Cidade: a participação de todos na paisagem urbana / Ricardo Nogueira Martins

Vários são os desafios sociais e ambientais enfrentados pelas cidades, em particular aqueles relacionados com o propósito de maximizar o potencial de capital humano jovem disponível nas cidades. Na defesa de que a melhor forma de ter uma boa ideia é ter várias ideias, a actividade ‘Postais Ilustrados de Guimarães’ congrega a mobilização de pensamentos infantis reflectidos manualmente em postais que trabalham acerca da paisagem urbana que vivem. Esta é uma das várias atividades trabalhadas pelo Laboratório da Paisagem de Guimarães e uma das acções do Plano de Paisagem de Guimarães que, realizada desde 2015, conta já com quase duas centenas de contribuições.

O apelo à participação coletiva na paisagem segundo a Convenção Europeia da Paisagem deve fazer-se, pois, cumprindo a salvaguarda da característica social da paisagem, que é, por sua vez, uma das instâncias do significado de paisagem: a paisagem tal como é apreendida pelas populações.

© Laboratório da Paisagem, 2016

Como forma de compreensão do carácter mutável da paisagem desafia-se os jovens para a experimentação com os postais turísticos vigentes estimulando o pensamento em torno dos sentidos espaciais da cidade de Guimarães.

A participação na paisagem pode, com certeza, ir além revestindo-se em componentes mais criativas, exaltando reflexões sobre o território. Através dos postais ilustrados, é possível retirar ilações de propostas, críticas à gestão urbana, idealizações futurísticas e por sua vez reafirmar a componente identitária da paisagem que se opera obrigatoriamente com o envolvimento da comunidade.

Permitir que as cidades criem novas interacções urbanas admite enfrentar mais constrangimentos com menos meios, aumentar a capacidade de ação, colaborar e ouvir a juventude urbana para identificar melhor a inovação patente e passível de aplicação em assuntos de paisagem.

O cartão-postal/postal, instrumento e mediador desta atividade, surgido na transição do século XIX para o século XX foi de facto uma inovação cultural já que permitia comunicar um mundo acessível e portátil: por um lado, porque proporcionava um imaginário coletivo do território e da paisagem, e por outro, por regularmente marcar a representação de lugares e paisagem (Bandeira, 2011). [1]

© Laboratório da Paisagem, 2016

A paisagem não limitada àquilo que se experimenta subjetivamente, mas também àquilo que organiza a experiência, permite o reconhecimento da importância de envolver as crianças no processo de avaliação do ambiente, espaços e lugares que os circundam e na definição de como seus bairros ou cidades podem ser melhorados na realização de soluções inclusivas, e participativas na cidade: os jovens e as crianças "tomadores de decisão" constroem cidades mais interactivas socialmente, porque não há limites à sua imaginação.

“A sabedoria última da imagem é dizer: ‘isto é uma superfície’. Agora pense. Ou melhor, sinta, intua. O que está além disso? Como deve ser a realidade? Se parece com esta imagem?” [2]

Por esta razão, os postais são os instrumentos utilizados para compreender a paisagem e experimentar novas geografias ilustradas no postal. O que daí advém, pela mão das crianças, serão “(…) devires minoritários que não aspiram imitar nada, modelar (…) mas interromper o que está dado e propiciar novos inícios” [3]. Rascunhando os postais o material produzido será a expressão do olhar das crianças na paisagem urbana, ao proporem novas perspectivas, usos e ocupações, elaborando novos sentidos espaciais e em última análise sugerindo a existência de uma outra cidade.

Com uma duração total aproximada de 120 minutos a actividade é estruturada em quatro momentos intercalados (teóricos e práticos) divididos da seguinte forma:

O primeiro momento tem como intenção aludir à discussão com o grupo de participantes sobre três conceitos estruturantes para a ciência geográfica: o conceito de espaço, de lugar e de paisagem. Nesta análise inclui-se uma questão de escala territorial bem como a percepção cognitiva daí interveniente no que diz respeito, acerca da representação de paisagem que o cartão-postal promove realizando-se discussões em torno das seguintes inquietações: “O que é um postal, o que representa, o que é a paisagem, como se lê a paisagem”.

Igualmente, este momento permite pensar o carácter mutável da paisagem. Se a paisagem muda ao longo do tempo, ela pode também ser lida por via das representações existentes nos cartões postais já que o postal ajuda a conhecer a cidade de Guimarães, revelando a dinâmica urbanística, o património material e algumas celebrações do património imaterial, hábitos sociais ou mesmo o “registo” de acontecimentos inéditos, como um grande nevão que ocorrera em 1901.

Praça do Toural com nevão. Circulado em 1902. Image © Postais Antigos da Cidade de Guimarães, 2013

O segundo momento versa sobre a ordenação, e a compreensão cronológica de um espaço particular e central da cidade. Dividido em grupos, os participantes devem ordenar desde os finais do século XIX até à actualidade oitos postais da mais emblemática praça de Guimarães, a praça do Toural, importante elemento na morfologia urbana de Guimarães, (figura 2). Um exercício no qual os jovens exploram o peso do passar do tempo, nas repercussões do crescimento e morfologia urbana.

Ordenação cronológica dos postais . Image © Laboratório da Paisagem, 2016
© Laboratório da Paisagem, 2016

O terceiro momento diz respeito à apresentação da ordenação correta e explicação cronológica dos postais, sendo particularizada o aprofundamento da evolução urbana da Praça do Toural sensivelmente desde o século XVIII até ao século XXI. Na ordenação dos postais, é explorada a paisagem urbana de Guimarães, no qual em grupo, compreende-se a diversidade da praça, explora-se as transformações ocorridas, as configurações de espaço público e privadas (materiais de construção, técnicas, disposições de mobiliário urbano) formas de habitação, status social (?), entre outras temáticas afetas.

Finalizada esta abordagem e a construção ordenada da evolução da Praça do Toural é iniciado o mote para o quarto momento.

No quarto momento por via de cópias A4 dos postais oficialmente vigentes em Guimarães, convida-se os grupos de participantes para a experimentação através dos mais diversos materiais, recortes, lápis de cera, marcadores, papel vegetal são alguns os materiais de trabalho utilizados para idealizarem a cidade de amanhã respondendo em grupo ou individualmente, às seguintes questões: o que propõens e/ou desejas para a cidade de Guimarães?

Os fundamentos, ilustrados no postal, não serão indiferentes à avaliação que fazem da situação urbana, às leituras de paisagem que realizam e à proposta de acções, e à expressão de valores individuais e de defesa de interesses articulares, de ação política, em máxima: as crianças são atores políticos, ainda que as competências políticas das crianças se façam prioritariamente nas interacções entre pares, e no espaço comum que partilham fora do olhar adulto.

Ilustração dos postais . Image © Laboratório da Paisagem, 2016

Sob um ponto de vista da participação infantil, existe hoje “um crescente reconhecimento da importância do envolvimento das crianças quanto à avaliação do ambiente envolvente e na definição de como os seus bairros ou cidades podem ser melhorados” [4].

As multiplicações da paisagem urbana de Guimarães como lugar de comunicação revelam pistas sobre como atentas às dinâmicas e ânsias de futuro, as crianças fornecem um testemunho da apropriação do espaço e paisagens urbanas.

© Laboratório da Paisagem, 2016

O direito à voz e à prática ocorre na expressão sobre os postais, no qual a sua participação se torna não apenas um objectivo em si mesmo, mas também um instrumento prático para a criação de melhores cidades.

Estas formas de colaboração entre as populações e a administração da cidade propõem a resolução de desafios com abordagens inclusivas o que possibilita: i) Reinventar soluções para desafios comuns; ii) cumprir novos modelos de participação e iii) criar valor acrescentado no espaço urbano.

© Laboratório da Paisagem, 2016

A atividade pretende reduzir a exclusão dos jovens na construção da paisagem urbana empoderando novas formas de participação democrática para uma vida urbana sustentável, ao mesmo tempo que promove uma sociedade mais coesa. Muitas das propostas feitas pelas crianças refletem problemas ambientais e urbanos e renovadas formas de utilização do espaço público. Para além deste tipo de processo de escuta para a transformação sustentável da cidade, a cidade está diretamente a conversar com as crianças, encorajando-as a participar mais ativamente na produção de uma paisagem urbana colaborativa.

Mais ou menos pragmáticas, as crianças reconhecem as suas próprias ideias e visões de cidade, multiplicando pensamentos entre pares, formando diálogos cruzados, com o fim último de exporem graficamente a sua visão.

© Laboratório da Paisagem, 2016
© Laboratório da Paisagem, 2016

A recente aceitação pela UNICEF de Guimarães como candidata a “Cidade Amiga das Crianças” pode elevar os resultados da iniciativa reforçando a pertinência da participação dos mais jovens no progresso das comunidades. Também o Laboratório da Paisagem, enquanto centro de interpretação e educação ambiental, mas também enquanto centro de investigação e desenvolvimento, tem como sua força motriz o envolvimento e participação dos jovens, reconhecendo o seu papel na construção de um território ambientalmente mais sustentável e de acordo com aqueles que são hoje os objetivos mundiais definidos.

Notas
[1] Trabalhos similares em torno dos postais e dos pensamentos e  práticas  possíveis, patentes em trabalhos de Ivânia Marques (2014) ou de Wenceslao Oliveira Jr (2009), incentivaram igualmente  o desenho desta atividade.
[2] Sontag, 2004, p.4.
[3] Kohan, 2007, p.97.
[4] Bartlett, 2002, p.3.

Referências
Ivânia Marques, “Lugares imaginários em cartão-postais”, em: Atas do XIV Colóquio Ibérico de Geografia: A Jangada de Pedra, Geografias Ibero-Afro-Americanas, p. 550-555, 2014.
Wenceslao Oliveira Jr, “Fotografias, geografias e escola”, em: Anais do 17º Congresso de Leitura, 1-9, 2009.
Miguel Sopas Bandeira, “Leituras da paisagem através de postais ilustrados: para uma sociosemiótica da imagem e do imaginário”, em: Geografia, Imagem e Ciberespaço: actas das V Jornadas de Geografia e Planeamento, 33-64, 2011.
Walter Omar Kohan, Infância, estrangeiridade e ignorância: ensaios da filosofia da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Sheridan Bartlett, “Building better cities with children and youth”, em:  Environmment and Urbanization,14 (2), 3-10, 2002.
Susan Sontag,  Sobre fotografia. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

Licenciado em Geografia e Planeamento, Mestre em Geografia – Planeamento e Gestão do Território e pós-graduado em Políticas Comunitárias e Cooperação Territorial pela Universidade do Minho, Ricardo Nogueira Martins é investigador em Geografia no Laboratório da Paisagem de Guimarães - Portugal.

Sobre este autor
Cita: Ricardo Nogueira Martins. "Cidade: a participação de todos na paisagem urbana / Ricardo Nogueira Martins" 26 Jun 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/874368/cidade-a-participacao-de-todos-na-paisagem-urbana-ricardo-nogueira-martins> ISSN 0719-8906

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