Fungiverso. Viagem às bioarquiteturas do futuro

A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem enfrenta-se com diversas alternativas opta por uma e elimina as outras; na quase o indissolúvel Ts'ui Pên, opta -simultaneamente- por todas. Cria, assim, vários futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance.

                                                   J. L. Borges, El jardín de los senderos que se bifurcan

FUNGIVERSO [1] é uma proposta conceitual que especula sobre as possíveis relações futuras entre a biotecnologia e seu contexto cultural, a partir da correlação entre método construtivo e formas de habitar. A trama desenrola-se em cinco cenários, cinco mundos que, descritos por um misterioso visitante através de postais e detalhes construtivos, divergem simultaneamente.

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

Biodesenho e cultura

A biologia sintética consiste na criação e redesenho de sistemas vivos -ou seus componentes-, a partir da programação de sequências de DNA coerentes e funcionais. Atualmente, a antiga transferência de tão somente um par de genes vem sendo superada pela produção de um genoma completamente sintético (Gibson et al., 2010). As vias reguladoras dos organismos são modificadas inserindo sequências artificiais de genes para prover de novas funções as células e o organismo. Nesse contexto, tem-se buscado definir um "genoma mínimo" experimentando com algumas bactérias caracterizadas por possuir genomas pequenos (Mycoplasma mycoides), nas quais se reduz a quantidade de bases nitrogenadas até que o organismo não possa sobreviver: o tamanho e a estrutura do genoma nesse momento será o limite - sempre hipotético- para definir e compreender a estrutura genética menor possível que possa sustentar os processos vitais. Esta estrutura mínima formaria o suporte fundamental para a vida, e portanto para a utilização dos biocircuitos de DNA.

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

A partir da biologia sintética surge, então, uma série de questões éticas: a posição do ser humano ao manipular ou criar vida, o alcance dessas ações na sociedade e os ecossistemas, ou as relações de poder que silenciosamente determinam as decisões que dirigem laboratórios e grandes consórcios. Nesse contexto nos declaramos ao mesmo tempo apocalípticos e integrados (Cfr. Eco, 1964/1984); apocalípticos porque cremos no impacto iminente e imanente da biologia sintética, especialmente no biodesenho, terá em nosso mundo tal como o conhecemos, e integrada porque decidimos não ignorar a sua utilização, não nos opomos a priori-, mas refletir a partir de perguntas que podem lançar luz sobre uma tecnologia cuja democratização não está garantida.

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

Biodesenho e arquitetura 

Atualmente, como resultado de colaborações interdisciplinares, a biologia sintética e o projeto tem convergido no biodesenho; disciplina onde os organismos de laboratório são utilizados como matéria prima para o estudo, a experimentação e a produção de novos materiais a partir de seres vivos (Rodrigo & Jaramillo, 2013). Nesse sentido, o biodesenho compreende não somente a programação genética, mas a manipulação em geral dos organismos, sejam bactérias, fungos ou outros seres, para criar objetos e produtos.

O projeto e seu inesgotável desejo pelo controle da matéria e da forma, traduz-se no campo da arquitetura e a construção na necessidade de elaborar materiais discretos como tijolos, ripas de madeira, painéis de vidro, vigas de aço, etc. Em suma, os blocos com os quais nós concebemos nossos edifícios e objetos. Este fenômeno foi reiterativo na evolução das diferentes tradições de construção e reaparece no Biodesenho, reapresentando fungos e bactérias como materiais de construção. As maneiras pelos quais esses biomateriais aparecem no mercado mostram como uma tecnologia nova é homologada às tradições construtivas existentes. [2]

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

No caso da utilização dos fungos como biomaterial, estes, tal como se fossem argila, são postos em moldes e uma vez que chegam ao volume desejado é necessário matá-los em fornos de altas temperaturas para deter seu crescimento. No projeto desse processo construtivo evidenciam-se ao menos duas coisas: por um lado, a rápida apropriação dessa tecnologia por parte da indústria cultural (Cfr. Adorno, T. & Horkheimer, M., 1944/1988), ou seja, que sua adoção esvaziou a priori a possibilidade de gerar dúvidas sobre os vários âmbitos da técnica -desde os formais até os epistemológicos-, no sentido de alcançar uma receita facilmente digerível pelo mercado; e, por outro, o evidente impulso da indústria para controlar a matéria, enraizadas em sistemas de estandardização e de certificação ao que um novo material deve ser enviado antes de seu lançamento. No entanto, a origem deste universo construtiva, que não foi criado ou concebido por seres humanos, mas a partir de sistemas vivos com lógicas formais e temporais de crescimento autônomos e dependente de variáveis ambientais. Deveríamos estar falando aqui em primeiro lugar, de sistemas emergentes, de metabolismo e os ciclos de carbono e nitrogênio, da colonização de substratos e simbiose, em vez da moldagem. Em outras palavras, a nossa proposta é perguntar sobre as possibilidades do material com que trabalhamos, antes de truncar-lo a fim de torná-la familiar.

Não resta dúvida que é possível gerar uma técnica que possa associar biologia e arquitetura, vinculando pela primeira vez dois universos construtivos antes estranhos entre si. Mas é impossível prever o que sucederá com esta tecnologia no mundo. O vínculo gerado pela biologia sintética é somente o detonante do que eventualmente poderia ser a especulação imobiliária baseada nas taxas metabólicas do micélio, ou a obsolescência bio-programada do projeto, etc. Não é, portanto, viável ter uma interpretação unívoca da biossíntese. A noção de presente requer a esquizofrenia do futuro.

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

Ficção e especulação

A ficção científica é uma espécie de alquimia, com as suas próprias regras ocultas, que transmuta os nossos desejos mais profundos em distintos mundos e delírios. É por isso que acreditamos que é a ferramenta apropriada para, desde o futuro, especular sobre o presente. As imagens que confeccionamos, as histórias que contamos, nos trazem para as margens do nosso tempo. Então, através de ficção científica, propomos uma série de perguntas para o cosmos, mas não esperamos sua resposta; ávidos de curiosidade nos dedicamos a esboçar nossas próprias respostas, que bifurcam nosso universo conhecido em várias dimensões. Porque, para nós, estas estradas são desenvolvidas simultaneamente, este exercício visa explorar algumas delas como mundos paralelos, discretos e coerentes, centrando a discussão sobre as possibilidades de controlar a técnica biossintética, e, portanto, o controle dos processos biológicos. Este trabalho revela a verdadeira missão: a tentativa de controlar nós mesmos e o mundo controlar. E, no entanto, encontramos sempre um limite, as leis invisíveis proclamados pela tangível queda de um objeto, ou a transcrição de um gene associado a enzimas metabólicas. Leis externas.

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

Por esta razão, optou-se por fazer perguntas à biossíntese sobre sua relevância, sua pertinência e abrangência. A exploração de qualquer tecnologia requer, antes, de um processo de questionamento sobre como pensar sobre isso, especialmente quando se trata de interagir com os organismos vivos. Confrontado com o desenvolvimento iminente desta tecnologia nós queremos saber qual será a relação entre projeto e biologia? Qual é a relação entre esta disciplina e desenvolvimento da espécie humana? Como o Biodesenho transformará o nosso meio ambiente? Em que medida essas novas tecnologias redefiniram os modos e as relações de produção?

Prevemos em um futuro próximo algumas destas explorações traduzidas em provas em laboratórios, protótipos e sistemas construtivos. No momento, apenas especulamos.

Cortesia de Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti

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[1] Texto realizado a partir do trabalho desenvolvido no primeiro Workshop Biodesign da Pontificia Universidad Católica, organizado por Alejandro Soffia e Fernán Federici em maio de 2016.

[2] Exemplos dessa lacuna entre o desenvolvimento da técnica construtiva e sua forma são muitos: a partir da incorporação de elementos de construção em madeira na arquitetura grega clássica em pedra para a construção concreta de detalhes neoclássicos no Chile durante o século XX. Neste último caso, Cfr. Torrent, H. (1995). Bellas Artes, Técnica y Arquitectura en Sudamérica: La Biblioteca Nacional en la modernización de Santiago de Chile. ARQ, (29), 2 - 5.

Referências
Adorno, T. & Horkheimer, M. (1988). La industria cultural. Iluminismo como mistificación de masas. En Dialéctica del iluminismo. Buenos Aires, Argentina: Sudamericana. (Obra original publicada em 1988). 

Eco, U. (1984). Apocalípticos e integrados. Barcelona: Lumen. (Obra original publicada em 1964).

Gibson, D., Glass, J., Lartigue, C., Noskov, V., Chuang, R., Algire, M.,… Venter, C. (2010). Creation of a Bacterial Cell Controlled by a Chemically Synthesized Genome. Science, 329 (5987), 52-56.

Rodrigo, G. & Jaramillo, A. (2013). AutoBioCAD: Full Biodesign Automation of Genetic Circuits. ACS Synth. Biol., 2 (5): 230-236.

Torrent, H. (1995). Bellas Artes, Técnica y Arquitectura en Sudamérica: La Biblioteca Nacional en la modernización de Santiago de Chile. ARQ, (29), 2 - 5.

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Sobre este autor
Cita: Jens Benöhr Riveros, Aníbal Fuentes Palacios, Hans Besser Kerrigan, María Alcira Soto Rovaretti. "Fungiverso. Viagem às bioarquiteturas do futuro" [Fungiverso. Viaje a las bioarquitecturas del futuro] 24 Fev 2017. ArchDaily Brasil. (Trad. Souza, Eduardo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/806036/fungiverso-viagem-as-bioarquiteturas-do-futuro> ISSN 0719-8906

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