As cidades no fim do mundo

Caminhar por São Paulo sem ver carros e caminhões me deixa com uma felicidade quase real, imaginando por um instante que a cidade deu certo, que o sonho de Jane Jacobs se realizou. E, com sincronia, um outro sentimento estético aflora inevitavelmente, uma sensação de “fim do mundo”. Este segundo impulso, se materializa num pensamento construtivo que não tem nada a ver com o fatalismo moral ou ainda menos a tragédia. Simplesmente é o fim de um mundo no qual a revolução industrial junto ao capitalismo liberal nos “educou” por dois séculos a aceitar. Este foi o mundo dos “recursos” naturais infinitos, do sonho da fartura energética e desejos de consumo voraz. Sonhos que nem eram nossos.

Cada crise é uma grande oportunidade de reflexão, questionamento e redefinição de paradigmas. A “greve dos caminhoneiros” por sua vez oferece lições fundamentais sobre a vulnerabilidade das nossas cidades e, numa escala maior, sobre a obsolescência dos sistemas construídos sobre paradigmas mecânicos e antropocêntricos.

O Brasil é o país que tem a maior concentração rodoviária de transporte de cargas e passageiros entre as principais economias mundiais e de acordo com a Confederação Nacional do Transporte (CNT), hoje, 90% dos passageiros e 60% da carga que se deslocam pelo país são movimentados em rodovias.

Nas melhores (ou piores) hipóteses sobre os prognósticos do Câmbio Climático, e sobre o esgotamento dos combustíveis fósseis, o acontecimento da paralisação da distribuição de produtos, serviços e recursos da semana passada - e eventualmente da próxima - é uma pequena janela do espaço-tempo para podermos enxergar a total fragilidade do mundo e de todas as certezas e estabilidade que o “mercado global” e os “governos” nos garantem.

A ineficiência de antecipar e administrar uma crise logística (em fundamentos energéticos) se deve à obsolescência do sistema mecanicista de pensamento e da dependência do combustível fóssil sobre a qual construímos o nosso mundo. É o fim desse mundo físico e mental que se manifesta em todas as dimensões globais de organização dos humanos nas realidades inter-subjetivas construídas até aqui.

Para a espécie humana permanecer nesse planeta, os nossos paradigmas de organização, logística, consciente coletivo e relacionamentos devem se redefinir sobre paradigmas orgânicos e não mecânicos.

A imagem atual nas ruas de um pequeno “fim do mundo”, digno de um belo episódio do Black Mirror, nos conecta diretamente com a essência de uma escala macro que todos sentimos na pele, mas não queremos falar ou não sabemos como falar.

Num planeta em constante transformação (acelerada pela percepção analítica e fenomenológica do Câmbio Climático), as cidades e os próprios metabolismos precisam evoluir em sistemas resilientes de paradigmas orgânicos. 

Por que uma floresta sobrevive por milhares de anos, apesar de incêndios, secas, predadores, patógenos? Simplesmente por não ser centralizada e seguir uma rede distribuída, compartilhada e adaptável, antecipando - através de fluxos descentralizados de energia - materiais e comunicação. Florestas se regeneram, reciclam seus resíduos, têm sistemas otimizados de distribuição de água e de compartilhamento do território, agenciam a convivência entre orgânico e inorgânico.

Se imaginarmos uma situação improvável de um organismo específico (e especializado) numa floresta decidir “fazer greve”, o que aconteceria? O ecossistema todo se adaptaria, reorganizaria e responderia às necessidades como um todo, de forma auto-organizacional, pois é interesse de todos os organismos num ecossistema sobreviver e, para sobreviver, mutualismo é uma das fórmulas mágicas que a natureza aplica. A natureza é cooperativa e a cidade do futuro (se queremos ter alguma sobrevivendo) será uma cidade resiliente e adaptável a mudanças.

A natureza é a nossa tecnologia do futuro onde encontramos soluções sistemáticas altamente desenvolvidas e inteligentes. A arquitetura e consequentemente as cidades devem procurar na resiliência o seu sentido de existir juntando propósito com essência. 

Segundo Michael Mehaffy e Nikolas A. Salingaros podemos extrair quatro aprendizados de sistema naturais, para serem aplicadas ao desenho das nossa futuras arquiteturas e cidades:

  • Elas terão redes interconectadas de caminhos e relações;
  • Não serão segregadas em categorias fechadas de uso, tipo e percursos de conexões que deixariam elas vulneráveis a falhas;
  • Buscarão diversidade e redundância de atividades, tipos, objetivos e população;
  • Possuirão uma grande distribuição de escalas e estruturas, do planejamento em escala regional até o detalhe mais fino.

Combinando os pontos (1) e (2), estas estruturas são diversificadas, interconectadas e podem ser alteradas com facilidade localmente. Elas se adaptam e se organizam como respostas à necessidade de mudanças ou diferentes escalas espaciais e temporais. Elas podem se “auto-organizar”.

Os efeitos das mudanças climáticas serão locais e globais. O nível de fluxo energético acumulado no sistema, vai igualmente criar comportamentos emergentes nas economias locais e internacionais a nível global. A nova organização social e consequentemente do modo de viver (o mundo) vai emergir como evolução da nossa capacidade de antecipação e adaptação orgânica.

Todos os sistema do mundo tendem a evoluir até chegar ao limite crítico, após do qual colapsam e se reorganizam em sistemas mais simples ou até mais complexos dependendo do fluxo de energia do sistema em questão. O nosso mundo está no horizonte do colapso e com todos os câmbios sistemáticos, na natureza e na nossa civilização, novas formas de viver vão emergir.

Adaptação neste sentido é, e sempre foi, a estratégia mais importante de sobrevivência do ser humano. Lembrando que por volta de 190.000 anos atrás, após grandes inundações, a população foi reduzida a poucos milhares de indivíduos. E a recuperação foi possível devido a grande criatividade de soluções diversificadas. O planeta está mudando, e sempre mudou, o que permitiu a vida e a diversificação de espécies. Igualmente, nesse novo cenário que vivenciamos, o desafio será a nossa capacidade de antecipação e adaptação, capacidades que deveremos alinhar com a inteligência e evolução da consciência da natureza.

Sobre este autor
Cita: Marko Brajovic. "As cidades no fim do mundo" 28 Mai 2018. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/895300/as-cidades-no-fim-do-mundo> ISSN 0719-8906

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