Buraco do Lume no Rio de Janeiro: entre resgates, apagamentos e ameaças

A aprovação do polêmico projeto de legislação apelidado como “Lei do Puxadinho” em meados de 2020, flexibilizando parâmetros urbanísticos na cidade do Rio de Janeiro, suscitou uma série de discussões em vários setores da sociedade, mas sobretudo entre arquitetos e urbanistas, entre os quais muitos têm se manifestado de forma crítica à proposta. O debate, entretanto, se tornou ainda mais intenso quando, sob os auspícios dessa lei, uma emenda foi publicada de surpresa no texto enviado ao Diário Oficial, derrubando por período determinado várias restrições que incidem sobre o terreno do Buraco do Lume, contíguo à Praça oficialmente denominada Mário Lago, importante local manifestações políticas da cidade tombado pelo Município em 1989 e pelo Governo do Estadual em 2019.

Esta não é a primeira polêmica que se construiu em relação à Praça. O espaço de quando em quando se torna palco de intrincadas disputas que se estenderam durante o século XX. Diante das novas ameaças à vocação do lugar, faz-se necessário compreender os fatores e agentes que transformaram esse importante espaço público em importante e representativo local carioca.

Apagamentos e litígios

Até o final do Século XIX, não existia Praça. Sobre o local erguia-se o Morro do Castelo, considerado, após o Morro Cara de Cão, o núcleo de fundação da cidade estabelecida pelos portugueses. Durante a gestão Pereira Passos, com a abertura da Avenida Central, parte das franjas da elevação foram desfeitas para possibilitar a implantação dos novos quarteirões idealizados durante o Bota-Abaixo (imagem 1). Essa foi a primeira ação de modificação de morfologia que afeitou de forma significativa o tecido colonial na região.

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Imagem 1: Abertura da Avenida Central no início do Século XX. Imagem do autor.

Já na década de 1920, no governo de Carlos Sampaio, visando as comemorações do Centenário da Independência, foi efetivada a maior parte do desmonte do Morro do Castelo. Visto como símbolo do atraso, impeditivo da boa circulação de ar, um “dente cariado” na Baía de Guanabara e abrigando população pobre na Área Central, o monte foi destruído por método hidráulico, dando lugar ao que deveria ser uma grande esplanada em pleno coração da Cidade. No entanto, após o fim do ano do Bicentenário, a Administração Municipal, afundada em dívidas, não levou a cabo a urbanização da área, de modo que após 1922 restou uma área vazia de grandes proporções no Centro, por vezes apelidada pela população de “capinzal” [1].

A urbanização dessa parte da cidade só encontraria novo fôlego com a contratação do urbanista francês Alfred Agache, que em 1930 completaria o projeto que foi apelidado de Plano Agache. Durante a sua elaboração, por recomendação da equipe técnica foi aprovado o Projeto de Alinhamento 1805 (imagem 2), promulgado em 1928. A proposta previu, nesta área de difícil leitura entre o vazio do Morro e o tecido colonial, a criação da Avenida Nilo Peçanha, Avenida Graça Aranha e Rua Erasmo Braga, de modo que a forma poligonal que se observa hoje no Buraco do Lume foi lançada. A Revolução de 1930, entretanto, marcou descontinuidades políticas que afetaram a implementação do Plano Agache, de modo que mais uma vez a região conservou uma miríade de recortes de tecidos e morfologias.

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Imagem 2: Projeto de Alinhamento 1805, de 1928. Imagem do autor sobre original disponível no site da Secretaria de Urbanismo RJ.

Foi apenas em 1937, com a Comissão do Plano da Cidade, que foi elaborada nova proposta, a qual foi ratificada pelo Projeto de Alinhamento 3.085 (imagem 3). Nela, foi efetivada abertura Avenida Nilo Peçanha, então paralisada, e propostas torres que pouco conversavam com as construções existentes. Por mais que também esse projeto tenha sido levado a cabo de forma fragmentada, nos anos subsequentes se realizaram as demolições de grande parte do casario ali existente, remanescente da ocupação da franja do Morro do Castelo (imagens 9 a 12).

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Imagem 10: Área em 1940. Fonte: Museu Aeroespacial, referência NC073, com intervenção do autor.
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Imagem 12: Área em 1958. Fonte: IBGE, referência RJ17067, com intervenção do autor.

A região, com a mudança do arruamento, se consolidou como um ponto de importante de confluência de logradouros na cidade, cuja configuração, não obstante, era embaraçada. Assim, quase duas décadas depois, foi chancelado o Projeto de Alinhamento 6.739, de 1956 (imagem 4), indicando a criação de um terminal de ônibus. A vigência da normativa foi curta, e se sucederam mais duas propostas: em 1961 foi aprovado o Projeto de Alinhamento, o 7.817 (imagem 5), que buscava melhor compatibilizar o terminal com o tecido existente, e em 1965 foi promulgado o Projeto de Alinhamento 8.264 (imagem 6), que contava com uma praça ajardinada e uma garagem subterrânea.

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Imagem 4: Projeto de Alinhamento 6739, de 1956. Imagem do autor sobre original disponível no site da Secretaria de Urbanismo RJ.

Com a construção do Terminal Menezes Cortes no entorno imediato, em 1970, no âmbito do Projeto de Alinhamento 8.903 o local ganha os contornos que permanecem atualmente (imagem 7). Nele, pode-se observar a formação de um quarteirão triangular e um lote correspondente, cuja ocupação estava condicionada à utilização de apenas parte de sua área útil e doação do restante ao Estado para implantação de praça ajardinada. Seria então permitida a construção de 36 pavimentos. Tal disposição foi ligeiramente alterada pelo Projeto de Alinhamento 9.369, de 1974 (imagem 8).

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Imagem 7: Projeto de Alinhamento 8903, de 1970. Imagem do autor sobre original disponível no site da Secretaria de Urbanismo RJ.

O Buraco e o Grupo Lume

O terreno estabelecido pelo Projeto de Alinhamento 9.369 tornou-se parte do canteiro das obras do Edifício BANERJ e, após sua conclusão, estacionamento clandestino [2]. Durante a década de 1960, passa para a propriedade do Banco do Estado da Guanabara (BEG), o qual posteriormente o vendeu para o Grupo Lume, do empresário Lynaldo Alfredo Uchoa de Medeiros Júnior, que se associou ao grupo paulista Halles para efetivar a transação [3]. Na parte edificável do terreno, foram iniciadas as fundações de uma edificação que teria 55 andares [4]. Nesse ínterim, foi executada na parte livre uma praça, denominada Melvin Jones, atualmente Mário Lago, de interessante paisagismo caracterizado por uma passarela sobre um lago (imagem 14).

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Imagem 14: Área em 1984. Em vermelho, o canteiro abandonado já aterrado; em verde, espaço público. Fonte: Aerofoto do Instituto Pereira Passos, com intervenção do autor.

Ocorre que ainda na década de 1970 o Grupo Lume deixou de honrar as parcelas da compra do lote, as obras foram paralisadas e o Banco do Estado da Guanabara assumiu o Grupo Halle, que também não tinha recursos para suprimir as dívidas do Grupo Lume, de modo que ironicamente se tornou tanto credor – em função da venda do terreno – quanto devedor, uma vez que o Estado assumiu a empresa que esteva devendo ao BEG [5]. Tal situação, não obstante, foi questionada legalmente pelo próprio Lume na justiça, que reivindicava a sua propriedade. As obras foram paralisadas, e o canteiro, abandonado, passou a encher-se d’água (imagem 13), tornando-se criadouro de mosquitos e ratos. Assim, a antiga área edificável passou a ser conhecida como “Buraco do Lume”.

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Imagem 13: Área em 1975. Em vermelho, o canteiro abandonado com acúmulo de água; em verde, espaço público. Fonte: Aerofoto do Instituto Pereira Passos, com intervenção do autor.

A situação no local tornou-se tão insalubre que Marcos Tamoyo, então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, iniciou demanda judicial para multar a Contal, empresa que fora responsável pela construção, por não nivelar o terreno [6]. Foi aventada também a possibilidade de construção de um jardim provisório contíguo à praça existente, mas o Banco Central, na qualidade de liquidante, se opôs tanto à multa quanto ao jardim [7]. No final das contas, foi feito um aterro por parte da prefeitura, sem prejuízo à futura decisão da justiça em relação à propriedade do terreno [8].

O antigo Buraco, agora aterrado, foi sendo apropriado pela população, que o entendeu de forma espontânea como continuidade natural da Praça Melvin Jones. Nela, ocorriam desde peladas9 até partidas de golfe [10].

Na década de 1980, foi efetuado um acordo judicial no qual o Grupo Lume era reconhecido como proprietário do terreno [11]. Tal decisão incitou grande insatisfação entre a população, que protestou durante do ano de 1986 - inclusive sob ameaça da polícia – com cartazes nos quais lia-se “Estou ameaçada de morte. Defenda-me” [12], e acampou no local [13].

Tombamentos e ameaças

Todo esse contexto de descontentamento gerou movimentação por parte da Prefeitura no sentido de preservar a Praça Melvin Jones. Foi assim que em 1989, por meio da Lei 1422 a Praça foi tombada.

É interessante levantar duas questões. A primeira delas é que a área tombada não era o Buraco do Lume propriamente dito, já que este era um terreno particular sem uso, mas sim a praça pública adjacente. A proteção do entorno estaria garantida por um Decreto complementar (6.159/1986), autorizando apenas uso cultural no terreno do Buraco do Lume. Já a segunda é que o tombamento não se deu por um valor excepcional da materialidade, mas sim em função do “seu interesse urbano, social e paisagístico” (ver Lei 422/1989). A intervenção realizada pela Fundação de Parques e Jardins na década de 1990 [14], motivada por novo abandono da área, confirma que o tombamento não estava voltado para os aspectos arquitetônicos do local. Nessas obras, foi executado o anfiteatro existente (figuras 15 a 17), local que se tornou extremamente rico em manifestações políticas desde a década de 1990 até os dias atuais.

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Imagem 15: Área em 1996, já com a configuração atual. Fonte: Aerofoto do Instituto Pereira Passos.
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Imagem 16: Área em 2020. Em vermelho, o lote edificável. Fonte: Google Earth, com intervenção do autor.
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Imagem 17: Panorâmica do anfiteatro em 2019. Montagem do autor.

Após um período menos turbulento, e agora já com a denominação oficial de Praça Mário Lago, em 2019 o bispo e prefeito do Rio, Marcelo Crivella, através do projeto de lei complementar 128/2019 tentou revogar os parâmetros vigentes para a área, ditados pelo Corredor Cultural [15]. Tal proposta gerou enorme insatisfação por parte da população, o que propiciou, em nível estadual, a aprovação da Lei nº 1.219/2019, tombando a área. O tombamento, entretanto, em vez de incidir sobre a praça e determinar o terreno aterrado do Buraco como área de entorno, se abstém de incluí-la e restringe-se estritamente ao terreno edificável. Seria o terreno para o Governo do Estado digno de proteção e a praça não? Logo, conceitualmente a redação da proteção, apesar de louvável, apresenta falhas.

Apesar das questões que isso possa suscitar, por um período curto o espaço pareceu protegido, até que em 31 de julho de 2020, teve a redação final aprovada o Projeto de Lei Complementar 174/2020, apelidada “Lei dos Puxadinhos”, que flexibiliza os parâmetros urbanísticos na cidade do Rio de Janeiro. Nela, consta que “fica revogado o Decreto n° 6.159, de 30 de setembro de 1986, mediante contrapartida a ser definida pelo Poder Executivo” (Art. 26). Ora, o Decreto revogado é precisamente aquele que restringe a edificação no lote à uso cultural.

Dessa forma, o Buraco do Lume, mais uma vez, encontra-se em risco. A formação desse espaço estratégico carioca foi perpassada por conflitos, demolições, apagamentos: uma sucessão de espaços que se transformaram em outros completamente imprevisíveis. Por mais que a praça propriamente dita não esteja sob perigo imediato, o terreno contíguo pode potencializar a sua fruição. Sua vocação cultural não é – ou era – apenas prevista pela Prefeitura, mas também amplamente reivindicada pela população. Curiosamente, o período em que o terreno mais foi apropriado coincidiu com a época do aterro com as peladas, do golfe, quando em função da disputa judicial não havia grades que o reconhecimento da propriedade privada no local impôs e o trânsito era livre.

Passado o tempo, pandemia de Covid-19 em alta, arrefecidos os ânimos, ainda não se concretizaram os planos para o terreno desocupado. Não pela primeira vez, e talvez não pela última, se impõe a questão: qual será a próxima ameaça o Buraco do Lume?

Notas
1 - Careta. Rio de Janeiro: ed. 1088, 27 de abril de 1929, p. 4.
2 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 329, 08 de março de 1977, p. 6.
3 - Disponível em: http://urbecarioca.com.br/2019/09/buraco-do-lume-por-brasiliano-vito-fico.html; acesso em 30 de agosto de 2019.
4 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 111, 28 de julho de 1977, p.33.
5 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 154, 09 de setembro de 1978, p. 9.
6 - Jornal do Brasil. Rio de janeiro: ed. 111, 28 de julho de 1977, p.33.
7 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 74, 21 de junho de 1978, p. 6.
8 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 9, 17 de abril de 1979, p. 28.
9 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 74, 21 de junho de 1986, p. 7.
10 - Jornal do Brasil. Rio de janeiro: ed. 78, 1989, p. 125.
11 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 166, 21 de setembro de 1986, p. 16.
12 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 177, 02 de outubro de 1986, p. 12-b.
13 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 769, 24 de setembro de 1986, p. 3 (Caderno Cidade).
14 - Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: ed. 174, 29 de setembro de 1996, p. 6 (Caderno Política).
15 - Disponível em: https://diariodorio.com/praca-em-perigo-crivella-quer-espigao-no-buraco-do-lume/; acesso em 01/08/2020.

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Sobre este autor
Cita: Thiago Santos Mathias da Fonseca. "Buraco do Lume no Rio de Janeiro: entre resgates, apagamentos e ameaças" 16 Jan 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/954795/buraco-do-lume-no-rio-de-janeiro-entre-resgates-apagamentos-e-ameacas> ISSN 0719-8906

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