Parques latentes em São Paulo / Eloísa Balieiro Ikeda

Existe muita área verde em São Paulo. Em 2013, segundo o Observa Sampa[1], havia 14,07m² de cobertura vegetal pública por habitante, uma proporção que supera o mínimo de 12,00m² recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O mesmo instituto indicava também que neste ano 40,79% da área que ocupa a cidade era verde, índice reduzido em 5,78% em relação ao ano anterior. Se considerarmos a metrópole de São Paulo, essa proporção aumenta, pois são incorporadas vastas áreas rurais e de mata atlântica.

© IKEDA, 2016

A impressão que temos, porém, é de que a cidade é em grande parte impermeabilizada pelo concreto e de que não há possibilidades de contato suficiente com a natureza. Isso ocorre primeiramente porque as áreas verdes não estão dispostas de maneira homogênea pelo município, concentram-se em alguns bairros melhor planejados e sobretudo em zonas de matas remanescentes nos extremos norte e sul do município. Só a Área de Preservação Permanente Capivari-Monos, que ocupa uma ponta ao sul do município, possui mais de 250 milhões de m² [2], ou seja 16,5% da área total do município.Além disso, contribui para essa impressão de falta de vegetação urbana o fato das áreas verdes não representarem necessariamente lugares adequados para o uso do público. Muitos parques, jardins e praças não são projetados para receberem atividades de lazer e contemplação. Alguns desses locais são apenas áreas tomadas por matagais que os tornam inacessíveis, perigosos e redutos de entulho e lixo. Outros ainda são resíduos de um traçado rodoviário que gera canteiros centrais, rotatórias, sobras de alças viárias contornadas por um trânsito rápido, agressivo e poluente. Enfim, não são áreas verdes públicas voltadas para o lazer.

Canteiros verdes definidos por rodovias. Image © IKEDA, 2016

Esse dado de 2013 é importante para percebermos que há disponível em São Paulo uma boa parcela de área verde pública não explorada. Seriam esses os jardins, praças e parques latentes, que não são, mas poderiam vir a ser espaços para as pessoas ocuparem e usufruírem. Esse cenário de cidade árida, onde o concreto se impõe predominante em relação à vegetação, pode ser transformado pela qualificação das áreas verdes públicas existentes, de forma a criar uma rede de infraestrutura composta por polos de vegetação interconectados por corredores arborizados.

Essa medida se faz urgente na cidade de São Paulo. São Paulo precisa ser mais vegetada e de modo capilar, percorrendo todas as suas vias e se alargando em jardins, praças e parques, nas escalas do bairro à metrópole. Faltam calçadas arborizadas e matas ciliares que filtrariam as irradiações solares e a própria poluição e reconstituiriam um microclima ameno e agradável, elevando a umidade do ar e reduzindo as temperaturas. Faltam gramados extensos para o descanso e passeio, entre sombras das copas e clarões para a entrada do sol, quando desejada. Precisamos caminhar sob sombras de grandes copas de árvores, respirar o ar umedecido pela vegetação, olhar a paisagem efêmera ao longo das estações, composta de flores, frutos e folhas. Ao contrário, a sensação que temos ao perambular pela cidade é de incômoda aridez sob o calor extremo nos dias de verão que se intensifica com a fumaça de carros e com a irradiação e reflexão de superfícies de asfalto, concreto e vidro.

Parques Fluviais

24 dos 109 parques de São Paulo são chamados lineares devido à sua localização que acompanha os rios. A oportunidade de ocupar as margens dos rios com parques que chamaremos aqui de parques fluviais, para enfatizar o seu eixo estruturador primordial, poderia ser, entretanto, multiplicada pelo número de rios que irrigam o município, mais de 300, segundo mapa disponibilizado pela Prefeitura de São Paulo[3]. A rede hídrica seria assim uma base natural para disposição dos parques urbanos de modo homogêneo, espalhado por todos os bairros. Os rios nascem e descem morros, colinas e irrigam as encostas e planícies onde se estabelece São Paulo, percorrem toda a área que a cidade ocupa, formando assim uma rede natural que orientaria o desenho das áreas verdes públicas.

Um sistema de parques fluviais poderia ser implantado às margens de riachos, córregos, canais e rios, formando redes arborizadas que reestruturariam a cidade de forma a garantir a presença constante dos elementos fundamentais: água e vegetação. Além do benefício direto aos usuários, áreas verdes contínuas tecendo a área urbanizada formariam também caminhos para a fauna, corredores de pássaros e pequenos insetos, que poderiam encontrar um ambiente mais apropriado nessas circunstâncias.

Esquema de Infraestrutura azul e verde: águas fluviais e parques, praças e jardins. Image © IKEDA, 2016

A realização desse projeto de cidade seria facilitada pelo fato de muitas das áreas de mananciais e às margens dos cursos d’água permanecerem públicas. Ou seja, não haveria a necessidade de desapropriação, um processo longo, demorado e por vezes, inviável. Mesmo se tamponados por lajes ou canteiros centrais de avenidas, esses espaços públicos poderiam ter seu uso modificado, retomando o espaço dos rios e de suas orlas.

Parque da Raia Olímpica USP

Um dos parques fluviais em potencial, o parque da raia olímpica USP, está localizado no leito maior do rio Pinheiros, ou seja, na área da planície fluvial, onde o rio se espraiava nas épocas de cheia antes de ser retificado e canalizado. 

Raia olímpica da Cidade Universitária, São Paulo. Image © Eloísa Balieiro Ikeda

A raia é cercada por alambrados e tem sua entrada controlada, permitida apenas para a prática do esporte. Sua vocação para parque é, entretanto, evidente. A avenida Professor Mello Moraes que margeia os 2.1km de raia é bastante frequentada para atividades como caminhada, corrida, ciclismo, ao longo de todo o dia, das 6h até 0h. Grupos de atletas se organizam para praticar o esporte coletivamente, formam massas que ocupam uma e por vezes duas pistas dessa avenida e de outras dentro do campus. Reunir-se em grupos minimiza o risco de atropelamento, mas não o anula. Principalmente no cair da noite, a prática pode ser perigosa, visto que a avenida tem iluminação insuficiente e em momentos é bloqueada pelas copas das árvores. Além disso, o asfalto para carros não é o piso ideal para a atividade. É esburacado, tem uma inclinação acentuada para drenagem da água e, obviamente, é exclusivamente destinado a veículos. 

Gramado às margens da raia olímpica, área de uso controlado, cercada por alambrado. Image © Eloísa Balieiro Ikeda
. Rio Pinheiros na altura do Butantã, mostrando poços de areia (descobertos) para a exploração de areia.. Image © Acervo da Fundação de Energia e Saneamento.

Os elementos estruturais da paisagem já existem: o corpo hídrico, a raia, um lago de 2.100m x 100m, e a arborização densa e robusta nas margens d’água e no canteiro central da avenida Professor Mello Moraes. A proposta de projeto apresentada no mestrado: São Paulo – Paris, metrópoles fluviais. Projeto de arquitetura para as orlas do canal Pinheiros, córrego Jaguaré e córrego Água Podre, incorpora três das seis pistas da avenida marginal à raia, além do canteiro central que chega a ter 25 m de largura. A avenida ainda teria 12m de largura, contando com duas faixas para ônibus de 3.5m de largura e mais duas pistas para veículos de 2.5 m de largura cada, mantendo o percurso de duas mãos. Assim, a orla da raia olímpica teria até 75m de largura, ao longo de seus mais de 2km, espaço que poderia ser utilizado para o passeio de pedestres e ciclistas, para áreas de estar e contemplação, e para a instalação de equipamentos de ginástica, brinquedos para crianças e até mesmo piscinas públicas cobertas e descobertas.

O projeto para a raia também propõe edificações no seu entorno com usos voltados à universidade. Seriam dois pavimentos para comportarem laboratórios de pesquisa, além de alguns estabelecimentos de comércio e serviço de escala local, e mais outros seis pavimentos de habitação estudantil. As orlas da raia seriam ligadas por passarelas que tornariam a transposição desse corpo d’água mais prática e adequada para pedestres.

Raia olímpica da USP ao centro da imagem. Image © Google Maps

A transformação da raia atenderia a uma demanda latente no seu entorno. É um desperdício ter uma área pública de mais de 300.000m² cercada e destinada apenas aos praticantes de canoagem e remo, que são poucos. O lago da raia seria o maior lago em parques de São Paulo, depois das represas Billings e Guarapiranga, que possuem outra escala e outras funções. Para efeito de comparação, as áreas dos lagos do parque Ibirapuera somam 157.000m², enquanto que a raia possui 210.000m².

Alunos da FAUUSP com os professores Marta Bogéa, Alexandre Delijaicov e Angelo Bucci, sentados no cais flutuante da raia olímpica. . Image © Eloísa Balieiro Ikeda

Por último, apresentamos abaixo uma imagem comparativa, na mesma escala, da raia olímpica da USP e da Bacia de la Villette, em Paris. A Bacia, que já teve um entorno industrial que a destituía do seu potencial atrativo, é hoje um dos pontos mais frequentados para o lazer na capital francesa. Os galpões laterais, na sua extremidade, foram adaptados para abrigarem salas de cinema, e as ruas lindeiras são ocupadas por comércio e serviço que trazem movimento constante para as orlas desse corpo hídrico, além das próprias embarcações atracadas que funcionam como livrarias, restaurantes e bares. A raia olímpica da USP, com uma área que corresponde a quatro vezes a área da Bacia de la Villlette, poderia ser mais um parque para São Paulo, entre campus e canal Pinheiros, revelando a imensa possibilidade de lazer nas bordas d’água.

Raia olímpica da USP e Bacia de la Villette em Paris, fotos aéreas na mesma escala. . Image © Google Maps
Bacia de la Villette, Paris. . Image © Eloísa Balieiro Ikeda

NOTAS:

[1] Geosampa, Sistema de Consulta do Mapa Digital da Cidade da Prefeitura de São Paulo
[2] Geosampa, Sistema de Consulta do Mapa Digital da Cidade da Prefeitura de São Paulo
[3] Observatório de Indicadores da cidade de São Paulo da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo

Este artigo tem como base a dissertação de mestrado: IKEDA, Eloisa Balieiro. São Paulo - Paris, metrópoles fluviais. Ensaio de projeto de arquitetura das orlas do canal Pinheiros inferior, córrego Jaguaré e córrego Água Podre. 2016. Dissertação (Mestrado em Projeto de Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16138/tde-16022017-111213/>.

Eloísa Balieiro Ikeda é arquiteta formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e pela École Nationale Supèrieure d’Architecture de Grenoble (ENSAG) e mestra também pela FAUSP. É pesquisadora do Grupo Metrópole Fluvial do Laboratório de Projetos da FAUUSP, coordenado pelo Professor Doutor Alexandre Delijaicov.

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Sobre este autor
Cita: Eloísa Balieiro Ikeda. "Parques latentes em São Paulo / Eloísa Balieiro Ikeda" 20 Abr 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/869550/parques-latentes-em-sao-paulo-eloisa-balieiro-ikeda> ISSN 0719-8906

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