Por que o incêndio da Notre Dame provocou pouca comoção na África

No final de 2019, as mídias iniciaram seu ritual anual de fazer um balanço, compilar listas e olhar para trás. No mundo da arquitetura, a maior notícia do ano foi, sem dúvida, o incêndio da Notre-Dame. A imagem do telhado em chamas da catedral - uma visão devastadora - encheu as telas de TV e computadores ao redor do mundo e ocasionou uma onda de tristeza, especialmente na França, onde a edificação ocupa um lugar central na consciência coletiva do país.

Foi uma tragédia arquitetônica e cultural. Sem dúvida: o inferno de abril atingiu o coração da França.

Aqui na África, o evento foi visto por muitos com uma certa indiferença. Isso não deve surpreender, já que essa indiferença é uma resposta a gerações de angústia dirigidas aos colonialistas europeus, particularmente franceses, belgas e britânicos que, por várias décadas, projetaram e sustentaram o saqueamento de todo o continente pelos estados tribais, com seus agentes surripiando artefatos culturais sagrados, muitas vezes destruindo aqueles que não podiam levar.

É um legado de selvageria. Civilizações inteiras foram destruídas. A cidade de Benin, um dos enclaves mais sofisticados do continente, foi reduzida a escombros em 1897. No final do cerco, soldados britânicos haviam saqueado quase 3.500 artefatos culturais do Palácio dos Oba de Benin. Um ano antes, os britânicos invadiram Maqdala e levaram artefatos sagrados durante a invasão de Abissina.

Interior do complexo de Oba queimado durante o cerco da cidade de Benin (atual Nigéria), com placas de bronze em primeiro plano e três soldados britânicos da Expedição Punitiva de Benin, de 9 a 18 de fevereiro de 1897. Fotógrafo Reginald Granville via Wikimedia Commons

Em 1890, o mesmo destino aconteceu no Palácio Real de Segou, na então capital do Império Toucouleur, que cobre a atual Guiné, Senegal e Mali; lá, soldados franceses levaram milhares de artefatos, alguns dos quais foram removidos de santuários ou de outros locais sagrados de culto. Um estudo recente encomendado por Felwine Sarr e Benedicte Savoy traz o impressionante número de 90.000 artefatos roubados que atualmente estão em museus franceses. Acredita-se que duas vezes esse número esteja alojado no Musee Royal de l'Afrique Centrale, na Bélgica. E esses números não levam em conta o grande número de artefatos saqueados em museus particulares ou coleções pessoais em todo o mundo.

O incêndio em Notre-Dame, por mais trágico que tenha sido, oferece uma oportunidade, um valioso cenário histórico, para uma discussão maior e muito atrasada sobre o legado cultural da França na África. Lembre-se: esse legado permanece tão doloroso para nós como o incêndio em Notre-Dame foi para o povo da França. Sabemos como é perder nossa cultura, vê-la saqueada, vê-la envolvida em chamas. Não estou de forma alguma subestimando ou descartando o fogo na catedral. Exatamente o oposto: espero a restauração completa de Notre-Dame e um cálculo mais completo dos eventos na África colonial.

Em 2017, o presidente francês Emmanuel Macron prometeu, durante uma visita a Ouagadougou, Burkina Faso, o retorno dos artefatos culturais roubados da África. "Não posso aceitar que grande parte do patrimônio cultural de vários países africanos esteja na França", disse ele. “Existem explicações históricas para isso, mas não há justificativas válidas que sejam duráveis e incondicionais. A herança africana não pode estar apenas em coleções e museus privados europeus. A herança africana deve ser destacada em Paris, mas também em Dakar, em Lagos, em Cotonou”. Como resultado, o governo francês encomendou o estudo da restituição por Savoy e Sarr. E, no entanto, já faz um ano desde que o relatório foi enviado e não houve progresso tangível em direção ao repatriamento e restituição.

Como arquiteto que estudou a catedral quando estudante, estou emocionado que os cidadãos franceses ricos estão reunindo seus enormes recursos para ajudar nos esforços de reconstrução. Não há dúvida de que a Notre-Dame será reconstruída, assim como foi depois de ter sido vandalizada por parisienses raivosos na década de 1790, durante a Revolução Francesa. Infelizmente, o patrimônio cultural saqueado da África enfrenta um futuro mais incerto. Enquanto a França reconstrói Notre-Dame, é justo pedir que ela cumpra seu compromisso de devolver artefatos africanos roubados e fazer uma restituição tangível pelas décadas de destruição que causou em todo o continente. Mas saiba disso: a África perdeu mais do que apenas seus artefatos. Cidades inteiras foram saqueadas e, junto com elas, foi nosso urbanismo e arquitetura nativa.

Muitos não-africanos muitas vezes tentaram racionalizar o colonialismo como uma parte da história distante que os africanos deveriam ter superado a essa altura. Mas o seu legado é aquele que definirá para sempre a África. Este poema de Niyi Osundare, "Memória da África", captura o desespero e a angústia ainda sentidos em todo o continente:

Peço por Oluyenyetuye o bronze de Ife
A lua diz que está em Bonn
Peço por Ogidigbonyingbonyin a máscara do Benin
A lua diz que está em Londres
Peço por Dinkowawa o banquinho de Ashanti
A lua diz que está em Paris
Peço por Togongorewa o busto de Zimbábue
A lua diz que está em Nova York
Eu peço
Eu peço
Peço para a memória da África
As estações dizem que está soprando no vento
O corcunda não pode esconder seu fardo

Este artigo foi publicado originalmente na Common Edge em 23 de dezembro de 2019.

Sobre este autor
Cita: Agbo, Mathias. "Por que o incêndio da Notre Dame provocou pouca comoção na África" [Why the Fire at Notre Dame Elicited Few Tears in Africa] 19 Jan 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Sbeghen Ghisleni, Camila) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/931800/por-que-o-incendio-da-notre-dame-provocou-pouca-comocao-na-africa> ISSN 0719-8906

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