Uma leitura de Jorge Mario Jauregui sobre habitação social

Precisamos produzir cidade, através da habitação, para resolver o déficit habitacional do país. E, sobretudo, não “casas”, mas núcleos habitacionais compactos dotados de infraestrutura, serviços, equipamentos e espaços públicos, com tipologias habitacionais muito variadas para atender a uma grande diversidade de situações familiares. É necessário redirecionar o incentivo atual à especulação com a terra urbana através de uma Reforma Urbana.

A aliança da cidade e do conceito nunca os identifica, mas ela vai na linha de sua progressiva simbiose: planejar a cidade, é ao mesmo tempo pensar a pluralidade mesma do real e dar efetividade a esse pensamento do plural; é saber e poder articular – Michel de Certeau, em A invenção do Cotidiano: 1. Artes do fazer

Urbanização de favelas, melhorias de bairros periféricos, melhorias habitacionais de unidades já existentes, habitação nova de acordo com as diferentes faixas socioeconômicas, novos núcleos urbanos conectados por transporte público eficiente, equipamentos públicos estratégicos, são questões estruturalmente relacionadas.

É necessário fazer valer o Estatuto da Cidade, especialmente na:

Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. – Estatuto da Cidade art 2 – parágrafo I

No que se refere à habitação social, é necessário colocar o foco no que é pertinente discutir quando se aborda o tema. Isso, sem dúvidas, tem a ver com como “construir cidade”, como configurar espaços públicos a partir do habitacional e como favorecer a convivência. Como contribuir para a “terapêutica política”, como a denomina Jacques Derrida (“Notas sobre deconstrucción y pragmatismo”, Paidós, Buenos Aires, 1998), isto é, a coexistência das diferenças? Isto tem a ver claramente com não promover bairros socialmente homogêneos, de “iguais”, entediantes, de predominância de um setor socioeconômico cultural exclusivamente. A boa cidade tem a ver com a mescla sociocultural e de funções. Diferentes setores sociais, diferentes configurações espaciais, variedades tipológicas e interações, usos mistos, permeabilidade público-privado, densidade balanceada, adequada quantidade e qualidade de equipamentos e serviços públicos, eficiente sistema de transporte público, elaborada relação entre massa verde e massa construída, disponibilidade de parques, praças e espaços residenciais urbanisticamente tratados; facilitação e estímulo aos movimentos de pedestres e com um, este sim, homogêneo nível de distribuição de “equipamentos de prestígio” por toda a superfície do conglomerado urbano. Tarefa difícil? Obviamente, mas sem isso não se tem lugares desejáveis de serem vividos. Lugares onde uma vida criativa, com possibilidades de interação positiva entre as diferenças, possa ter lugar, possa “criar raízes”.

Para isto, é necessário prover-se de conceitos para pensar, e contar com equipes multidisciplinares, com suficiente experiência para atuar. Ter acumulado “horas de voo" (como um piloto) capazes de orientar com precisão as complexas decisões que são necessárias coordenar e tomar.

Ajustando o foco ainda mais, e especificamente no plano urbanístico-arquitetônico, é necessário combinar dois tipos de questões. Uma referente à conformação de âmbitos de escala variada, e forma aberta, capazes de organizar volumes e funções em uma vertebração onde a “potência lógica ordenadora” de que fala Jacques Lacan (“A la mémoire d’Ernest Jones: sur sa théorie du Symbolisme”, Écrits, Seuil, Paris, 1996) seja capaz de configurar “agregados sensíveis” onde a intenção e a materialização encontrem como enunciador subjetivo uma constatação.

Outra questão é a que se refere à elaboração de unidades habitacionais agrupadas verticalmente (térreo mais 2 ou 3 pavimentos, sem elevadores) capazes de serem portadoras de um DNA urbano que garanta a convivência de dois domínios, o público e o privado. Quer dizer que estas unidades possam ser o ponto de contato e, ao mesmo tempo, configuradoras da cidade (junto com o resto dos serviços e equipamentos públicos necessários) em composições não monotonamente repetitivas, mas, pelo contrário, estimuladores de diversidade urbanística e arquitetônica. Além do mais, estas unidades habitacionais para os setores populares devem ser capazes de poder evoluir (expandir-se) sem comprometer a qualidade urbanística e arquitetônica do domínio público.  Devem ser, no entanto, capazes de garantir uma interface adequada entre o individual e o coletivo, pois todo edifício tem uma dimensão pública e outra privada. E o trabalho do arquiteto tem a responsabilidade de desenvolver essa dimensão pública.

Sem dúvida um grande desafio, mas é exatamente disso que se trata. Criar novos âmbitos de vida cívica, tão ricos como os melhores surgidos por acumulação histórica, adequados a cada contexto histórico, social, cultural, topográfico, paisagístico, climático e técnico, específicos.

No continente latino americano temos riquíssimos e variados exemplos de organização de setores urbanos habitacionais, desde Teotihuacan (Fig.2) até o presente, que necessitam ser rediscutidos, reconceitualizados, confrontados com outras experiências internacionais e tomados como base para a elaboração de novas propostas e a transmissão de novos conteúdos. Neste sentido, tanto o conjunto Los Andes, de Bereterbide (Fig.3), em Buenos Aires, como o conjunto Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, no Rio de Janeiro (Fig.4) e a experiência PREVI-Lima, no Peru (Figs.5 e 6), são referências imprescindíveis.

Figura 2. Desenho feito por Jorge Jauregui, referente ao setor habitacional de Teotihuacán, identificado a partir de escavações arqueológicas junto à Cidade do México. Fonte: Acervo Jorge Jauregui)
Figura 3. Barrio Los Andes, arq. Fermin Bereterbide – Buenos Aires 1927 Desenho realizado pelo arquiteto Ruben Otero, para melhor entender a implantação do conjunto, seus espaços coletivos articulados com os espaços públicos, em um exemplo de relação gentil com o entorno, com a cidade. Fonte: Acervo do curso Habitação e Cidade, Escola da Cidade
Figura 4. Conjunto Pedregulho, arq. Affonso Eduardo Reidy – RJ 1947 Foto: Luis Octavio de Faria e Silva
Figura 5. PREVI Lima – Peru 1965 - 75 Desenho produzido pelo arquiteto Ruben Otero, identificando a diversidade tipológica nas implantações das quadras do conjunto. (acervo do curso Habitação e Cidade, Escola da Cidade) - equipes de arquitetura responsáveis pelos projetos: Atelier 5 (Suíça), Alexander (EUA), Van Eick (Holanda), Iniguez e Vazquez (Espanha), Hanson e Hartloy (Polônia), Candilis, Josi e Woods (França), Samper (Colômbia), Korhonen (Finlândia), Stirling (Reino Unido), Mazzari e llanos, Vier e Zanelli, Reisser, Orrego e Gonzales, Chaparro, Ramirez,Smirnoff e Wyszkowski, Crousse, Paez e Perez, Alvarino, Cooper, Garcia, Grana e Nicolini, Morales e Montagne, Paredes, Correa (Índia), Svenssons (Dinamarca), Kikutake, Kurokawa e Maki (Japão)
Figura 6. PREVI Lima - Peru (foto recente do arquiteto Sharif S. Kahatt, disponibilizada para o acervo do curso Habitação e Cidade, Escola da Cidade) - transformações ao longo do tempo deixam entrever apenas vestígios do projeto original

Para responder à enorme demanda do déficit habitacional na região (só o Brasil precisa construir 7.700.000 unidades) é necessário definir o que se quer (que tipo de cidade e de sociedade), recursos econômicos, materiais e humanos, e contar com uma firme decisão política capaz de garantir uma orientação confiável ao processo.

Hoje é necessário contribuir ao mesmo tempo à requalificação dos bairros existentes e a geração de novas alternativas habitacionais, conformadoras de uma ideia de cidade que atenda às demandas e expectativas contemporâneas - tudo baseado em princípios democráticos capazes de possibilitar coesão social mediante um conceito de desenvolvimento sustentável, alinhado com as formulações do Habitat III. 

Novas demandas

Os princípios e metodologias que fundamentaram o planejamento urbano da modernidade, baseados na tabula rasa e na separação de funções, como se sabe, estão esgotados.

Hoje existe um consenso no sentido de que a ordem social e a repetição e segregação que marcaram o século XX precisam ser substituídos por sistemas que articulem diferenças e que sejam facilmente adaptáveis. Sistemas articulados de funções múltiplas e organizadamente sobrepostos, onde o social e o espacial estejam intrinsecamente reunidos, incluindo sistemas de transporte e infraestrutura pensados de acordo com as novas demandas de acessibilidade, mobilidade e adaptação constante.

Existe uma demanda formulada a partir de distintos setores da sociedade, relativa a uma reorientação do conceito de “desenvolvimento”, incluindo a sustentabilidade das propostas e projetos, destinados a favorecer a vida associativa e democrática através de intervenções baseadas em uma estratégia conectiva de articulação espacial e social, mediante a criação de espaços de qualidade em todas as escalas: objetos independentes, o quarteirão, o bairro e a cidade.

A análise cuidadosa do existente e a inserção seletiva no contexto são parâmetros para uma atuação mais responsável social e urbanisticamente. Hoje, junto com a qualidade de desenho, há a questão fundamental do impacto ambiental das intervenções e a reconsideração do fator densidade, o que tem a ver diretamente com espaços públicos vivos e com a reconversão de lugares capazes de favorecer a convivência democrática, atendendo ao mesmo tempo às maiores urgências.

É necessário investigar e materializar formas de organização físico-social e de participação popular, que permitam obter densidade com qualidade, articulando o macro e o micro, oferecendo âmbitos estimulantes para a vida em sociedade, propondo novas formas de relação com o meio, respondendo às demandas do momento mediante uma abordagem crítica da realidade.

Um bom projeto sempre quis, e continua querendo, transformar positivamente o existente. Hoje se precisa de uma arquitetura e de um urbanismo que dialoguem com o entorno, mas que ao mesmo tempo sejam capazes de modificar a cidade, rearticulando-a.

A cidade contemporânea tem seu território pautado pela lógica do capital derivado de uma “economia líquida”, que contribui para fragmentar permanentemente a estrutura urbana multiplicando centralidades. A multipolarização da mancha urbana caracteriza um crescimento contínuo com uma distribuição desigual dos investimentos em transporte, serviços, infraestrutura e “equipamentos de prestígio”, obedecendo às tendências erráticas da produção e do consumo do capital globalizado. A catástrofe que afeta a maioria das metrópoles contemporâneas é a carência de estratégias e políticas urbanas capazes de rearticular o território urbano com continuidade e coordenação de iniciativas, onde os programas habitacionais massivos, de qualidade e de conteúdo social devem cumprir um papel fundamental como “configuradores de cidade”. Habitação e políticas urbanas devem estar estreitamente vinculadas. Para isso, é necessário garantir, mediante políticas públicas consistentes, acessibilidade ao mercado do solo e de aluguéis, com crédito de acordo com cada uma das faixas salariais, com especial atenção para as famílias de menores ingressos.

Como é sabido, o tema de habitação e sua relação com a cidade é de “múltiplas entradas” e compreende os aspectos físicos (infraestruturais, urbanístico, ambientais), os sociais (econômicos, culturais, existenciais), os ecológicos (ecologia mental, ecologia social, ecologia do comportamento) em sua interseção com o relativo à segurança cidadã e às questões do sujeito contemporâneo.

Para avançar na direção de uma política para a habitação de interesse social, é necessário:

1. Contrapor um outro modelo de atuação do poder público à política de habitação popular baseada na construção de apartamentos ou casas de baixa qualidade, sem sentido estético e de falta de relação orgânica com a cidade, longe das áreas comerciais e de serviços públicos, das fontes de trabalho e com dificuldade de acesso ao transporte público.

2. Considerar simultaneamente as implicações urbanísticas (configuração da dimensão pública para a vida privada), sociais (o agrupamento do individual que deve ser mais que a soma ou adição das células, devendo resultar em uma combinação fluida de “pequenos coletivos”), arquitetônicas (obtenção de diferenciação na repetição, com volumetrias variadas) e ambientais (configurar entornos onde natureza e artifício possam conviver de maneira harmoniosa).

3. Combater com exemplos construídos a política de substituir a favela por edificações que são mais espécies de abrigos do que lugares para habitar.

4. Oferecer qualidade urbanística, arquitetônica e paisagística através das intervenções.

5. Oferecer habitações flexíveis com plantas baixas de uso misto (comércio e locais de trabalho ou serviço).

6. Reverter a realidade dos “conjuntos habitacionais” como sinônimo de habitação de má qualidade.

7. Oferecer habitação não só na pequena escala, mas especialmente núcleos habitacionais com o “DNA” do urbano, com os quais os habitantes possam se identificar.

8. Incluir o vegetal como questão estrutural: garantir adequada relação massa verde - massa construída.

9. Mais que habitação, materializar polos de desenvolvimento urbano, incluindo outras funções tais como comércio, locais de trabalho, restaurantes, cinemas, hostels, serviços culturais, etc em complemento com a iniciativa privada, a partir de um plano urbanístico-base, buscando a sustentabilidade dos empreendimentos.

10. O desafio atual consiste em considerar ao mesmo tempo a “forma urbana” (os edifícios, os lotes, os quarteirões, as ruas, as praças) e os “tipos de construção” (casas, edificações multifamiliares, edificações públicas, comércio, serviços, etc) com o objetivo de estruturar os processos de transformação urbana.

O campo da habitação de interesse social é, sem dúvidas, o campo socioespacial que mais demandará criação e investigação ao longo do século XXI.

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No segundo semestre de 2018, o arquiteto Jorge Mario Jauregui realizou no curso de pós-graduação lato sensu Habitação e Cidade da Escola da Cidade, em São Paulo, uma aula elaborada previamente em texto e aqui exposta enquanto ensaio. A organização da publicação foi feita por Luis Octavio de Faria e Silva, Ruben Otero e Maria Teresa Fedeli - coordenadores do curso.

Jorge Mário Jauregui é arquiteto e urbanista, doutor pela Universidad Nacional de Rosario (Argentina); premiado com o Sixth Veronica Rudge Green Prize em Urban Design pela Universidade de Harvard e indicado para o Prêmio Mies van der Rohe de Arquitetura Latinoamericana.

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Sobre este autor
Cita: Jorge Mario Jauregui. "Uma leitura de Jorge Mario Jauregui sobre habitação social " 27 Jul 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/944315/uma-leitura-de-jorge-mario-jauregui-sobre-habitacao-social> ISSN 0719-8906

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