Depois do êxodo rural / Álvaro Domingues

Depois do êxodo rural / Álvaro Domingues

No tempo em que os animais não falavam, distinguia-se muito bem a cidade do campo – a cidade era urbana e o campo era rural. Simplicíssimo. Assim são as definições claras que tudo explicam pelo que claramente precisa de ser explicado e vice-versa. Nessas idades tautológicas ainda nem sequer tractores havia para revolver e amaciar a terra. Trabalhava-se de sol a sol, esperava-se o bom tempo, o calor e a chuva quando fizessem mais falta, pelo S. Miguel eram as colheitas e Santiago pinta o bago. Nas romarias estrelejavam foguetes, sermões e missas cantadas, longas procissões e malgas de vinho para os farnéis.

A cidade resplandecia. Toda a porcaria que por lá houvesse – e era muita devido aos grandes ajuntamentos de gente, lixo e cavalgaduras -, tornava-se coisa sem importância face aos grandes prodígios civilizacionais que constantemente aí se revelavam. Tristeza e bairros pobres também havia, mas o bulício das avenidas, os domingos, as marchas militares, os monumentos, a luz e as montras de Natal faziam crer que talvez isso um dia se resolvesse e toda a cidade se reinventaria de novo, candeeiros altos e edifícios mais azuis e brilhantes que um céu descoberto.

A certeza disto era tanta que os camponeses resolveram deixar as suas leiras e fizeram-se ao mundo em busca da cidade urbi et orbi. Foi o êxodo rural (não confundir com certos relatos bíblicos sobre a fuga organizada à escravidão em demanda pela Terra Prometida por passagens a pé enxuto num mar vermelho), a deserção radical para escapar ao mau viver e a miragem de um mundo melhor algures nos prédios azuis brilhantes. Foi uma debandada geral e por isso o rural acabou. A terra endureceu e no Verão, gretada pela falta de água das levadas que lá não chega, só nasce erva rala e já seca. É a nova versão das culturas minimais de sequeiro. Os pequenos cultivos, poucos, mudaram-se para as redondezas dos edifícios azuis onde estão mais protegidos dos raios ultravioletas e das inclemências do vento – são as hortas urbanas assim chamadas porque o adjectivo rural que tinham implícito ganhou oídio, encarquilhou e feneceu-se.

Insinua-se agora um movimento em sentido contrário. Enganado pela miragem da prosperidade na cidade agora espalhada por todo o lado, o povo procura voltar ao que nada resta dos campos de outrora. Deambula, simplesmente. Numa espécie de transurbância por perto e ao longe, ora terra desidratada, ora edifícios azuis, andam estas criaturas de perna fina e orelha cabisbaixa como se fossem rebanho, ausentes, indefesas, esquecidas de escornear e de proteger os filhos dos lobos.

Diz então a da frente a modos que perguntadeira ruminante: porque não apressais o andar dessa lentidão de cabeça baixa? acaso pensais que seja lá para onde formos não haverá lugares melhores que este? haveis perdido a memória dos prados, das montanhas, do cheiro da erva retouçada, do chocalho ao pescoço património da humanidade, da cisma dirigista dos cães, do pastor solitário esquecido da flauta e sem rede para os SMS, que sei eu? da carga de carraças nas orelhas? da palha e do estábulo sem este faiscar azul? Cantai, pois, animais. Animai-vos!

Sobre este autor
Cita: Álvaro Domingues. "Depois do êxodo rural / Álvaro Domingues" 27 Jan 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/804186/depois-do-exodo-rural-alvaro-domingues> ISSN 0719-8906

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