A importância do urbanista na interferência territorial - o caso de Mariana

Sabe-se que os processos econômicos e urbanísticos geram grandes modificações na estrutura da cidade. Embasados nos recentes acontecimentos de 25 de janeiro de 2019 com o novo rompimento da barragem de Brumadinho, pode-se atentar que a negligência ambiental por parte de grandes empresas mineradoras também é capaz de produzir profundas consequências e transformações na maneira com que as pessoas fazem uso do território.

A partir das análises e diagnósticos desenvolvidos ao longo de uma pesquisa para o Trabalho Final de Graduação denominado: Reassentamento Urbano de Bento Rodrigues, Mariana - MG, este artigo visa ressaltar a importância do urbanista na interferência do território para com a população e dos desafios de resgatar um espaço debilitado, especificamente no que diz respeito ao ocorrido em Mariana, Minas Gerais em 2015, com enfoque no subdistrito Bento Rodrigues, um dos primeiros locais atingidos pelo incidente.

Deve-se atentar que a base econômica da área selecionada como o estudo de caso é estruturalmente sustentada pelo extrativismo mineral e pelo turismo. Após o desastre ambiental na bacia do Rio Doce, decorrente da extração excessiva e consequente ausência de manutenção nas contenções de rejeitos, a região sofreu impactos diretamente relacionados com as questões ambientais que estão ligadas às mudanças na estrutura geológica e na relação do homem com o espaço «neste caso Bento Rodrigues».

Qualifica-se, portanto, uma potencialidade desenvolvida no espaço para tentativas de reconstruções a partir da antifragilidade [1], ou seja, a reconstrução baseada nos impactos, de acordo com o conceito de Nassim Taleb (2015) que apresenta a ideia de capacitar-nos a lidar com o desconhecido e compreender no decorrer da execução de forma a aproveitar-se das vantagens ofertadas por um espaço vulnerável e, ainda assim, o reassentamento das famílias em outra área que proporcione experiências similares ao que tinham no assentamento anterior.

Pertencente à microrregião de Ouro Preto, o município de Mariana foi a primeira capital do Estado de Minas Gerais. O local foi descoberto por bandeirantes por volta de 1696 e somente em 1745 obteve o título de cidade [2]. Nesta época a mineração tinha um papel determinante sobre o crescimento regional, principalmente nas cidades ao longo da Estrada Real, que foram caminhos abertos entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro para transportar os minérios extraídos aos portos do Rio de Janeiro e depois encaminhados a Portugal. Em Bento Rodrigues, o subdistrito se consolidou por grandes grupos que buscavam por minas de ouro e, até o desastre ambiental, não passou por grandes alterações morfológicas, a população que ali residia era local e, em grande parte, nascidas na região.

A população da região de Bento Rodrigues, subdistrito do Município de Mariana no momento do desastre era de 600 pessoas subdivididas em 225 famílias e, distribuídas em 252 construções num aglomerado urbano de 4,5 quilômetros quadrados de extensão. O município ao lado, Ouro Preto, também possui valor histórico agregado e duas estradas que o ligam ao município de Mariana, a BR-356 conhecida como Rodovia dos Inconfidentes e a estrada MG-262 situada no circuito do Ouro, que atualmente é responsável por conectar as cidades com reconhecido valor histórico.

Em 1945, o presidente Getúlio Vargas declarou Mariana como Monumento Nacional por seu «significativo patrimônio histórico, religioso e cultural», o que ativou a sua participação na vida civil e política do país, uma vez que a cidade teve papel diretamente relevante para a Independência do país, e consequentemente contribuiu para a formação da nacionalidade e identidade brasileira.

O desastre ambiental causado pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana, MG ocorreu em 5 de novembro de 2015 e, segundo o relatório técnico disponibilizado pela Fundação Renova (2018), aproximadamente 39,2 milhões de metros cúbicos de rejeitos atingiram o Rio Gualaxo do Norte, o Rio do Carmo, o Rio Doce e por fim, sua foz, o Oceano Atlântico. A estrutura responsável pela contenção dos rejeitos apresentava o método construtivo à montante, que, a partir do dique inicial, constrói-se alteamentos[3] com o próprio descarte para conter o resíduo do tratamento do material extraído na mineração, após a separação do metal explorado, armazenando-os em barragens.

O desastre ambiental causou a morte de 19 pessoas e impactos que, segundo o Ibama (2018), são impossíveis de estimar prazos de retorno da fauna ao local. Foram afetados 39 municípios tanto do Estado de Minas Gerais quanto do Espírito Santo, o que, de acordo com a Samarco Mineração S.A. representa cerca de 10,5 milhões de m³ de rejeitos carregados e diluídos ao longo da bacia do Rio Doce modificando aproximadamente 680 quilômetros de corpos hídricos da bacia hidrográfica. Bento Rodrigues está localizadoa cerca de 110 quilômetros da atual capital de Minas Gerais, Belo Horizonte e, a 8 km do local do rompimento da barragem do Fundão e teve cerca de 82% da área devastada[4].

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Área afetada pelo desastre ambiental

O complexo de barragens da mineradora incluía as estruturas de Santarém, com dique de água e a de Germano com rejeitos. Em extensão, Fundão era a segunda maior barragem da mineradora Samarco e tinha capacidade de 55 milhões de m³, na qual cerca de 32,6 milhões de m³ vazaram de lama de rejeitos e passaram por cima do dique de Santarém, ocasionando erosão da área e danos parciais na estrutura.

A fim de compreender o tecido urbano que existia na cidade, antes do incidente, e encontrar um possível local de reassentamento desta população realizou-se um diagnóstico com bases em mapas cadastrais fornecidos pela Prefeitura de Mariana e arquivos digitais disponibilizados por órgão governamentais e institutos que desenvolvem pesquisas direcionadas a Minas Gerais. Durante a elaboração do diagnóstico, compreendeu-se a importância que a estrutura morfológica do local representava para o assentamento daquela população. Também foi possível compreender como se sucedeu o desastre ambiental espacialmente, e localizar a proposta de reassentamento da Fundação Renova.

Além disso, foi fundamental compreender o zoneamento do plano diretor disposto na Lei nº 016, de 02 de janeiro de 2004 e alterado em 2014 «antes do desastre ambiental» identificando que se apresentam quatro setores com diretrizes para uso e ocupação do solo. São eles: Zona de Interesse de Adequação Ambiental (ZIAA), Zona de Interesse de Reabilitação Ambiental (ZIRA), Zona de Interesse de Controle Ambiental (ZICA) e Zona de Interesse de Proteção Ambiental (ZIPA), conforme observa-se na imagem abaixo:

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Zoneamento conforme plano diretor e indicações das propostas

Basicamente, apenas uma das zonas do plano diretor permite a expansão urbana, enquanto as demais possuem, de modo geral, o intuito de conservar os recursos existentes nos locais que não sofreram alterações antrópicas. Todavia, em situações infortunadas, como o desastre ambiental, a inflexibilidade da Lei gerou dificuldades em reassentar essa população, pois a legislação vigente é bastante restritiva, ou seja, não permite e nem previa possibilidades de expansão urbana, tornando-se necessário criar Leis Complementares, que neste caso desconsideram o plano diretor vigente.

Ao atentar-se para a hidrografia, vegetação e relevo da região percebeu-se que no quesito hidrografia, há uma quantidade considerável de recursos hídricos com numerosos afluentes e subafluentes em duas bacias estaduais e uma bacia federal - a bacia do Rio Doce. Referente à vegetação, evidencia-se a presença efetiva de matrizes de Mata Atlântica à oeste do município, com algumas áreas de clareiras, que, para este caso favorece para a possibilidade do reassentamento urbano de Bento Rodrigues, nessa região do limite municipal com menor impacto ambiental. O relevo indicado com o estudo hipsométrico, indica que a região à noroeste encontra-se à 1050 metros de altitude enquanto à sudeste apresenta curvas de nível próximas à 150 metros.

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Área de vegetação do município de Mariana
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Hidrografia do município de Mariana
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Estudo hipsométrico do município de Mariana

Segundo a Samarco (2016), no dia 24 de dezembro de 2015, todas as famílias estavam em acomodações distantes da área de risco, 291 em moradias alugadas pela Samarco Mineração S.A. e, outras 44 famílias, em Barra Longa, aguardando pela reconstrução de suas casas.

Um plano de ações emergenciais foi executado pela mineradora a partir do momento do desastre, com foco na gestão dos impactos ambientais e sociais. Após a assinatura do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) entre a Samarco e o Governo Federal, em 2016, a Fundação Renova assumiu a execução das ações com planos de recuperação socioeconômica e socioambiental e atua até o presente momento. No caso de Bento Rodrigues, foi projetado uma área para reassentamento num subdistrito vizinho, conhecido como Lavoura à uma distância de 8 quilômetros de Mariana Sede.

O recorte espacial apresentado na imagem abaixo é o terreno aprovado pela Câmara Municipal e também Associação de Moradores de Bento Rodrigues para reassentamento da sua população. O terreno foi escolhido em maio de 2016 pela comunidade e a partir de então apresentaram-se propostas para o desenvolvimento de um projeto urbanístico que faz alusões às memórias dos moradores da região «informações disponibilizadas pela Fundação Renova».Localizado a Sudoeste de Bento Rodrigues e Noroeste de Mariana, a área urbana de reassentamento compreende uma área equivalente a 165,01 hectares no total, considerando áreas de preservação permanente e, 66 hectares habitáveis.

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Proposta de reassentamento da Fundação Renova, denominada “Nova Bento”

Com base nos mapas disponibilizados pela prefeitura de Mariana com as coordenadas geográficas sobre o terreno de reassentamento do subdistrito, acredita-se que a definição desse local poderia ocasionar impactos menores, principalmente ao que se refere nas questões ambientais e que, apesar de todo o processo de projeto desenvolvido pela Fundação Renova ter incluído a participação da população, o projeto não pondera sobre a interpretação do urbanista diante das reais necessidades dos habitantes do local e, sobretudo, se o seu novo posicionamento no Município atende às suas necessidades e no que se refere aos vínculos que se estabelecem com o pertencimento local.

A proposta da Fundação Renova também não apresenta conexões com o antigo local do assentamento, como a distância com a Estrada Real, que agrega o valor histórico do local em que Bento Rodrigues foi constituído inicialmente e, não apresenta demais relações com o entorno. O projeto não demonstra meios de causar interações sociais e reflexões na desenvoltura dos moradores para com o espaço, bem como não estimula a permanência em espaços públicos qualitativos e sentimento de pertencimento com o novo local de reassentamento. Sendo assim, de acordo com os apontamentos colocados acima é relevante que houvesse ajustes na proposta de reassentamento da população afetada em local mais adequado às questões apontadas anteriormente.

Notas:

[[1]] Taleb (2015) diz que Antifragilidade é o oposto de fragilidade e é algo que se beneficia do incerto. Partindo deste conceito, a ideia é capacitar-nos a lidar com o desconhecido e compreender no decorrer da execução.
[2] Informações disponíveis no site da Prefeitura de Mariana.
[3] Alteamento significa elevação de uma parede, de uma abóbada, de um andar, de uma coluna etc., ou seja, nestas condições são as contenções erguidas para segurar os resíduos.
[4] Laudo disponível pela Fundação Renova.

Autores:
Aryane Diaz
é arquiteta e urbanista, formada pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Produziu artigos sobre Processo Participativo e finalizou o curso com o Trabalho Final de Graduação sobre Reassentamento Urbano de Bento Rodrigues, Mariana - MG. Atualmente é arquiteta no escritório FGMF Arquitetos em São Paulo.

Sérgio Lessa é arquiteto paisagista e urbanista, formado pela FAUUSP, mestre em Cenografia pela ECAUSP. Leciona disciplinas de projeto urbano e paisagismo no Centro Universitário Belas Artes, onde também atua como assistente de coordenação. É sócio do SLH Arquitetos Associados, atuando na área de arquitetura paisagística e urbanismo há mais de dez anos.

Referências:

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DIAZ, Aryane. Projeto Participativo no Espaço Público. 2017. 25 f. Iniciação Científica (Graduação) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, São Paulo, 2017.
Fundação Renova (Brasil). Projeto Urbanístico de Bento Rodrigues é aprovado por 99,4% das famílias em assembleia geral. 2018. Disponível em: http://www.fundacaorenova.org> Acesso em: 10 mar. 2018.
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SOUZA, Eva. Depoimento sobre o ocorrido em Bento Rodrigues. Entrevistadora: Aryane Diaz. Mariana. 2018. 1 faixa (66 min).
TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil: Coisas que se Beneficiam com o Caos. [recurso eletrônico] 1. ed. Rio de Janeiro: Best Busi­ness, 2015. Título Original: Antifragile. Tradução de: Eduardo Rieche.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. Tradução de: Lívia de Oliveira.

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Sobre este autor
Cita: Aryane Diaz e Sérgio Lessa. "A importância do urbanista na interferência territorial - o caso de Mariana" 22 Ago 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/923133/a-importancia-do-urbanista-na-interferencia-territorial-o-caso-de-mariana> ISSN 0719-8906

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