Urbanismo e gênero: criação de percursos em Buenos Aires que refletem a vida das mulheres

A Carta Europeia de Garantia dos Direitos Humanos na Cidade (Saint-Denis, 2000) estabelece a vontade de integrar o vínculo social de forma duradoura no espaço público partindo do princípio da igualdade, destinado a incrementar a consciência cidadã de todos os seus habitantes.

Neste contexto, as 146 organizações da sociedade civil que integram o Conselho de Planejamento Estratégico da Cidade de Buenos Aires acabam de aprovar uma nova iniciativa legislativa destinada a criação de itinerários turísticos, culturais e educativos que refletem a vida das mulheres e sua importância na história social e política.

Esta iniciativa, que impulsionou o Trabalho de Gênero integrante do Conselho, propõe incorporar a história das mulheres à narrativa urbana através de marcos públicos incorporados no espaço urbano (monumentos, nomes de ruas, calçadas, etc.) como aqueles que conformam o patrimônio tangível e intangível da cidade e que contribuem para a memória coletiva local.

O projeto aborda uma expressão simbólica que consolida um espaço urbano mais igualitário e inclusivo com marcos compostos por relatos, vozes e imagens em uma sequência narrativa com perspectiva de gênero. Trata-se de recuperar aquelas mulheres que, como agentes de mudança através do tempo, foram protagonistas dos mais significativos movimentos sociais, políticos e culturais.

Mulheres que fizeram história

Estes itinerários constituíram rotas temáticas que colocam em valor este patrimônio cultural promovido por mulheres na criação de espaços de solidariedade, de fortalecimento da cidadania e da recuperação coletiva da história dos bairros. Os principais objetivos são:

  • Incorporar e dar visibilidade à história das mulheres na narrativa urbana a partir de uma perspectiva de gênero, contribuindo para valorização, preservação e difusão do patrimônio cultural, material e imaterial
  • Promover ações que articulem setores de cultura, de educação e de turismo com a participação ativa da população no resgate, na preservação e na valorização do patrimônio.
  • Contribuir para a construção de uma cidade mais segura, igualitária e inclusiva, ao dotar, através dos itinerários, de densidade e qualidade os espaços públicos (ruas, parques, calçadas).
  • Promover iniciativas nos bairros populares que tendem a fortalecer o sentido de pertencimento local, a coesão social e o papel das mulheres como verdadeiras protagonistas locais da mudança.

O circuito oferece uma sequência narrativa que vincula diferentes marcos urbanos, físicos e simbólicos: 1) Fonte das Nereidas; 2) Marcos Urbanos de Puerto Madero; 3) Parque das Mulheres Argentinas; 4) Ponte da Mulher; 5) Monumento a General Juana Azurduy; 6) Plaza de Mayo e Pirâmide de Mayo; 7) Salão Eva Perón da Legislatura da Cidade de Buenos Aires; 8) Casa de Alicia Moreau de Justo; 9) Edifício Gath & Chaves; 10) Convento das Catalinas; 11) Casa Natal de Victoria Ocampo; 12) Edifício Harrod´s; 13) Edifício Kavanagh; y 14) Museu da Imigração.

De Puerto Madero à Plaza de Mayo

Fonte das Nereidas

O percurso começa na Fonte de Nereidas (1903), na parte sul da cidade de Buenos Aires. Trata-se de uma magnifica obra da escultora Lola Mora, pioneira no país. Ela inspira-se na mitologia clássica, com figuras nuas que representam as filhas do deus Nero e da deusa Vênus.

Ele continua pelo bairro de Puerto Madero, com a nominação das suas ruas que recupera as mulheres de origens sociais e nacionalidades diversas, que tiveram em comum sua luta pela igualdade e a liberdade, tal como: Alicia Moreau de Justo 1885-1986), Juana Manso (1819-1875), Encarnación Ezcurra (1795-1838), Camila O’ Gorman (1828-1848), Azucena Villaflor (1924-1977), Victoria Ocampo (1890-1979), Olga Cossettini (1898-1987), Martha Lynch (1929-1985), Macacha Güemes (1787-1866), entre outras.

No próprio Puerto Madero percorre-se o brilhante Parque das Mulheres Argentinas, cuja geometria irregular simboliza a identidade comum e a diversidade das mulheres. E também, a Ponte da Mulher, situada sobre o Dique 3, que é um ícone urbano projetado por Santiago de Calatrava, em 2001, para tornar visíveis aquelas mulheres que fizeram história.

Outro marco incluso no roteiro é o recém inaugurado Monumento a Juana Azurduy na Plaza Colón, atrás da Casa Rosada, que foi a protagonista das lutas para a independência dos países da América do Sul. Na mítica Plaza de Mayo, está a Pirâmide de Mayo que, além de abrigar a memória coletiva, foi o eixo ao redor do qual “Mães e Avós da Praça de Maio” resignificaram durante a última ditadura militar (1976-1983) os desejos de liberdade de 1810 no silencioso grito pela “memória, verdade e justiça”.

A poucos metros dali, está a Assembleia Legislativa da Cidade de Buenos Aires onde Eva Duarte de Perón “Evita” (1919-1952) estabeleceu seu escritório de trabalho como Presidenta da Fundação Eva Perón, e foi onde conseguiu a sanção da Lei de Sufrágio feminino e apresentou uma ampla ação que visava os setores mais pobres da população.

Varanda do gabinete de Eva Peron

Do Microcentro à Plaza San Martín

No torno da Plaza de Mayo encontra-se a tradicional rua pedonal Florida, que no final do século XIX recebeu as grandes lojas de Buenos Aires, como as galerias Gath & Chaves e Harrod´s, cuja arquitetura era similar a das galerias parisienses e londrinas. A cidade gerava novas demandas domesticas de trabalho de mão-de-obra feminina, em uma escala de prestigio ascendente que envolvia desde empregadas domesticas a construtoras, telefonistas, vendedoras, administradoras e professoras. Estas lojas concentraram o trabalho assalariado feminino com a incorporação de “vendedoras”, que envolvia um grande avanço social em relação às costureiras.

Alicia Moreau de Justo (1885-1986) foi uma figura importante do feminismo e do socialismo argentino, cujos ideais manteve durante toda sua vida. Foi uma ferrenha defensora dos direitos humanos e da dignidade cidadã. Sua casa, situada em pleno Microcentro portenho, na rua San Martín (entre Tucumán e Lavalle), forma parte central do itinerário proposto.

Muito próximo dali está o Convento das Catalinas, na rua San Martín, 705, que abrigou o primeiro monastério de monjas de clausura de Buenos Aires (1745) sob a invocação de Catalina de Siena, doutora da Igreja e peça chave como conselheira e mediadora, na complexa realidade italiana do século XIV, trabalhando pela paz e unidade da Igreja e desta com os Estados.

Também no Microcentro está a casa de Victoria Ocampo (1890-1979) escritora, jornalista, editora e protagonista dos movimentos feministas, intelectuais e antifascistas da Argentina e da Europa. Em sua intensa trajetória, fundou a revista Sur, uma publicação vanguardista que foi considerada peça literária destacada na cultura mundial do século XX.

Itinerários com perspectiva de gênero

Edifício Kavanagh

O circuito se encerra no Edifício Kavanagh (1936), situado sobre a Plaza San Martín. Talvez seja esta uma das obras de arquitetura mais significativas da cidade. Foi o primeiro edifício totalmente construído em concreto armado e conta com condicionadores de ar central nos seus apartamentos. Como residência predileta de uma burguesa portenha ascendente, a obra foi produto do empenho e da fortuna de Corina Kavanagh, e hoje é considerada pela UNESCO Patrimônio Mundial da Arquitetura.

Desde o Conselho de Planeamento Estratégico da Cidade de Buenos Aires se desenha uma cidade mais criativa e inovadora através da adoção de espaços sensíveis e de socialização orientados a reduzir as assimetrias de gênero e recuperar o papel das mulheres no patrimônio histórico e cultural local.

Em consequência disso, através destes itinerários didáticos fomenta-se a participação cidadã em ações concretas que tornam visíveis novas referências da história social das protagonistas mulheres como agentes de mudança em favor de uma cidade mais igualitária e inclusiva.

Nota: O autor é Diretor Executivo do Conselho de Planejamento Estratégico da Cidade de Buenos Aires. A Subsecretária da Unidade de Coordenação é Silvana Giudici. Além disso, os representantes das 146 organizações civis que integram o Plano elegeram (democraticamente e com designação honorífica) para o período 2015-2017 como Vice-presidente a José Clavería; como Vice-presidente Adjunto a Luis María Peña.

Via Plataforma Urbana.

Sobre este autor
Cita: Guillermo Tella. "Urbanismo e gênero: criação de percursos em Buenos Aires que refletem a vida das mulheres" 30 Ago 2015. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/772615/urbanismo-e-genero-criacao-de-percursos-em-buenos-aires-que-refletem-a-vida-das-mulheres> ISSN 0719-8906

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