A residência unifamiliar como manifesto experimental do arquiteto moderno

O arquiteto Rafael Pina Lupiáñez a partir do Coletivo ARKRIT, reflete acerca da residência unifamiliar entendida como um manifesto experimental por parte do arquiteto moderno, na qual se materializam suas teorias, tendências e inquietudes, tudo isto baseado em uma estreita e cúmplice relação com o cliente. Junto à comparação de duas casas realizadas em Quito, Equador, por parte dos arquitetos Daniel Moreno e Sebastián Calero, este artigo pretende exemplificar como a residência pode ser o cenário perfeito para unificar a experiência projetual, a participação do cliente, a preocupação com o meio, a reutilização de materiais de descarte e outros planejamentos éticos contemporâneos.

Desde os primórdios da modernidade, a casa constituiu um campo de experimentação arquitetônica que permitiu colocar em prática boa parte das aspirações que os novos tempos exigiam para a condição de habitar. A maioria dos grandes mestres se sentiu confortável explorando as possibilidades deste tipo de projeto que lhes permitia materializar suas ideias acerca da nova arquitetura. A lista de casas-manifesto é ampla e pode se dizer que todos os arquitetos insignes deixaram sua marca neste campo da residência isolada, no qual poderiam dar forma física a suas teorias, suas tendências e suas inquietudes. [1]

É sabido que para que uma obra de arquitetura alcance certo valor não é suficiente ter as intenções e a boa prática do arquiteto. Assim, entre outras, as condições que impõe e imprime o cliente determinam em grande medida a qualidade do resultado. Este fato é especialmente relevante no projeto da residência isolada. A associação entre cliente e arquiteto exige uma relação de feliz acordo e cumplicidade em prol de um objetivo excelente. Do contrário, caso não exista esta cumplicidade, a casa isolada tende a transformar-se em um subproduto infame. Desta forma, este tipo, ou gênero de edificação foi capaz de produzir o melhor do século X, mas também o pior. [2]

Às iniciais exigências formais, de racionalidade construtiva e salubridade que deram lugar, na modernidade, a determinadas formas de fazer, se vem a somar, na contemporaneidade, outras propostas éticas mais sensíveis à vulnerabilidade do meio ambiente e mais comprometidas com as limitadas possibilidades dos recursos do planeta. Assim, torna-se necessário que surjam novas formas de focar a nova arquitetura e, novamente, a casa vem a ser o objeto ideal de experimentação.

No Equador, nos arredores de Quito, encontram-se duas casas de Daniel Moreno e Sebastián Calero, dois jovens arquitetos que estão conseguindo levar a suas obras certas inquietudes de caráter eminentemente contemporâneo. Assim, juntam à experiência de projeto, a participação do cliente, a preocupação com o meio, a reutilização de materiais de descarte, assim como a reciclagem, a economia de energia e o tratamento de águas sujas.

A reutilização de mateiras foi uma estratégia construtiva amplamente utilizada ao longo da história, ainda que nem sempre com destreza. Importantes monumentos desapareceram após o espólio de seus materiais construtivos que passaram a ser integrados em novas edificações que, em boa parte dos casos, tinham um interesse arquitetônico muito inferior. No entanto, independentemente de algumas situações penosas, o certo é que a reutilização, como alternativa ao desperdício, constitui hoje uma opção mais que razoável, para não dizer obrigatória. Sobretudo em um mundo em que a escassez de todo tipo de recursos se manifesta cada vez mais como uma ameaça certeira.

O Carrizal

Casa el Carrizal. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Federico Cairoli

A residência chamada "O Carrizal" construída em 2015 é uma pequena edificação de dois pavimentos, relativamente pequena, com cerca de 210 m2, ainda que, por sua configuração, parece muito maior. Foi construída atendendo de forma precisa ao entorno imediato: árvores existentes e construções próximas. Assim, se apresenta como um conjunto articulado de volumes diferenciados e relativamente autônomos. Este tipo de descomposição e articulação de volumes permite contemplar as árvores e, ao mesmo tempo, deixar entre elas espaços que introduzem a natureza externa e a luz natural. A casa se aproveita, assim, do privilégio de estar situado em um país onde as condições climáticas são pouco exigentes no que se refere a isolamento térmico. Uma cobertura de junco sobrevoa todo o conjunto de volumes e reforça a unidade formal da obra.

Planta Casa el Carrizal. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Rafael Pina

A construção foi realizada a partir de cinco materiais básicos: tijolo, adobe, madeira, junco e vidro. Foram reutilizados materiais procedentes de demolições de modo que, além da consequente economia de recursos, a obra pode se beneficiar de madeiras e cerâmicas ja curadas pelo tempo. O sistema construtivo combina o tradicional com o experimental, o que implica assumir certos riscos. Se empregam profusamente elementos a tração - cabos, tensores, parafusos e polias - que se encarregam também de proporcionar uma imagem leve e integrada. É possível afirmar que o conjunto propõe uma revisão contemporânea de uma arquitetura tradicional que, em uma imprudente tentativa de estabelecer rótulos, poderia ser definida como eco-tecno-vernacular.

Casa el Carrizal. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Rafael Pina

Casa RDP

Não distante da casa El Carrizal encontra-se outra obra dos mesmos autores chamada Casa RDP, construída também em 2015.

Casa RDP. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Federico Cairoli

Nesta casa foram utilizados sete containers, convenientemente dispostos sobre plataformas de concreto, nas quais se abrigam espaços de serviço da residência, quanto as funções principais e mais públicas se desenvolvem no espaço que resta entre eles.

Os sete containers constituem, além disso, a estrutura portante do conjunto em um arriscado jogo de equilíbrio.

Planta Casa RDP. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Rafael Pina

Apesar das funções da residência se desenvolverem em um único pavimento, um espaço linear foi disposto no pavimento subterro de difícil acesso formado por um oitavo container de comprimento duplo, destinado a galeria de arte. Este espaço, de utilidade duvidosa, constitui um pretexto para proporcionar certa estatura à casa que de outro modo, teria uma volumetria muito mais pobre.

Casa RDP. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Federico Cairoli

Como no caso anterior de El Carrizal, a Casa RDP se caracteriza pela diversidade e riqueza dos espaços, amplos, luminosos e abertos, nos quais sempre é possível encontrar vistas distantes para a natureza do entorno. Também nesta casa está presente o mesmo espírito de experimentação e risco construtivo que já vimos em El Carrizal, ainda que dos materiais construtivos sejam outros. Neste caso, predominam o aço, o concreto e o vidro com uma aparência externa mais industrial e consequentemente mais dura. Os containers utilizados foram decapados deixando o aço aparente, o que acentua o caráter de material reutilizado sem nenhuma concessão que suavize seu aspecto. A esta dureza externa se contrapõe um interior que mostra uma ampla espacialidade acolhedora e confortável. Assim, dentro da casa, aparece a madeira, ainda que de forma controlada, que fornece certo aconchego ao espaço doméstico.

Casa RDP. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Rafael Pina

Trata-se de duas casas irmãs, que procedem de uma mesma forma de fazer e que mostram semelhanças notáveis, ainda que em sua expressão material apresentem importantes diferenças. A primeira busca integrar-se à natureza como uma casa na árvore, enquanto a segunda impõe uma estética mais austera e seca, mais mecanicista e sem a preocupação com a sofisticação do detalhe que existe em El Carrizal, na qual a construção resulta, em alguns momentos, algo retórico.

Casa el Carrizal. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Federico Cairoli

As duas casas são resultado de uma metodologia gratificante e detalhista. A primeira, El Carrizal, seduz à primeira vista e nos submerge no universo de cuidadosos detalhes: mesas dobráveis, passarelas, jardineiras eleváveis. Percorre-la é como um delicioso jogo de percepção no qual se vai descobrindo ambientes diversos e gadgets que, no entanto, não minam a consistência e a unidade da obra.

Casa RDP. Daniel Moreno + Sebastián Calero, 2015. Imagem © Rafael Pina

A Casa RDP, pelo contrário, sendo mais dura e mecânica, e evitando a sedução do desenho pormenorizado, é possível que se mostre, a longo prazo, como uma arquitetura mais sólida e convincente.

Referências

[1] Recomenda-se a leitura do livro A boa vida, visita guiada às casas da modernidade (G.G. 2000), no qual Iñaki Ábalos realiza um esclarecedor percurso por sete casas modernas na qual revela as relações entre as formas de pensar, os modos de viver, as ações projetuais e as obras construídas.

[2] Antonio Miranda em seu Elogio de la medianería urbana (COAM, 1977) realiza uma inteligente e mordaz crítica da residência unifamiliar isolada, na qual denuncia as causas de suas misérias e os efeitos perniciosos de seu êxito invasivo.

Este artigo foi originalmente publicado como 'Dos casas en Ecuador' em 8 de fevereiro de 2018 no blog de ARKRIT, Grupo de Pesquisa pertencente ao Departamento de Projetos Arquitetônicos da ETSAM de Madri que se dedica ao desenvolvimento da crítica arquitetônica entendida como fundamento metodológico do projeto. Leia mais de seus artigos aqui.

Sobre este autor
Cita: Pina Lupiáñez, Rafael . "A residência unifamiliar como manifesto experimental do arquiteto moderno" [La vivienda unifamiliar como manifiesto experimental del arquitecto moderno] 09 Jun 2018. ArchDaily Brasil. (Trad. Daudén, Julia) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/895741/a-residencia-unifamiliar-como-manifesto-experimental-do-arquiteto-moderno> ISSN 0719-8906

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