As mulheres esquecidas da Bauhaus

Quando Walter Gropius criou sua famosa escola de design e artes em 1919, Bauhaus, ele a criou como um lugar aberto a "qualquer pessoa de boa reputação, independentemente da idade ou do sexo". Um espaço onde não haveria “diferença entre o sexo belo e o sexo forte".

A ideia deflagrava uma sociedade na qual a mulher pedia para entrar em espaços que anteriormente lhe haviam sido vetados. Se a educação artística que as mulheres então recebiam era transmitida dentro da intimidade de suas casas, na escola de Gropius elas foram bem-vindas e seu registro aceito. Tanto que o número de mulheres que se matricularam foi maior que o dos homens.

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Walter Gropius © via Wikimedia Licença Public Domain. Image

No entanto, as próprias palavras de Gropius já anunciaram que a igualdade de gênero dentro da escola não seria tão real quanto ele pretendia. Desta forma, a arquitetura, a pintura e a escultura foram reservadas para o "sexo forte", enquanto o "sexo belo" foi restringido a outras disciplinas que não eram, na opinião do fundador, tão físicas.

Por quê? Porque de acordo com Walter Gropius, as mulheres não eram fisicamente e geneticamente qualificadas para certas artes já que pensavam em duas dimensões, em comparação com os parceiros masculinos, que poderiam fazê-lo em três.

Dessa maneira, foram os homens da Bauhaus que entraram na história. Figuras como Paul Klee, Wassily Kandinsky, László Moholy-Nagy e Ludwig Mies van der Rohe, enquanto suas colegas foram esquecidas ou, na melhor das hipóteses, reconhecidas como "as esposas de".

Esta masculinização da Bauhaus tornou-se mais evidente durante o período em que Mies van der Rohe foi seu diretor, em torno de 1930, e seus ensinamentos foram orientados principalmente para a arquitetura, formação para a qual elas não eram convidadas.

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Poltrona Barcelona © Vicens via Wikimedia Licença CC BY-SA 2.5. Image

Entretanto Lilly Reich não aceitou isso. Designer e arquiteta alemã, Reich foi uma colaboradora próxima de Mies van der Rohe, com quem foi associada por mais de 12 anos até o arquiteto se mudasse para os EUA. Reich nunca estudou arquitetura, mas a praticou, assim como o fez com outras disciplinas artísticas, como por exemplo o design. De fato foi nesse campo, no design industrial e na moda, que Reich começou sua carreira.

Mies van der Rohe e ela trabalharam juntos em distintos projetos, como um prédio de apartamentos para a exposição Deutscher Werkbund, o café de seda e veludo da exposição de moda feminina de Berlim e o pavilhão alemão para a Exposição Internacional de Barcelona de 1929. Ela também participou de duas grandes obras do arquiteto da Bauhaus: a casa Tugendhat e a casa Lange.

Quando foi nomeado diretor da Bauhaus, Mies van der Rohe convidou Reich para dar uma oficina na Escola de Dessau e a nomeou diretora do atelier de design de interiores e têxteis, cargo que ocupou na Bauhaus em Dessau e em Berlim. Reich tornou-se assim uma das poucas professoras que tal escola viria a ter.

A colaboração entre ela a Mies terminou quando este emigrou para os EUA em 1937. Lilly Reich tomaria, a partir de então, conta do escritório, dos negócios e até da família do arquiteto. A última colaboração entre eles foi em 1939, quando Reich viajou para os EUA para participar com seu antigo parceiro do projeto ITT, em Chicago. A designer e arquiteta pretendia se estabelecer por lá, mas Mies não achou que fosse uma boa ideia e ela então voltou para a Alemanha viver o pior da Segunda Guerra Mundial.

Eles nunca se viriam novamente, embora tenham trocado correspondências até o fim dos dias. Após a guerra, Lilly Reich ensinou concepção de interiores e teoria da construção na Universidade de Berlim e reabriu seu escritório de design e arquitetura onde trabalhou até sua morte em 1947.

De acordo com Albert Pfeiffer, vice-presidente de design e direção da empresa de móveis Knoll e pesquisador da figura de Lilly Reich, não parece casual que o sucesso do famoso arquiteto esteja intimamente relacionado com o período em que durou sua relação pessoal com Reich.

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Gunta Stolz © Sascha Wagner via Wikimedia Licença Public Domain. Image

"E mais do que uma coincidência que o envolvimento e sucesso de Mies na concepçãode exposições começam ao mesmo tempo do seu relacionamento pessoal com Reich. É interessante notar que Mies não desenvolveu nenhum mobiliário moderno com sucesso antes ou depois da sua colaboração com o ela. Porque duas das cadeiras mais famosas do mundo são obras de Reich: a cadeira Barcelona e a cadeira Brno.

Reich não foi o único docente não-masculino da Bauhaus. Também exerceram ali Gunta Stölzl, Anni Albers, Otti Berger, Marianne Brandt e Karla Grosch. Mas ao contrário de Reich, todas elas foram ex-alunas da escola.

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Cadeira com tapeçaria Gunta Stolzl © Sailko via Wikimedia Licença CC BY-SA 3.0. Image

Gunta Stölz foi a única de todas elas a passar por todas etapas de formação da Bauhaus: aluna, professora, mestre de atelier e diretora do atelier de têxtil. Enquanto algumas disciplinas como arquitetura, escultura e design industrial estavam reservadas para os homens, a cerâmica e a tecelagem eram exclusivas para as mulheres.

Esta foi a estratégia de Gropius para parar a avalanche de matriculas femininas em sua escola. Sem saber disso, ele estava reforçando com grandes artistas femininas um atelier que ao final, adquiriria grande força e presença dentro da Bauhaus, vindo a ser inclusive um de seus mais emblemáticos.

Stölz era uma mulher de caráter demonstrando que o “sexo belo”, conforme definido por Gropius, também poderia fazer uma carreira na Bauhaus. Entre outros projetos, ela projetou o estofamento de móveis que Marcel Breuer criou na escola em Dessau. Casada com um arquiteto judeu que havia conhecido na escola, Stölz terminou por abandonar seu cargo na época em que o nazismo estava se tornando cada vez mais forte e por conta das pressões que sofria por vários estudantes de extrema direita. Abandonado a Bauhaus, Stölz se mudou para a Suíça, onde continuou sua carreira como designer têxtil, montando seu próprio escritório.

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Anni Albers © Gobonobo via Wikimedia Licença Fair Use. Image

Contudo quem levaria o tear e o design têxtil para o alto padrão, seria Anni Albers. Como muitas outras, Albers entrou na Bauhaus com a intenção de estudar pintura, mas a política da escola apenas lhe permitiu entrar no atelier de têxteis. Naquele momento, o treinamento dado as alunas era fundamentalmente prático, então Albers pode demonstrar sua primorosa capacidade de tecer. Tanto que ela criou um tecido insonorizado, reflexivo e lavável (feito principalmente de algodão e celofane) especificamente para um auditório musical. Esse foi seu trabalho final de graduação.

A pintura não deixou de estar presente em seu trabalho têxtil. Ainda que ela não tivesse tido permissão para mostrar sua arte em uma tela, Albers transformou em pinturas seus tecidos e tapeçarias (que ela chamava “cortinas”). Os tecidos pictóricos são suas obras mais conhecidas, onde a arte abstrata teve grande influencia, assim como havia tido para grandes figuras da Bauhaus, tais como Kandinsky, ou aquele que viria a ser seu marido, o pintor Josef Albers. Mas acima de tudo, Albers foi influenciada pela pintura de Paul Klee, seu professor na escola, cujo estilo ela tratava de refletir sobre seus tecidos. "Eu assisti o que ele fez com uma linha, um ponto ou um golpe de escova, e tentei até certo ponto encontrar minha própria direção através do meu próprio material e da minha própria disciplina artística", explicou a artista em uma entrevista em 1968.

Anni Albers assim descreveu a filosofia da Bauhaus: "O que foi mais emocionante sobre a Bauhaus foi que não havia sistema de ensino. E você sentia como se tudo dependesse apenas de você. Cada um tinha que encontrar sua maneira de trabalhar de alguma forma. Essa liberdade é provavelmente algo essencial que cada aluno deve experimentar.” A tecelã Albers e seu marido viajaram por toda Europa. Especialmente quando o partido nazista fechou a Bauhaus em 1933 por considerar a escola um ninho de comunistas liberais e subversivos. No mesmo ano, eles viajaram para os EUA, aceitando o convite de Philip Johnson, arquiteto e curador do MoMA de Nova York, para se tornarem professores na recém-inaugurada escola experimental Black Mountain College, na Carolina do Norte. Foi na América onde Albers encontrou espaço para continuar experimentando livremente. E foi alí que começou a desenhar tecidos para empresas como Knoll e Rosenthal. Já estabelecidos nos Estados Unidos, o casal Albers continuou viajando pelo México e América do Sul. O resultado dessas viagens é a influência dos motivos pré-colombianos que são mostrados em algumas de suas tapeçarias e tecidos. Ela ficou tão imersa nas técnicas e desenhos dessas culturas que acabou publicando suas pesquisas e teorias em um livro de 1965 intitulado On Weaving. Albers continuou trabalhando em seus projetos e técnicas de impressão até sua morte em 1994. Ela foi a primeira artista feminina têxtil a ter uma exposição individual de seu trabalho no MoMA em Nova York.

Da mesma maneira como Lilly Reich havia conseguido trabalhar como arquiteta apesar de seu sexo, Marianne Brandt conseguiu abrir espaço em outra disciplina reservada apenas para os homens: o metal. Brandt era muitas coisas: pintora, escultora, designer industrial e no final de sua vida, fotógrafa. Começou seus estudos em pintura e escultura na Escola de Belas Artes de Weimar, mas a grande decisão de sua vida foi entrar na Bauhaus. Inicialmente, tendo sido negada no atelier de pintura, Brandt trabalhou no atelier de têxteis sob Gunta Stölz. Mas ela não parou até que conseguisse ter seu espaço no atelier de metal, que era dirigida pelo fotógrafo e pintor húngaro László Moholy-Nagy, quem ela viria a substituir como diretora em 1928. Moholy-Nagy havia ficado impressionado pelo trabalho de Brandt e não hesitou em aceitá-la em seu atelier, apesar da relutância de muitos.

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Marianne Brandt © Mteuchert via Wikimedia Licença CC BY-SA 3.0. Image

Contudo a vida de Brandt não foi fácil na Bauhaus: que uma mulher dirigisse um atelier reservado para homens e que seu trabalho fosse muito melhor do que o da maioria de seus colegas masculinos, não caía nada bem em uma escola dominada por homens. Brandt não durou muito tempo no cargo e teve que deixa-lo apenas um ano depois de assumi-lo. Até então, Marianne Brandt já havia projetado alguns dos objetos mais comuns do mundo. Em todos os seus projetos, a influencia estilística da Bauhaus é evidente, como o uso de formas livres. Brandt optou pelo triângulo, o cilindro e a esfera, que podem ser apreciados em seu famoso conjunto de café MT50-55a (1924), nos seus cinzeiros, no seu mítico bule MT49 e na super conhecida luminária Kandem 702.

Depois de partir da Bauhaus, Brandt começou a trabalhar no escritório de Walter Gropius por um tempo. Após a Segunda Guerra Mundial, a designer dedicou-se ao ensino na Faculdade de Artes de Dresden. No final de sua vida, nos anos 70, Marianne Brandt recuperou sua faceta como fotógrafa. Não foi a primeira vez que abordou esta arte, já na sua juventude ela havia focado sua objetiva nas mulheres dentro e fora da Bauhaus. Além disso, Brandt é considerada como uma das pioneiros no uso da fotografia para retratar naturezas mortas e seus auto-retratos são igualmente notórios e tiveram abordagens muito diferentes e inovadoras.

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Ceiling lamp HMB 29 Marianne Brandt © Kai 'Oswald' Seidler via Flickr Licença CC BY 2.0. Image

Estes são apenas três ótimos exemplos do papel proeminente desempenhado pelas mulheres dentro da Bauhaus. Outras grandes artistas ficaram fora deste artigo, como Otti Berger, designer têxtil de grande fama graças à sua loja em Berlim Atelier for Textiles. Berger morreu em Auschwitz, esquecida por todos. Ou a ceramista Marguerite Friedlaender-Wildenhain, quem conquistou fama nos EUA graças à sua cerâmica Pond Hall. Ou a designer de brinquedos Alma Siedhoff-Buscher.

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Chaleira 1924 Marianne Brandt © johnwilliamsphd via Flickra> Licença CC BY-NC-SA 2.0. Image

De todas elas, Ulrike Müller fala em seu livro Bauhaus Women. Elas tiveram a audácia de querer provar seu valor em um momento histórico onde os homens eram o centro de tudo e as mulheres estavam relegadas para casa e família. Elas foram expulsas da pintura e da escultura, embora muitas tivessem demonstrado grande talento para essas artes. Os homens pensavam que se as relegavam ao tear, de certa forma seu desejo artístico estaria ali satisfeito e, mais importante, devolvido ao lugar na sociedade separado para ela. Entretanto, estas artistas se tornaram pioneiras de algo tão apreciado hoje em dia como o design e aprenderam a imprimir sobre os objetos do universo doméstico e feminino todo o talento artístico que não tinham permissão de capturar em tela, argila e metal.

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Chaleira 1924 Marianne Brandt © William Cromar via Flickr Licença CC BY-NC-SA 2.0. Image

Gunta Stölz uma vez disse: "Queríamos criar coisas vivas com relevância contemporânea, apropriadas para um novo estilo de vida. Diante de nós, havia um enorme potencial de experimentação. Era essencial definir o nosso mundo imaginário, moldar nossas experiências através de material, ritmo, proporção, cor e forma ". E elas conseguiram, embora a história as tenha relegado ao esquecimento.

Publicado originalmente no Yorokubu, em 25 de janeiro de 2018, com o título de "Las mujeres olvidadas de la Bauhaus". A tradução brasileira foi feita por Leandro Peredo, arquiteto formado pela Universidade de Brasilia. Peredo tem experiência em agencias de arquitetura com projetos de restauração e em cooperação internacional com a gestão do patrimônio cultural.

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Sobre este autor
Cita: Mariángeles García. "As mulheres esquecidas da Bauhaus" 06 Dez 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/890329/as-mulheres-esquecidas-da-bauhaus> ISSN 0719-8906

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