Cidades Informais: sistemas, normas e desenho como pergunta

Originalmente publicado em ArquitecturaAhora, a arquiteta Camila Cociña aborda o surgimento e desenvolvimento do conceito de 'informalidade' quando se trata de cidades informais, de presença marcada no Sur Global. Desde os informativos do inglês John Turner surgidos no calor da experiência no Peru dos anos sessenta até as intervenções em grande escala em Medellín pós-Pablo Escobar e as favelas do Rio de Janeiro, Cociña abre-se a discussão sobre a verdadeira capacidade da nossa disciplina para reconhecer e atuar 'em sistemas de normas distintas às institucionalizadas'.

A discussão sobre o papel dos arquitetos e planejadores urbanos na cidade informal não é nova. Quando Rem Koolhaas decide dedicar, ao mesmo tempo que desenhava edifícios corporativos com tecnologia de ponta, um trabalho de viés artístico e pretensões sociopolíticas sobre Lagos (Nigéria), apresenta - no formato de vídeo com uma dose de intriga para o espectador - um manisfesto sobre a atenção que, inclusive um archstar como ele é, estava dando ao Sur Global.

Favela Morro Do Prazeres no Rio de Janeiro. Imagem © PROdany13 sob licença CC BY 2.0

A pergunta que resulta mais relevante deveria ser ao contrário: não se trata de encontrar o espaço para o desenvolvimento disciplinar e de autoria de obra em certas condições urbanas, mas sim, reconhecer as necessidades na cidade informal que requer de conhecimentos presentes nas capacidades de desenho.

Haveria de partir por entender o que é a 'informalidade', desde os anos sessenta, junto com os primeiros sinais da crise do projeto moderno, a informalidade tem sido o tema central para as ciências sociais. Sem ânimo de fazer uma análise extensiva de suas múltiplas definições e, seguindo a que costuma dar o sociólogo Jorge Fiori, se considera assentamentos informais aqueles que se desenvolvem com sistemas de normas fora das regras institucionalizadas e que são, além de tudo, territórios com níveis de produtividade muito baixa. O relevante aqui é que se trata de 'sistemas de normas', que por mais que estejam fora das leis institucionalizadas, não por isso são inexistentes.

Medellín, Colombia. Imagem © Iván Erre Jota sob licença CC BY 2.0

Já nos anos setenta o arquiteto inglês, John Turner, vivenciando assentamentos informais do Peru, elaborou um extenso trabalho sobre os valores da autoconstrução, questionando o papel de arquitetos e urbanistas em contextos de produção informal da cidade, com especial foco na ideia de 'processo', em trabalhos como “Freedom to build” (1972) e “Housing by people” (1976).

Desde uma perspectiva de mercado, o economista peruano Hernando de Soto (2000) discutiu como os ativos na cidade informal possuem um valor cativo, sendo necessário incorporar tais ativos ao mercado informal para eliminar a pobreza urbana. Em contraste à isso, o trabalho de autores como Ananya Roy (2009), desde uma perspectiva pós-colonial, referes-se ao trabalho de De Soto como 'populismo neoliberal', fazendo um chamado para entender a informalidade como um 'idioma' da urbanização, um sistema de normas com o qual a arquitetura, o urbanismo e finalmente, a política, devem interagir e não negar.

Entendendo este último, é relevante questionar-se o papel do desenho na sua capacidade de ler e atuar sobre sistemas de normas distintas as institucionalizadas. Desde a academia e da profissão existiram esforços nesta direção. Sem ânimo para construir um catálogo exaustivo, a publicação de “Rethinking the Informal City” (Hernandez et al, 2010) representa um esforço chave em tal direção; o trabalho “Spatial Agency” (Awan et al., 2011), apesar de não tratar diretamente com a informalidade, cria um catálogo de obras que foram capazes de ter agência sobre sistemas (formais e informais), mais além da sua própria materialidade.

No campo da profissão, diversas experiências compreenderam que a maneira de interagir com territórios informais sem recorrer ao paradigma moderno da tabula rasa, é precisamente atendendo tais sistemas: exemplos governamentais na América Latina como o de Medellín (Davilla, 2013) e mais notoriamente por sua ambiciosa escala, o programa "Favela Bairro" no Brasil (Fiori et al, 2001), tratam justamente disso. Na mesma direção, o trabalho feito na Ásia desde a sociedade civil pela Asian Coalition of Housing Rights (ACHR) e sua colaboração com Community Architects Networks (CAN), tem assinalado através de processos mapeamento e desenho participativo, assim como a organização de comunidades.

Em todos estes casos, o desenho torna-se uma pergunta por sistemas e normas, e pela capacidade de engatilhar processos, conectar territórios e dotar de atividade espaços e pessoas. Arquitetos e urbanistas souberam historicamente adaptar seu trabalho com os sistemas não-formalizados nos quais habitam milhões de pessoas torna-se hoje imperativo para diminuir desigualdades e injustiças, colaborando com o conhecimento próprio das disciplinas de projeto na construção de uma maior justiça social e espacial.

Referências

Awan, N., Schneider, T., Till, J. (2011) Spatial Agency: Others way of doing Architecture. London: Routledge

Dávila, J. (Ed.) (2013). Urban Mobility and poverty. Lessons from Medellín and Soacha, Colombia. London: Development Planning Unit.

De Soto, H. (2000). The mystery of capital: Why Capitalism Triumphs in the West and Fails Everywhere Else.New York: Basic Books.

Fiori, J., Riley, E., & Ramírez, R. (2001). “Physical Upgrading and Social Integration in Rio de Janeiro: the Case of Favela Bairro”, DISP 147, N.4, Zurich, 48-60.

Hernández, F., Kellet, P. & Allen, L.K. (Eds.) (2010). Rethinking the Informal City. Critical Perspectives from Latin America, Berghahn Books.

Roy, A. (2009). Why India Cannot Plan Its Cities: Informality, Insurgence and the Idiom of Urbanization. Planning Theory, 8(1), 76–87.

Turner, J. & Fichter, R. (1972). Freedom to Build: Dweller Control of the Housing Process. New York: The Macmillan Company.

Turner, J. (1976). Housing by people: towards autonomy in building environments. London: Marion Boyars.

Sobre este autor
Cita: Cociña, Camila. "Cidades Informais: sistemas, normas e desenho como pergunta" [Ciudades informales: sistemas, normas y el diseño como pregunta] 20 Mar 2016. ArchDaily Brasil. (Trad. Sbeghen Ghisleni, Camila) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/784041/cidades-informais-sistemas-normas-e-desenho-como-pergunta> ISSN 0719-8906

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