Figuras, Portas e Passagens / Robin Evans

Coisas ordinárias contêm os mais profundos mistérios. No início é difícil ver no layout convencional de uma casa contemporânea qualquer coisa senão a cristalização da fria razão, necessidade e o óbvio, e por causa disso nós somos facilmente levados a pensar que uma mercadoria tão transparentemente não excepcional deva ser forjada diretamente a partir de coisas de básicas necessidades humanas. De fato, praticamente todos os estudos sobre o habitar, qualquer que seja seu escopo, são fundados sobre esse pressuposto. ‘A luta por encontrar um lar’, declara um especialista proeminente, ‘e o desejo pelo abrigo, privacidade, conforto e independência que uma casa pode prover, são familiares por todo o mundo.’[1] Desde tal ponto de visão as características do habitar moderno parecem transcender nossa própria cultura, sendo erguida ao estado de requisitos universais e atemporais para uma vida decente. Isso é facilmente bem explicado, já que todas as coisas ordinárias parecem a uma vez neutras e indispensáveis, mas isto é uma ilusão, e uma ilusão com consequências também, à medida que esconde o poder que o arranjo costumeiro do espaço doméstico exerce sobre nossas vidas, e ao mesmo tempo oculta o fato de que essa organização tem uma origem e um propósito. A busca por privacidade, conforto e independência através da agência de arquitetura é bastante recente, e até quando essas palavras vieram por primeira vez à cena e eram usadas em relação aos assuntos domésticos, seus significados eram bem diferentes desses que nós entendemos agora. Assim o seguinte artigo é uma tentativa um tanto quanto crua e esquemática por descobrir apenas um dos segredos do que é agora tão ordinário.

A planta e seus ocupantes

Se alguma coisa é descrita por uma planta arquitetônica, é a natureza dos relacionamentos humanos, já que os elementos cujo traço ela registra –paredes, portas, janelas e escadas– são empregados primeiro para dividir e então seletivamente para re-unir o espaço habitado. Mas o que é geralmente ausente até mesmo nos edifícios mais elaboradamente ilustrados é a maneira com a qual figuras humanas irão ocupá-lo. Isso pode ser por boas razões, mas quando figuras de fato aparecem em desenhos arquitetônicos, elas tendem a não ser criaturas substanciais mas emblemas, meros sinais de vida, como, por exemplo, os contornos amebianos que aparecem nos layouts ‘Parker-Morris’.

Seguramente, entretanto, se o círculo fosse ampliado para assimilar material além de desenhos arquitetônicos, se poderia esperar que houvesse algum cálculo entre os lugares comuns do planejamento habitacional e as maneiras ordinárias nas quais as pessoas se dispõem em relação umas às outras. Isso pode parecer uma estranha conexão para fazer de início, mas por mais diferentes que sejam –por mais realísticas e particulares as descrições, imagens ou fotografias de homens, mulheres, crianças e outros animais domésticos fazendo o que eles fazem, por mais abstratas e diagramáticas as plantas– ambas se relacionam de volta à mesma questão fundamental dos relacionamentos humanos.

Tome o retrato de figuras humanas e tome plantas de casas de um determinado tempo e lugar: olhe para elas juntas como evidência de um modo de vida, e o acoplamento entre a conduta cotidiana e a organização arquitetônica pode se tornar mais lúcido. Esse é o simples método adotado no que se segue, e essa é a esperança contida nele.

A Madonna num recinto

A obra de Raphael como pintor e arquiteto oferece uma conveniente abertura nesse assunto, se somente porque ele dá uma clara indicação que o ideal de domesticidade reclusa é mais local do que estamos inclinados a pensar. É claro que essa não é uma tentativa de revisar obra inteira de Raphael; a intenção é simplesmente extrair de sua arte e arquitetura a evidência de um particular temperamento em direção aos outros o qual é implícito nela e indicativo do tempo, não só em arte mas em transações diárias.

2. Virgem e Menino com Santos, Ercole de' Roberti, 1480 [Domínio Público], via Wikimedia Commons

Durante o Alto Renascimento Italiano a interação de figuras no espaço começou a dominar a pintura. Previamente a isso, a fascinação com o corpo humano centralizou-se nos detalhes fisiológicos: a articulação dos membros, a modelagem de nervo, carne e músculo, e a reprodução de graciosidades individuais. Foi somente no século XVI que os corpos foram atenuados em gracioso ou magnificados em sublime, e então reunidos em peculiarmente intensas, carnais, até lascivas poses por Leonardo, Michelangelo, Raphael e seus seguidores. O âmbito, também, era frequentemente modificado em favor dessa nova concepção. O tratamento da Virgem com o Menino ilustra isso bem. Já no século XV a postura da tradicionalmente entronizada matrona com uma delicada criança erguidos sobre o resto do mundo, ambos mirando fixamente ao nada, tornou-se menos hierático, embora eles ainda retivessem sua sagrada e intocável tranquilidade (Fig. 2). No século XVI eles descenderam de seus pedestais para serem engolfados por animados grupos de figuras familiares compartilhando suas companhias, como na Madonna dell´Impanata de Raphael (Fig. 3), típica de tantos retratos da “Sagrada Família”. Essas reuniões eram um fingimento da imaginação artística, sem bases em texto bíblico algum. Contudo, era uma ficção que servia para povoar uma pintura com personagens cujas adorações mútuas eram distintamente sensuais em destino, por mais espiritual que seja sua destinação. Na Madonna de Raphael, as figuras são não tanto compostas no espaço quanto reunidas apesar dele. Elas olham diretamente umas às outras, encaram miopicamente aos olhos e à carne, tocam, abraçam, seguram e dedilham os corpos de cada um como se seu reconhecimento descansasse mais firmemente no toque do que no olhar. Somente o menino St. John quebra esse círculo íntimo de reciprocidade ao acusar o observador. E essas figuras são mais do que o tema da imagem; elas são a imagem, elas a preenchem. A perfeição fisiológica individual de cada corpo estava agora perdida na teia de abraços e gestos vinculados; alguma coisa não inteiramente nova à pintura, porém alcançando um clímax de realização nesse momento.

3. Madonna dell'Impannata, Raphael, 1514 [Domínio Público], via Wikimedia Commons

Então se a cálculo entre figuras e plantas é para ser procurado em qualquer lugar, ele poderia muito bem ser procurado aqui, numa pintura onde as relações pessoais foram traduzidas a um princípio compositivo transcendendo o âmbito, e onde as solicitações entre santos e mortais semelhantes parecem tão exageradas para nós –ou mais que isso elas o seriam se pensássemos nelas como plausíveis ilustrações de conduta.

4. Reconstrução da Villa Madama, Percier e Fontaine, 1809

Em 1518 ou 1519, o Cardeal Giuliano de’Medici comissionou um ambicioso projeto para uma vila situada nas encostas do Monte Mario em Roma. Apenas parte desse vasto esquema, mais tarde chamado Villa Madama, foi concluída. A supervisão da obra foi dirigida por Antonio da Sangallo, mas a concepção foi inquestionavelmente de Raphael. Aqui, então, estava um suntuoso cenário para a vida cotidiana produzido por um artista que havia ajudado a profanar a Virgem em suas pinturas. Uma laboriosa reconstrução da vila publicada por Percier e Fontaine em 1809 enfatizou simetrias axiais, tornando todo o complexo numa pilha unificada de edifício presa na encosta, ajustando o layout dos recintos para caber o que era, naquele momento, a ideia estabelecida da estrita conformidade clássica (Fig. 4). Como poderia Raphael tê-la projetado de outra maneira qualquer?[2] Contudo a porção que foi realmente construída, e a planta sobrevivente mais antiga (Fig. 5),[3] mostram algo bem diferente.

5. Villa Madama, Raphael e Antonio da Sangallo,

Simetria global teria criado repetições, com cada recinto e cada situação tendo sua contraparte espelhada no outro lado do edifício, mas na planta inicial isso nunca ocorre. Embora a maioria dos espaços no interior da vila sejam simetricamente compostos, não havia duplicações; cada recinto era diferente. A uniformidade estava restrita às partes onde ela pudesse ser imediatamente apreendida; o edifício como um todo era diverso. Contudo, apesar desse empenho em criar singularidade de lugar, é muito difícil dizer a partir da planta quais partes são enclausuradas, e quais são abertas, já que a relação entre todos os espaços é quase a mesma por todo ela. As câmaras, loggias, pátios e jardins todos registram-se como formas muradas –como grandes recintos–que se adicionam para preencher o sítio. O edifício parece ter sido concebido como uma acumulação dessas clausuras, com os espaços componentes sendo mais regulares do que o padrão global. Isso não poderia ter vindo do último Raphael clássico sonhado pelos acadêmicos do século XVIII e depredado pelos românticos do século XIX.

A reconstrução retificada de Percier e Fontaine, com seu espaço assimétrico dentro de um envelope simétrico, ilustra o ponto em que o Raphael original cessou em fazer sentido real; o ponto em que a estrutura latente do espaço habitado rompe os confinamentos do planejamento clássico em sua arquitetura. Isso teve seu paralelo em suas pinturas, também; o ponto em que a carnalidade brilhou através da vácua sinalização de gestos em suas composições de figuras.

Portas

Olhando para a planta de Villa Madama como um retrato dos relacionamentos sociais, duas características organizacionais tornam-se aparentes. Embora numeradas entre as coisas que nos dias de hoje nós nunca faríamos, essas são crucialmente importantes evidencias do meio social que a vila estava destinada a sustentar.

Primeiro, os ambientes têm mais que uma porta –alguns tem duas portas, muitos têm três, outros quatro– uma característica que, desde os primeiros anos do século XIX, tem sido considerada como uma falha nos edifícios domésticos de qualquer tipo ou tamanho. Por quê? A resposta foi dada em grande medida por Robert Kerr. Numa característica advertência ele lembrou aos leitores de The Gentleman’s House (1864) da deplorável inconveniência dos ‘recintos de passagem’, que fizeram domesticidade e isolamento inobteníveis. A alternativa favorecida era o recinto terminal, com somente uma porta estrategicamente posicionada para o restante da casa.

6. Palazzo Antonini, Udine, Andrea Palladio, 1556

Contudo exatamente o conselho oposto tinha sido fornecido pelos teóricos italianos que, seguindo antigo precedente, pensavam que mais portas num recinto era preferível que menos. Alberti, por instância, depois de chamar atenção à grande variedade e número de portas nos edifícios Romanos, disse, ‘É também conveniente dispor as portas de tal Maneira que elas possam levar a tantas Partes do edifício quanto possível.’[2] Isso era especificamente recomendado para edifícios públicos, mas aplicado também em arranjos domésticos. Geralmente significava que havia uma porta onde quer que houvesse um recinto adjacente, fazendo da casa uma matriz de câmaras discretas mas completamente interligadas. A planta de Raphael exemplifica isso, embora tenha sido de fato não mais que uma prática ordinária naquela época (Fig. 6).

Assim, entre os Italianos e Kerr, houve uma completa inversão de uma simples noção sobre conveniência. Na Itália do século XVI um recinto conveniente tinha muitas portas; na Inglaterra do século XIX um recinto conveniente tinha apenas uma. A mudança foi importante não somente porque necessitou um rearranjo da casa inteira, mas também porque ela remodelou radicalmente o padrão da vida doméstica.

Juntamente com a limitação de portas veio outra técnica que almejava minimizar o necessário intercurso entre os vários membros de uma família: a aplicação sistemática de acessos independentes. Na Villa Madama, como em virtualmente toda a arquitetura doméstica anterior a 1650, não há distinção qualitativa entre o caminho através da casa e os espaços habitados dentro dela. A entrada principal está na extremidade sul da vila. Um lance semicircular de degraus conduz através de uma parede torreada a um átrio, até outro lance de degraus a um alto colunado, através de uma passagem abobadada ao pátio circular central; até agora uma sequência prescrita através de cinco espaços preliminares para as mais específicas e íntimas áreas do ambiente familiar. Desde o pátio circular, entretanto, há dez rotas diferentes aos aposentos da vila, nenhuma com qualquer predominância particular. Cinco conduzem diretamente para fora do pátio ou seus anexos, três vão pela magnífica loggia com o jardim amuralhado adiante, e duas pelo belvedere. Uma vez dentro é necessário passar de um recinto ao seguinte, e então ao seguinte, para atravessar o edifício. Onde passagens e escadas são utilizadas, como inevitáveis que são, elas quase sempre conectam apenas um espaço a outro e nunca servem como distribuidores gerais de movimento. Assim, apesar da precisa contenção arquitetônica oferecida pela adição de recinto sobre recinto, a vila era, em termos de ocupação, uma planta aberta relativamente permeável aos numerosos membros da família,[3] todos os quais –homens, mulheres, crianças, serviçais e visitantes– eram obrigados a passar através de uma matriz de recintos conectores onde os negócios do dia-a-dia da vida eram levados adiante. Era inevitável que percursos se cruzassem durante o curso de um dia, e que toda atividade fosse susceptível de intercessão a menos que medidas bem definidas fossem tomadas para evitá-la. Tal como a multiplicação de portas, não havia nada de incomum sobre isso; era a regra em palácios, villas e fazendas Italianas – um modo costumeiro de unir recintos que dificilmente afetou o estilo da arquitetura (que poderia igualmente ser gótico ou vernacular), mas muito certamente afetou o estilo de vida.

Desde os escritores Italianos que descreveram eventos contemporâneos, nada é mais evidente que o grande número de pessoas que se congregavam para passar o tempo, observar, discutir, trabalhar ou comer, e a frequência relativa de recontáveis incidentes entre eles. Em um dos extremos do espectro de maneiras, Castiglione, um amigo próximo de Raphael, registrou em The Courtier quatro conversas noturnas consecutivas que supostamente ocorreram durante março de 1507 no Palácio Ducal de Urbino (por si mesmo um exemplo do planejamento matricial descrito acima). Dezenove homens e quatro mulheres participaram e aparentemente houve encontros semelhantes todos os dias depois da ceia.[4] Sem dúvida The Courtier era um relato purificado, elaborado e sentimentalizado de eventos atuais, mas o retrato do grupo como um recurso natural para passar o tempo está em perfeito acordo com outras fontes. É sabido que a maioria dos personagens eram convidados do palácio naquele momento.

O final inferior do espectro foi descrito por Cellini (1500-71), em sua autobiografia.[5] As apaixonadas, violentas e intemperadas criaturas nessa obra dificilmente assemelham-se aos refinados, espirituosos conversadores na outra: tão vívido é o contraste, eles poderiam facilmente ser confundidos como espécies separadas. Contudo, Cellini, como Castiglione, requeria um fluxo ativo de personagens nos quais impressionar seu próprio ego ilimitado. Em ambos, a companhia era a condição ordinária e a solidão o estado excepcional.

Há outra similaridade narrativa que a princípio parece contradizer o cerne deste artigo; nenhum escritor sequer descreveu um lugar. Em The Courtier algumas sentenças hiperbólicas foram suficientes para elogiar o Palácio Urbino, uma das grandes obras da arquitetura da Renascença Italiana, e nem uma palavra é dita do começo ao fim, direta ou indiretamente, sobre a aparência, conteúdo, forma ou arranjos dos aposentos que servem como cenário. Isso é tudo do mais estranho porque Castiglione comparou a si próprio a um pintor de uma cena em seu preâmbulo. A autobiografia de Cellini, também, é tão cheia de relações de inimizade, amor, ambição e exploração que elas preenchem inteiramente o espaço de seu livro. Ele localiza eventos dizendo onde eles ocorreram, porém essas indicações são como referências para um mapa mental. Nenhum perfil natural ou urbano é mencionado mesmo nos termos mais precipitados. Topografia, arquitetura e mobiliário são igualmente ausentes, nem sequer surgidos como panos de fundo às intrigas, cabalas, triunfos e catástrofes que ele recita. Aqui estão as mais explícitas referências à arquitetura fora de seu solitário confinamento no Castelo S. Angelo. O primeiro é um relato das circunstâncias que envolve um assalto:

«... como era conveniente aos vinte e nove anos de idade, eu tomara uma jovem encantadora e muito bonita como minha criada ... Por causa disso, eu tinha o meu quarto a uma certa distância de onde os empregados dormiam, e a algum caminho da loja. Mantive a moça num pequeno quarto escorchado adjacente a uma mina. Costumava dormir muito pesadamente e profundamente ... Assim aconteceu quando numa noite um ladrão irrompeu na loja.»

O segundo é uma tentativa de engendrar uma reconciliação com um patrono enquanto acamado:

«Eu me conduzi ao Palácio Medici, até onde está o pequeno terraço: eles me deixaram descansar lá, esperando pelo Duque passar. Uns poucos bons amigos meus da corte vieram conversar comigo.»

O terceiro descreve a confrontação com um potencial assassino:

«Saí de casa com pressa, embora como usual eu estivesse bem armado, e andava a passos largos pela Strada Giulia não esperando encontrar pessoa alguma naquela hora do dia. Havia alcançado o fim da rua, e estava dobrando em direção ao Palácio Farnese –dando à esquina uma ampla distância como usual– quando eu vi o Corso ficar em pé e caminhar no meio da estrada.»

Raramente a arquitetura penetrava na narrativa e então apenas como um aspecto integral de alguma desventura ou encontro. A autobiografia de Cellini e The Courtier compartilham uma total absorção com as dinâmicas do intercurso humano para a exclusão de tudo o mais, e é por isso que suas configurações físicas são tão difíceis de discernir.

7. The School of Athens, Rafael, 1510-11 [Domínio Público], via WikiArt

A mesma predominância de figura sobre fundo, a mesma inundação de objetos por animação, pode ser observada na pintura. As figuras da Madonna dell'Impannata ocupam um recinto, mas além da janela recuado no canto direito da pintura não há indicação alguma de como o recinto se parece. A forma do recinto parece não afetar a distribuição ou interrelação das figuras. Este é o caso também no afresco mais arquitetônico de Raphael, The School of Athens, onde à loggia abobadada é concedida tanta atenção detalhada quanto à multidão de filósofos que a ocupa (Fig. 7). O efeito do edifício aqui (num arranjo que pode bem ter sido a inspiração para a loggia na Villa Madama)[6] é, se algum, concentrar a assembleia, porém de qualquer modo a arquitetura não deixa marca decisiva alguma na forma da sociedade. Somente as figuras mais periféricas e auto-referidas usam o edifício para suportar seus corpos, seja em degraus, no singular bloco de mármore, ou em bases de pilastras.

8. Villa Madama, afresco na abóboda da loggia, Rafael, Giulio Romano e Giovanni da Urdine, 1518-25. Aquilo que o olho pode devorar, a mão não pode tocar.

Tudo isso faz surgir uma inesperada dificuldade: não é fácil explicar como, quando os Italianos estavam tão envolvidos nos acontecimentos humanos, eles desenvolveram uma refinada e elaborada arquitetura a qual mal tiveram tempo de notar e que parecia estar fora da órbita da vida social. Talvez isso seja uma exageração, mas o paradoxo permanece. A maravilhosa modelagem e primorosa decoração da loggia da Villa Madama (Fig. 8), baseada na Golden House de Nero e no trabalho combinado de Raphael, Giulio Romano e Giovanni da Udine, não pode ser explicada somente pela ânsia de impressionar ou em termos de iconografia. Estes devem ter desempenhado seu papel, mas tal sensibilidade por forma não é emitida de status ou simbolismo como a água de uma torneira. Entretanto, poderia ser que a natureza incidental e acessória da arquitetura fosse precisamente o que a levou a tornar-se tão visualmente rica. De todos os sentidos, a visão é a mais apropriada para coisas na fronteira da experiência, e isso é exatamente o que um recinto, particularmente um grande recinto, provê; um limite à percepção. Nos precintos imediatos do corpo, os outros sentidos prevalecem.

Os exemplos dados acima, embora dificilmente forneçam uma prova, servem para indicar que a afeição por companhia, proximidade e incidente na Itália do século XVI correspondeu bastante gentilmente ao formato das plantas arquitetônicas. É talvez fácil demais para os historiadores da arquitetura doméstica olhar para trás e ver na matriz de recintos conectados um estágio primitivo de planejamento que implorou para evoluir a algo mais diferenciado, já que pouco intento era feito para organizar as partes do edifício em conjuntos funcionais independentes ou para distinguir entre ‘servir’ e ‘servido’. Mas isso não era a ausência de princípio: para todos os diferentes tamanhos, formas e circunstâncias dos recintos na Villa Madama, a conectividade era a mesma por toda ela. Isso não aconteceu por acidente. Ela, também, era um princípio. E talvez a razão pela qual ele não foi lançado em alto relevo por teóricos foi simplesmente porque ele nunca foi posto em questão.

Passagens

A história do corredor como um dispositivo para remover o tráfego dos cômodos ainda seria escrito. A partir das poucas evidências que até agora consegui compilar, ele fez sua primeira aparição registrada na Inglaterra na Casa Beaufort, Chelsea, projetada em torno de 1597 por John Thorpe [7]. Enquanto, evidentemente, ainda com alguma curiosidade, seu poder estava começando a ser reconhecido, sobre a planta estava escrito 'A maior Entrada entre todas'. E, como arquitetura Italianizada, começou a se estabelecer na Inglaterra assim, ironicamente o bastante, como corredor central, enquanto, ao mesmo tempo, escadarias começaram a ser anexadas para serem corredores e não mais terminadas em cômodos.

Depois de 1630 essas mudanças de arranjo interno tornaram-se muito evidentes nas casas construídas para os ricos. Hall de entrada, grande escadaria aberta, passagens e escadas de fundos fundiram-se para formar uma rede de penetração de espaço de circulação, que tocava todos os cômodos importantes na casa. A aplicação mais aprofundada deste novo arranjo estava em Coleshill, Berkshire (c. 1650-67), construído por Sir Roger Pratt para seu primo. Aqui, passagens em túneis por todo o comprimento do edifício em cada andar. Nas extremidades eram escadas de fundos; no centro, uma grande escadaria num hall de entrada em pé-direito duplo, o qual, apesar de seu tratamento portentoso, foi realmente não mais que um vestíbulo, uma vez que os habitantes viveram suas vidas no outro lado dessas paredes.

Todo cômodo tinha uma porta para a passagem ou para o hall. Em seu livro de arquitetura Pratt afirmou que o ‘caminho comum do meio para todo o comprimento da casa’ foi prevenir que ‘os escritórios [isto é, cômodos utilitários] de um molestar o outro pela passagem contínua através deles’ e, no resto da casa, para assegurar que 'servos ordinários não deveriam nunca apareçer publicamente passando para lá e para cá para por motivos próprios [8].

Segundo ele, a passagem era para os servos: para mantê-los longe do caminho um do outro e, mais importante ainda, para mantê-los longe do caminho dos senhores e senhoras. Não havia nada de novo nesta meticulosidade, a novidade estava no emprego consciente da arquitetura para expulsá-los –em parte a medida do antagonismo entre ricos e pobres em tempos turbulentos, mas também um augúrio do que estava para representar a plácida vida da família nos anos a seguir.

Quanto aos apartamentos principais, eles estavam enfileirados como uma longa sequência de portas que poderiam ser alcançadas. O corredor não era, portanto, um meio exclusivo de acesso neste momento, mas foi instalado paralelo aos cômodos interconectantes. Mesmo assim, em Coleshill o corredor predominou ao ponto de se tornar necessário uma rota através de grande parte da casa. Uma planta mais elegante, equilibrando os dois tipos de circulação, foi Casa Amesbury de John Webb, Wiltshyre, onde a passagem central servia a casa inteira, enquanto todos os cômodos, no andar principal, no mínimo, também estavam interconectados. A partir dessas plantas pode-se ver como a introdução das passagens-por pela primeira arquitetura doméstica inscrita uma divisão mais profunda entre as classes superiores e inferiores da sociedade através da manutenção sequencial direta do acesso para o privilegiado círculo familiar enquanto consignava servos a um território limitado sempre adjacente a, mas nunca dentro da casa propriamente dita; onde eles estivessem sempre à mão, mas nunca presente a menos quando requeridos.

Seus efeitos eram ainda mais dominantes do que isso sugeria. A solução arquitetônica para o problema do servo (o problema de sua presença ser parte de seu serviço, que é) tinha ramificações mais amplas. Com Pratt uma advertência semelhante pode ser detectada em todas as questões relacionadas com a ‘interferência’, como se a partir do ponto de vista do arquiteto todos os ocupantes de uma casa, independentemente de sua posição social, tenha se tornado em nada mais do que uma potencial fonte de irritação um para o outro. É verdade que ele fez o gesto magnânimo de colocar algumas portas entre alguns dos cômodos em Coleshill, como mencionado acima, mas então ele o fez tão explicitamente para obter o efeito visual de uma perspectiva de recuo pela casa inteira:

Quanto às portas internas menores, permita que todas elas se encontrem numa linha direta uma contra a outra para fora de um cômodo até outro, para que então fiquem todos abertos e você possa ver de uma extremidade da casa à outra; respondendo que se uma janela for colocada em cada extremidade, a vista de tudo será muito mais prazerosa”.

Consequentemente, a integração do espaço da casa era agora em prol da beleza, sua separação foi por conveniência –uma oposição que desde então se tornou profundamente gravada na teoria, criando dois padrões distintos de julgamento para duas realidades bastante diferentes: por um lado, na estendida concatenação de espaços para privilegiar a visão (o sentido mais facilmente ludibriável, de acordo com os escritores contemporâneos); por outro lado, um sistema de confinamento cuidadoso e compartimentos individuais para preservar o ‘si próprio’ dos outros.

A divisão entre uma arquitetura que olha através e uma arquitetura que se esconde em cortar um abismo intransponível separando mercadoria de prazer, a utilidade da beleza, e a função da forma. Claro que na obra de Raphael a distinção entre esses aspectos da arquitetura afetando intercâmbio diário entre os interessados unicamente na forma visual pode ser feita facilmente. O que é tão diferente é que em seu trabalho eles estavam em geral de acordo um com o outro, ao passo que em Coleshill eles começaram a puxar para direções bem contrárias.

Por que a inovação que o acesso independente deveria ter sobre tudo ainda não é claro. Certamente, indicou uma mudança de ânimos sobre a preocupação com a desejabilidade de se expor para uma companhia; se a exposição seria para todos na casa, ou somente para alguns, foi uma questão enfatizada neste momento. Sua aplicação súbita e proposital no planejamento doméstico mostra que não apareceu apenas no final de um desenvolvimento evolutivo longo e previsível das formas vernáculas, como muitas vezes alegado, nem tem nada a ver com a importação do estilo Italiano ou do Palladianismo, embora estes fossem seus veículos. Ele veio aparentemente sem melancolia.

Estes foram os anos em que os puritanos falavam de ‘blindar’ si próprio contra um mundo malcriado. Eles falavam, claro, de blindagem espiritual, mas aqui era outro tipo, fora do corpo e da alma: o cômodo transformado num armário. A história de Cotton Mather, um puritano da Nova Inglaterra, dá uma ideia de como é difícil distinguir moralidade de sensibilidade em seu sequestro voluntário. Ele disse ter feito a regra de ‘nunca mais entrar em qualquer companhia ... sem se empenhar para ser útil nisso', caindo, como oportunidades que surgiram, insinuações instrutivas, avisos e repreensões. Ele foi mais tarde retratado como um paradigma doméstico, ‘fazendo todo o bem ao seu alcance para seus irmãos, irmãs e servos’. Mas para fazer tanto bem ele achou melhor evitar os pagadores ou receber qualquer visita desnecessária ou ‘impertinente’ Para previnir intrusos inúteis, ele inscreveu em letras grandes acima da porta de seu quarto essas palavras repreensivas: ‘SEJA BREVE’ [10].

Dividindo a casa em dois domínios –um santuário interno do habitantes, às vezes cômodos desconectados, e um espaço de circulação desocupado– trabalhados da mesma maneira como que o sinal de Mather, tornando difícil justificar a entrada em qualquer cômodo onde você não tenha nenhum assunto específico. Com isso veio uma definição reconhecidamente moderna de privacidade, não como resposta a um problema perene de ‘conveniência’, mas muito possivelmente como uma forma de estimular uma psicologia nascente em que o ‘si próprio’ foi, pela primeira vez, sentido não apenas no risco na presença de outros, mas, na verdade, desfigurada por eles.

Houve uma analogia corriqueira na literatura do século XVII que, em comparava a alma de um homem a um aposento privado [11], mas é difícil dizer agora qual se tornou mais privado primeiro, o cômodo ou a alma. Certamente, suas histórias são entrelaçadas.

Ao mesmo tempo, a lógica da contenção não foi perseguida com qualquer rigor durante o século XVIII. Grandes famílias tenderam a seguir o padrão de Amesbury, na tentativa de conciliar o acesso independente e interconexão fornecendo ambos, porém, raramente como uma metódica maneira. Somente com a aproximação do século XIX houve um movimento em direção a uma maior sistematização de acesso, observável, por exemplo, nas plantas de Soane e Nash. Neste respeito o trabalho de Soane, talvez mais do que qualquer outro arquiteto, jaz no limite da modernidade.

Soane, como Pratt, planejou suas vistas interiores, só que ele não estava em contento com o alinhamento das portas. Ele também concebeu camadas de espaço sobre o espaço, de modo que o olho não era mais forçado a uma recessão telescópica de portais e poderia percorrer largamente, por cima, através, e diretamente de um lugar para outro. Ou, para ser mais exato, esse foi o efeito arquitetônico que ele foi capaz de alcançar em sua própria casa em Lincoln Inn Fields: nas casas de outras pessoas, o anseio pela extensão foi frequentemente posto em cheque por uma persuasão igual que todos os cômodos deveriam ser suficientemente contidos para serem independentes um do outro para os propósitos de utilização diária. Como o cômodo fechado, tanto a estética do espaço desdobrado, como a liberdade extensiva da visão era um consolo para o confinamento mais próximo entre corpo e alma; uma forma de compensação que foi, assim, se tornando mais familiar e mais pronunciada na arquitetura do século XX. Assim, quando panoramas caracteristicamente Soanianos ocorriam, eles mais frequentemente, ocorriam em espaços de circulação ou para fora das janelas, e não em espaços ocupados. Como em Coleshill, as partes mais estudadas e impressionantes foram, em geral, escadas, patamares, corredores e vestíbulos –espaços que não abrigavam nada, mas o caminho de um lugar para outro, junto com insígnias de ocupação na forma de estátuas ou pinturas.

Meio século mais tarde, quando Robert Kerr estava informando seus leitores sobre os perigos que existem nos cômodos de passagem, a questão havia sido resolvida de uma vez por todas: o corredor e a necessidade universal pela privacidade foram firmemente estabelecidos e os princípios do planejamento poderiam ter sido avançados em aplicações mais ou menos iguais para todas as residências em todas as circunstâncias: casas grandes, casas pequenas, quartos dos servos, apartamentos familiares, cômodos comerciais, para o lazer –essas discriminações foram subsidiárias à distinção fundamental entre rota e destino que de agora em diante passaria a permear o planejamento doméstico. Kerr fez diagramas que reduziram as plantas das casas a estas duas categorias de trajetória e posição, propondo que seus arranjos propostos fossem o substrato sobre o qual ambas, arquitetura e domesticidade, fossem levantadas.

Em face disso, não parecia haver pouca diferença entre as reclamações feitas por Alberti, quem valorizavam muito mais a privacidade do que os teóricos do século XVI, e aqueles no livro de Kerr sobre a irritação da vida cotidiana. Ambos deploram a mistura entre servos e familiares, a algazarra das crianças, e a tagarelice das mulheres.

A real diferença estava na maneira com a qual arquitetura era usada para superar esses aborrecimentos. Para Alberti, era uma questão de arranjar proximidade dentro da matriz dos cômodos. Os expedientes para instalação de uma porta pesada com uma tranca, ou de localizar os mais fadigantes membros da família e as atividades mais ofensivas às maiores distâncias serviram o seu propósito, e esses foram concebidos como ajustes secundários para trazer harmonia à cacofonia da vida em família ao invés de silenciá-lo. Kerr, por sua vez, mobilizou arquitetura em sua totalidade contra a possibilidade de comoção e distração, trazendo para suportar uma variedade de táticas que envolvem o meticuloso planejamento e o mobiliário de cada parte do edifício, de acordo com uma estratégia geral de compartimentalização, por um lado, junto com a acessibilidade universal, por outro.

Estranhamente suficiente, a acessibilidade universal era como um necessário complemento à privacidade como era o cômodo de uma porta. Um edifício compartimentado tinha de ser organizado pelo movimento através dele, porque o movimento era a única coisa restante que poderia dar-lhe qualquer coerência. Se não fosse para as trajetórias que fazem o hífen entre partidas e chegadas, as coisas teriam desmoronado em completas irrelações. Com os cômodos comunicantes, a situação foi bem diferente. Lá, o movimento através do espaço arquitetônico foi por filtração em vez de canalização, o que significava que, embora ótima armazenagem pudesse ser estabelecida como passagem sequencial de um lugar para o próximo, o movimento não era necessariamente um gerador da forma. Considerando a diferença em termos de composição, podia-se dizer que, com a matriz dos cômodos comunicantes, os espaços tendiam a ser definidos e subsequentemente encaixados como as peças de uma colcha de retalhos, ao passo que, com as plantas compartimentadas as conexões seriam estabelecidas como uma estrutura básica para a qual os espaços poderiam, então, ser anexados, como maçãs numa árvore [12].

Por isso, no século XIX, 'passagens' poderiam ser consideradas como a espinha dorsal de uma planta não apenas porque os corredores pareciam como espinhas, mas porque eles diferenciavam a função, ligando-os através de um distribuidor independente, da mesma maneira como as estruturas da coluna vertebral no corpo: 'A relação dos cômodos entre si sendo o relacionamento entre suas portas, o único propósito das passagens é trazer estas portas para um sistema próprio de comunicação [13].

Esta anatomia avançada tornou possível superar as restrições de adjacência e localização. Já não era mais necessário passar em seriamente através do intratável território ocupado dos cômodos, com todos os desvios, incidentes e acidentes que ele poderia abrigar. Em vez disso, a porta de qualquer cômodo lhe entregaria a uma rede de rotas a partir da qual o cômodo ao lado da porta e o da extremidade mais distante da casa eram quase igualmente acessíveis. Em outras palavras, essas passagens foram capazes de desenhar cômodos distantes para mais perto, mas apenas desvinculando-se daqueles por aqueles ao alcance das mãos. E nisto há outro paradoxo evidente: para facilitar a comunicação, o corredor reduzido contato. O que isso significava era que a comunicação proposital ou necessária foi facilitada enquanto a comunicação incidental foi reduzida, e o contato, de acordo com as luzes da razão e os ditos da moralidade, foi na melhor das hipóteses incidental e distrativa, na pior corrupta e maligna.

Notas
[1] D.Y. Donnison, The Government of Housing (Harmondsworth, 1967), p.17.
[2] L.B. Alberti, The Ten Books of Architecture, traduzido por Leoni,editado por Rykwert (Londres, 1955), livro I, capítulo XII.
[3] Um estudo interessante da vida doméstica de um cardeal tem sido feito por D.S Chambers. Ver Journal of the Warburg & Courtauld Institute, vol. 39, 1976, pp. 27-58, ‘The Housing Problems of Cardinal Francesco Gonzaga’.
[4] Baldessare Castiglione, The Courtier (Harmondsworth, 1967), p.44.
[5] The life of Benvenuto Celline, written by himself (Londres, 1956), pp.110,161,138.
[6] W.E. Greenwood, Villa Madama (Londres, 1928).
[7] The Book of Architecture of John Tharpe, editado por J. Summerson (Glasgow, 1966).
[8] Sir Roger Pratt on Architecture, editado por R.T. Gunther (Oxford, 1928), pp.62,64.
[9] Ibid. p.19.
[10] William Davis, Hints to Philanthropists (Bath, 1821), p.157.
[11] Uma coleção delas pode ser encontrada no OED abaixo de “Privy”.
[12] Somente após escrever isto é que me ocorreu quão semelhante a matriz de conexão dos cômodos é para a múltipla conectividade proposta para a cidade por Cris Alexander em ‘The City is not a Tree’, Architectural Forum, vol.122, Abril 1965, pp 58-62 e Maio 1965, pp 52-61.
[13] Robert Kerr, The Gentleman´s House (Londres, 1864), parágrafo conclusivo.

© Tradução: Audrey Migliani. Revisão: Igor Fracalossi.

Sobre este autor
Cita: Audrey Migliani. "Figuras, Portas e Passagens / Robin Evans" 18 Set 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/627404/figuras-portas-e-passagens-robin-evans> ISSN 0719-8906

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