Micro-utopias: Can you see me Now? Dos jogos e da liberdade

Os servidores de Pokémon Go foram liberados para o Brasil e a febre que podíamos observar em outros países passou a ter sua equivalência agora em terras brasileiras. Com a chegada do jogo, e a dissipação de seu impacto inicial, passamos a nos deparar com questões de fundo, ainda muito delicadas no contexto de uma sociedade digital. Tais questões envolvem desde a privacidade de nossos dados, a distribuição espacial desigual dos pontos de interesse e até mesmo micro transações financeiras estimuladas dentro desse tipo de interface e sua influência sobretudo em crianças e jovens. Naturalmente, meu intuito aqui não é o de responder tais questões, já que carecem de uma discussão ainda mais cuidadosa no futuro, porém não se pode deixar de reconhecer que tais impactos para além de meramente benéficos ou perversos afetam nosso cotidiano e direcionam nossos comportamentos.

Em seu influente livro de 1938, Homo Ludens [1], o teórico cultural Johan Huizinga argumentou que o jogo é condição essencial para o desenvolvimento das culturas. Contudo, com a escalada tecnológica nossa relação com o jogo tem se transformado substancialmente, ou seja, se estamos conectados permanentemente a estruturas de jogo via dispositivos móveis - como celulares e tablets - como podemos distinguir quando estamos jogando ou não? Quando é tão comum ler e ouvir a respeito das smart cities, metadados, algoritmos ou mesmo do conceito de gamificação, amplamente utilizado por aplicativos para estimular e recompensar certos comportamentos dos seus usuários/jogadores - como por exemplo um check-in em um estabelecimento comercial - devemos nos manter atentos a um progressivo e possivelmente irreversível cerceamento de nossas liberdades, o que o filósofo Tcheco, naturalizado brasileiro Vilém Flusser apontou como sendo o domínio do homem por seus aparelhos [2]: nos tornamos assim funcionários dos dispositivos que criamos. Existiria ainda alguma alternativa? Para Flusser, a possibilidade residiria no jogo.

A migração dos jogos eletrônicos para a rua não foi iniciada por Pokémon Go. A integração de espaços físicos em sistemas híbridos de jogos abrindo possibilidades para a interação não é fenômeno assim tão recente, embora atualmente seu alcance seja potencializado pela maior disseminação de informação. Baseando-se essencialmente na noção de uma materialidade espacializada e ubíqua da tecnologia com acesso a dispositivos móveis com crescente poder de processamento e a difusão das redes wifi e GPS, o espaço híbrido do jogo passa a considerar a localização física e geográfica do jogador e um exemplo em particular figura entre as mais significativas experiências nesse campo, o jogo “Can You See Me Now?”, de 2001.

Can You See Me Now? (CYSMN) [3] é um jogo pervasivo [4], criado pelo coletivo artístico Blast Theory [5] em colaboração com o Mixed Reality Laboratory [6] da Universidade de Nottingham. Foi jogado pela primeira vez na cidade de Sheffield, em 2001, e desde então, em inúmeras outras cidades ao redor do mundo. CYSMN pode ser definido ao mesmo tempo como uma intervenção artística e como um veículo para pesquisa em mídias locativas sob a forma de um jogo de captura em que cerca de 20 jogadores online são perseguidos através de uma simulação urbana por 4 jogadores de rua chamados “corredores” ou “runners”, equipados de um mapa digital mostrando a posição em tempo real de todos os jogadores. O objetivo é simples e direto, os runners devem descobrir e capturar os avatares que se escondem na simulação correspondente da cidade onde se passa o jogo.

Para além de uma possível construção narrativa colocada pelo próprio nome do jogo, CYSMN é um estudo sobre incertezas na cidade e sobre laços entre o mundo digital e o real. O espaço da cidade nesse caso não é mera alegoria ou tampouco construção narrativa, mas sim híbrido entre físico e digital, tempos justapostos. Na introdução do livro Space Time Play - Computer games, Architecture and Urbanism: The Next Level, Borries, Walz e Böttger [7] argumentam que o espaço dos jogos pervasivos abandona assim a representação bidimensional de espaços tridimensionais para complexas construções sociais e interações entre espaços físicos existentes e seus jogadores. Os jogos pervasivos podem tanto ser a reinterpretação de jogos clássicos para o ambiente físico, como construções poéticas mais complexas, como no caso do jogo CYSMN. O potencial de jogos como esse reside na consideração de incertezas como parte integrante e essencial do jogo e como formas para a apropriação lúdica do espaço das cidades.

NOTAS
[1] HUIZINGA, J. Homo Ludens: A Study of the Play Element in Culture. Fourth Printing Thus edition ed. Boston: Beacon Press, 1964.
[2] FLUSSER, V. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: AnnaBlume, 2008.
[3] http://www.blasttheory.co.uk/cysmn/tate/en/intro.php
[4] http://www.archdaily.com.br/br/791775/pokemon-go-jogos-pervasivos-e-espacos-urbanos-ampliados-diego-fagundes
[5] http://www.blasttheory.co.uk
[6] https://www.nottingham.ac.uk/research/groups/mixedrealitylab/index.aspx
[7] BORRIES, F. VON; WALZ, S. P.; BÖTTGER, M. Introduction. In: Space Time Play - Computer games, Architecture and Urbanism: The Next Level. 1 edition ed. Basel; Boston: Birkhäuser Architecture, 2007. p. 10–13.

Sobre este autor
Cita: Diego Fagundes. "Micro-utopias: Can you see me Now? Dos jogos e da liberdade" 16 Ago 2016. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/793401/micro-utopias-can-you-see-me-now-dos-jogos-e-da-liberdade> ISSN 0719-8906

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