do horário combinado, desci no terminal rodoviário à procura da rua. Seguindo as placas, logo avistei o prédio.

Nervosa, atravessei a rua. Adentrei o túnel de grades e toldo grafite fumê abaulado que me levou para a recepção. No balcão, uma moça jovem de cabelos prateados e um rapaz de camisa polo vermelha me receberam com um olhar comum.

Ele me encaminhou para uma sala, cuja entrada era um portal estreito. Sentamos no sofá de couro preto. Pouco depois, ele me levou para um tipo de quarto, com ar condicionado. Entramos. Cores sóbrias, um quadro em cima da cama e uma cortina igualmente sóbria. Mas alguns aspectos me chamaram atenção: tijolos de vidro, pisos de azulejo imitando mármore, paredes cinzas-bege e uma luz branca. A cama, ainda no formato antigo, conta com uma meia dúzia de botões que controlam a tevê, a luz, o ar condicionado e o som. A TV está oposta à cama. A presença do ar condicionado ao invés do ventilador permite que exista um espelho no teto. Embaixo da tevê, outro espelho.

O motel tem quatro andares. A escada fica no meio do corredor, quatro quartos para um lado, quatro para o outro. Ao todo, trinta e dois quartos.

Podemos ser tomados por uma surpresa quando caminhamos na rua e passamos próximo a uma superfície espelhada de algum edifício. Um estranho momento em que uma das figuras mais familiares de todas - você - é flagrada por você mesma. O ato de se olhar no espelho nos coloca externas a nós, como se pudéssemos olhar de fora - em oposição ao ponto de vista de dentro.

Segui acompanhada. O neon vermelho seduz a entrada. À direita, duas portas. Apenas uma estava aberta. Desta vez, éramos duas. Subimos a estreita escada. Fomos barradas por uma grade, que nos forçou a acionar o botão.

Foi permitida nossa entrada, então continuamos a subir. Ao chegar na recepção, dou de cara com um espelho, que me impediu de entender de imediato onde estava e onde estaria a pessoa que eu estava procurando. Eu me vi, porém não a via.

Tijolos de vidro, outros materiais e objetos que poderiam estar no consultório de um dentista apareceram. Uma mão se estendeu pelo estreito buraco localizado na parte inferior do espelho, ao centro. Abaixei-me para facilitar a comunicação e fui recebida por um olhar desconfortável.

Seguimos para o quarto de número cento e quatro. O cheiro de cigarro fumado ocupava o ambiente. Sobre a cama estavam dois pacotes de toalhas, iluminadas pela luz que emanava da janela e era filtrada pelas cortinas roxas. Fechamos a porta.

Diferente da vista para o elevado, tínhamos vista para um fosso decadente, e para a janela do vizinho, na qual podíamos ver xampus e produtos que indicavam alguém que se hospedava no quarto por mais do que algumas horas.

Fiquei lá por duas horas. Não era possível pagar por menos. Durante esse tempo, olhei-me nos espelhos. Eles me enganavam o tempo todo, fazendo com que eu acreditasse que havia mais alguém ali. Com o passar do tempo, acomodei-me. Quase dormi. O som próximo do abrir e fechar das outras portas não me perturbava mais, pois agora eu já conseguia reconhecer de onde vinham. Sorri ao pensar que aquele lugar que há pouco me causava medo, agora me acolhe.

Alguns edifícios celebram o fato de não servirem a apenas um propósito. Seu caráter vedado atribui a eles a sensação de que preferimos esquecer certos elementos do nosso cotidiano. Obliterar nossos outros. São locais mergulhados em duplicidade. Seus corredores são espaços labirínticos, que possuem portas iguais. Os quartos possuem tudo para dois e duas: toalhas, chinelos, camisinhas, cinzeiros.

Conforme os frequentamos, também nos revelamos múltiplas. Da mesma forma, os edifícios demonstraram ser outros. Afetados simultaneamente por esse encontro, mirávamos nós a eles e eles a nós.

Como um anúncio de conforto e acolhimento, a portinha singela nos recebeu. Mal cabíamos na recepção. Começamos a explorar nossa relação com o ambiente. A claridade ácida do quarto me levou a apagar todas as luzes. Mesmo assim, a luz do corredor não permitia que fossemos deixadas numa luz agradável. Então apaguei-a também.

Fui até a escada. O quarto ficava no primeiro andar. Conforme pisei no primeiro degrau, senti ele se moldar no formato do meu pé. Quase caí. Cheguei à porta do quarto catorze e seu piso era completamente desnivelado, como se eu estivesse pisando em dunas de madeira acarpetadas. O piso me levou a descer. O quarto era todo disforme, como se alguém tivesse esquentado o prédio e ele amassou, igual um plástico.

O quarto branco e vazio - com exceção da cama redonda, uma tevê, um ventilador e ganchos na parede para pendurar roupas - me deixava brochada. Lentamente, fui o explorando. Deitei na cama, rolei de um canto ao outro. A luz que vinha da janela agora era quente e amena. Os vidros haviam sido cobertos com fita adesiva preta.

Fiz questão de percorrer os quatro cantos do quarto. Fui ao banheiro. O que mais me chamava a atenção nas paredes era uma dupla de azulejos que não estava ali. Sua ausência fazia gritar a diferença entre a impermeabilidade da cerâmica e a aspereza da massa corrida. Frustrada com a ausência de apelo estético, liguei a tevê. Um sussurro vindo do espelho me deixa mais animada. Numa piscada de olhos, voltei ao quarto branco.

Alguns dias depois, retornei com dinheiro. Passei novamente pelo processo de identificação. Paguei os trinta reais em seis notas de cinco. Ele pediu minha identidade e levou-a consigo para uma saleta. Voltou em breve e me retornou o documento. Geralmente, mantém o documento durante o período de estadia. Então, perguntei porque ele me devolveu-o tão rapidamente e ele me disse que só precisou anotar o número. Uma ponta de desconfiança se manifestou em mim, mas decidi seguir.

Subi as escadas e fui à procura do quarto de número nove. No meio da escada, um patamar é a porta de entrada do quarto sete. Subi mais três degraus e pude ver os quartos oito e nove à minha direita. Entrei no que era destinado a mim.

O quarto era coberto por estampas floridas e de cores vermelho-rosadas. Algumas partes da cabeceira da cama eram de couro na cor creme, costurado e abotoado. Em frente à cama, uma penteadeira. A janela dava para um fosso que estava bem iluminado. O piso de madeira estava entortado e gasto. Fechei a porta atrás de mim, mas não consegui trancá-la. Notei que as trancas da porta estavam estouradas, como se há pouco alguém as tivesse arrombado.

Após algumas tentativas, optei por descer e pedir outra chave ou quarto. Ele explicou que só tinha aquela cópia, então pedi para mudar de quarto. Enquanto mantínhamos esse diálogo, ele saía da saleta, cuja porta estava coberta por uma tela metálica furada. Ao sair, ele bateu os olhos no meu tripé. Emputecido, perguntou Que merda é essa? Não pode fazer filmagem aqui.

Começou a recolher as notas de cinco que eu havia lhe entregado e me olhou com repulsa. Percebi que aquela era minha quebra de contrato. Que não éramos mais bem-vindas ali. Algumas de nós não se desprenderiam das toscas paredes. Permanecerão lá, dentro de espelhos. Eu não havia imaginado que essa saída grosseira se daria ali, no prédio que faz divisa com a minha quase casa, onde a luz é azul e branca e a porta de entrada é estreita, indicada pela vigésima sétima letra do alfabeto português, o m/h.

Nota
[1]
Este artigo é um excerto do trabalho final de graduação Motéis/Hotéis, realizado na Escola da Cidade em 2017.

Referências
Cavalcanti, Lauro & Guimaraens, Dinah, Arquitetura dos Motéis Cariocas: espaço e organização social. Rio de Janeiro, Espaço, 1982.
Colomina, Beatriz, The Split Wall. Em: Sexuality and Space. Princeton Architectural Press, 1992.
Freud, Sigmund. O Inquietante em Obras Completas, vol XIV. Companhia das Letras. São Paulo, 2010.
Kafka, Franz. A Metamorfose. Companhia das Letras. São Paulo, 1997
Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2009.
Mulvey, Laura. Topographies of Mask and Curiosity. Em: Sexuality and Space.Princeton Architectural Press, 1992.
Preciado, Beatriz, Pornotopía: Arquitectura y Sexualidad en “Playboy” durante la guerra fría. Editorial Anagrama. Barcelona, 2010.
Sontag, Susan, On Photography. Penguin Classics. Nova Iorque, 2002.
Stevenson, Robert Louis. O médico e o Monstro. Editora Paz e Terra. São Paulo.
Vidler, Anthony. The Architectural Uncanny. The MIT Press. Cambridge, Massachussets. 1992.

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Sobre este autor
Cita: Marian Rosa van Bodegraven. "Motéis / Hotéis - Entre estranhamentos e familiaridades" 28 Ago 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/923708/moteis-hoteis-entre-estranhamentos-e-familiaridades> ISSN 0719-8906

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