Será a urbanização chinesa a desgraça ou a salvação? Entrevista com Peter Calthorpe

Este artigo foi publicado originalmente no blog Point of View, da revista Metropolis, como "Q&A: Peter Calthorpe."

Os títulos dos livros de Peter Calthorpe traçam a história recente do desenho urbano em suas mais importantes e premonitórias manifestações, começando em 1986 com Comunidades Sustentáveis (Sustainable Communities) (com Sim Van der Ryn), seguido por A Cidade Regional: Planejamento para o Fim do Espraiamento (The Regional City: Planning for the End of Sprawl) (com Bill Fulton), A Próxima Metrópole Americana: Ecologia, Comunidade e o Sonho Americano (The Next American Metropolis: Ecology, Community and the American Dream), e Urbanismo na Idade das Mudanças Climáticas (Urbanism in the Age of Climate Change).

Um dos membros fundadores do Congresso para o Novo Urbanismo e vencedor do Prêmio J.C. Nichols para Visionários em Desenvolvimento Urbano, o arquiteto e planejador tem estado na vanguarda do planejamento urbano há mais de três décadas. Nos últimos anos, além de continuar o trabalho de sua empresa nos Estados Unidos, Calthorpe Associates, ele tem cada vez mais voltado sua atenção para um país que se urbaniza em um ritmo sem precedentes na história do mundo: a China.

Aqui Calthorpe fala sobre processo único do planejamento chinês, o futuro do transporte ferroviário de alta velocidade na Califórnia, da Architecture 2030, a seguir:

Martin C. Pedersen: Tive uma mudança total de pensamento na China. Antes achava que a urbanização desatenta e sua poluição tornar-se-ia a desgraça para todo o mundo. Agora acho que a China pode ser a chave para um futuro sustentável, uma vez que pode mudar as políticas rapidamente, enquanto nós estamos perdendo tempo discutindo se as mudanças climáticas realmente existem! O que você acha?

Peter Calthorpe: Estou entre os campos do "eles podem nos matar" e "eles podem nos salvar". Eles possuem um processo de tomadas de decisões bastante racionais e verticalizados. Mas, levando em conta o quão complexo a sociedade, sua economia e ecologia são, ser racional não necessariamente coloca-os num bom caminho. Há ambiguidade em como eles devem emergir, e estas ambiguidades representam um conjunto diferente de forças. Nossa ambiguidade é, em grande parte, do fato de que não conseguimos chegar a um consenso sobre qualquer coisa. Eles podem chegar a um consenso, mas estão equilibrando muitas forças. É um processo fascinante de assistir. Por exemplo, no desenho urbano, agora há clareza de que os lugares caminháveis são melhores para o ambiente e para produzir resultados de baixo carbono. O que carrega a política na China, entretanto, é a qualidade do ar, saúde e congestionamentos.

MCP: Porque eles são facilmente observáveis, estão lá para todos verem.

PC: É qualidade de vida. A comunidade ambiental é eternamente presa - talvez, necessariamente presa - neste dilema de longo prazo versus curto prazo. E é sempre o bem estar de curto prazo para superar as preocupações de longo prazo. Do ponto de vista de curto prazo, muitos dos luxos que temos hoje, que são insustentáveis​​, são bastante desejáveis. Por isso, é sempre uma luta no nível mais profundo entre as necessidades de longo prazo e os desejos de curto. Os chineses lutam com o mesmo problema. Ainda assim, os indicadores apontam todos na mesma direção. As políticas que resolvem as emissões de carbono e mudanças climáticas também criam um ar melhor na cidade, pessoas mais saudáveis​​, menos tempo nos congestionamentos.

MCP: Como é o processo de planejamento da China? Quão receptivos eles são aos objetivos da Architecture 2030, a neutralidade de carbono, as lutas contra as mudanças climáticas?

PC: A maior diferença, claro, é que o governo é proprietário de todas as terras. Não há propriedade privada. E mesmo quando eles passam terras às mãos de um empreendedor, isso é feito através um contrato de arrendamento a longo prazo. Eles têm controle absoluto. E, como corolário disso, as cidades fazem todo o seu dinheiro, inserindo infraestrutura e, em seguida, locando os terrenos para os desenvolvedores. Isso está levando a uma bolha, porque eles estão inundando o mercado com terras em quase todas as cidades. O rápido crescimento tem sido fenomenal, mas é insustentável. Eles estão agora à procura de maneiras de retardar esse processo pois estão desenvolvendo tanta terra, tão rapidamente, que o desenho urbano acaba com uma abordagem muito monótona. Isso significa superquadras, com quinhentos metros de lado, mais de um quarto de milha até o cruzamento mais próximo.

MCP: Parece que eles estão cometendo todos os nossos velhos erros.

PC: Este é um erro que cometemos, brevemente, em habitação coletiva. Fizemos torres de apartamentos e super-quadras, e destruímos nossa malha urbana. Mas este não se tornou o padrão onipresente que nos abalou. A subdivisão e expansão suburbana fez isso, não os superblocos e as torres. Portanto, é um paradigma diferente na China, igualmente maligno como a subdivisão e os shoppings, em termos de meio ambiente e bem estar e saúde social. Dito isso, eles desenvolveram essas superquadras, porque elas são rápidas e fáceis de trazer para o mercado. Eles constroem ruas em centros remotos, e tentam compensar isso através da criação de enormes rodovias, sendo que isso é duplamente ruim para o pedestre. Você não só tem um longo caminho para chegar a um cruzamento, mas uma vez que se está lá, atravessar a rua é extremamente complicado. E no interior dessas superquadras, eles têm ambientes de uso único, que são grandes demais e alienantes. Não há nenhuma comunidade com escala humana implícita nestes tecidos urbanos. É um ambiente profundamente falho que aumenta a auto-dependência, mesmo em uma sociedade onde a propriedade ainda é muito pequena.

MCP: Toda sua carreira você tem defendido a antítese de tudo isso. Como pode mostrar-lhes um caminho diferente? Qual a política disso?

PC: A ideia é bastante simples. É o desenvolvimento orientado para o trânsito. E a forma urbana é a de pequenos blocos e pequenas ruas que são tranquilas e voltadas para pedestres e ciclistas. É um enorme desafio para o status quo, isto que vamos fazer, e mesmo assim o governo em todos os níveis está interessado. Eles dizem: "Isso faz sentido. Os gráficos sobem. Nós entendemos as razões..." Dei palestras em todos os níveis em toda a China. Todos entendem o quão profundamente falho é o que eles estão atualmente construindo. A fim de dar o próximo passo, eles fazem projetos-piloto. Eles dizem: "OK, vamos construir algumas dessas comunidades, de uso misto caminhávis e ver como elas funcionam. Então, podemos mudar de política. "Eles basicamente testam as ideias de unidade, e escolhem o que funciona. Temos seis projetos em construção na China. Todos eles são baseados em pequenos blocos, com ruas sem automóveis, dedicadas ao trânsito de pedestres e bicicletas.

MCP: Estes projetos localizam-se em cidades existentes ou em novas?

PC: Cidades existentes. Eles são muito científicos sobre o assunto. Nós produzimos um manual de projeto pois é importante comunicar não apenas a ideia, mas também fornecer uma metodologia passo-a-passo para desenvolvê-la. Os engenheiros na China são metódicos. Eles seguem seus livros de regras. Se conseguirmos um manual de projetos, podemos mudar radicalmente a forma como as cidades chinesas são construídas. Estamos começando a fazer o argumento de que foi feita em torno de Pruitt-Igoe e todos os erros com as habitações coletivas - que esses super blocos são também socialmente malignos. Eles criaram espaços intermediários ambíguos, que matam as cidades, pois não há um senso de identidade, segurança, lugar ou comunidade.

MCP: Eles respondem a esses argumentos?

PC: Sim, repondem. Eu mostro slides destes empreendimentos, e alguns deles têm cinco mil unidades de habitação em um superbloco. E eu faço a constatação, pois é verdade, de que as pessoas não se conhecem muito bem nesses ambientes. Então eu mostro alguns blocos urbanos mais antigos, onde há talvez trezentas ou quinhentas unidades por bloco, e ali as pessoas se conhecem. Portanto, há uma base social para isso, mas é menos quantificável. Você pode quantificar os impactos da qualidade do ar, congestionamentos e carbono. E isso é provavelmente o suficiente ali, para te dizer a verdade. Novamente, é um paradigma diferente. Está sendo testado em projetos-piloto, enquanto estamos tentando desenvolver materiais e políticas. Fomos ajudados pela Energy Foundation, que é um grande grupo, com sede em Bay Area.

Muitas das grandes fundações decidiram que ao invés de cada uma delas produzir seus próprios projetos de mudanças climáticas, o mais inteligente seria juntar o dinheiro e criar um programa de colaboração. A Energy Foundation é uma organização bem financiada que busca globalmente as melhores práticas para estagnar as alterações climáticas. A maioria de seus projetos envolvem tecnologia. É um coletor solar aqui, um parque eólico lá. Nós os convencemos de que o uso da terra desempenha um grande papel. É a fundação. Ela determina o que as necessidades humanas serão. O nível de demanda de energia é estabelecido pela qualidade de seu ambiente construído. A fundação entendeu o argumento, e estão nos apoiando nesse esforço.

MCP: No seu website você disse que queria aposentar o termo "desenvolvimento orientado para o trânsito". (“transit oriented development”). Termo que você cunhou. Por que quer aposentá-lo?

PC: A realidade é que as pessoas ficam muito focadas no trânsito. Há uma relação simbiótica entre ele e destinos tranquilos e caminháveis. Você não pode ter um bom trânsito, se você não pode caminhar tranquilamente quando chegar. Assim, o desenvolvimento orientado para pedestres (pedestrian-oriented development) é realmente o coração e a alma das grandes cidades. A cidade que você ama é a cidade que você quer caminhar. Nós viajamos o mundo para andar em grandes cidades. Mas, como um princípio organizador de como você moldar o crescimento regional, desenvolvimento orientado para o trânsito (transit oriented development) é provavelmente um termo melhor para a China.

MCP: Qual o futuro dos subúrbios norte-americanos?

PC: Acho que eles irão se adensar ao longo de suas vias arteriais. Há um enorme potencial para corrigir os erros dos últimos 60 anos. E isso quer dizer tomar aquelas zonas comerciais abandonadas e transformá-las em corredores de usos mistos, trazendo, assim, uma gama de tipos de habitação, oferecendo oportunidades adicionais para o trânsito e criar destinos caminháveis. Isso é o que está acontecendo em Los Angeles. Na Califórnia, temos a Assembly Bill 32, que é a nossa lei climática. Estamos começando nosso próprio Kyoto - não nos preocupamos mais com Washington. Temos uma lei complementar, que é chamada Senate Bill 375, que exige que cada região desenvolva uma estratégia de comunidades sustentáveis​​, o que reduzirá a dependência dos automóveis. Esse plano é, essencialmente, o que eu acabei de descrever para vocês. Assim, por exemplo, a região de Los Angeles está para investir 40 bilhões de dólares em novas linhas de trânsito, e quase nada em novas rodovias. Para complementar, está convertendo a maior parte da famosa Sunset Strip em corredores de uso misto.

MCP: O que vem acontecendo com o trem de alta velocidade na Califórnia?

PC: Jerry Brown está firme. Os opositores estão tragicamente mal informados. A simples realidade é de que o transporte ferroviário de alta velocidade custa a metade da outra alternativa. Se você fosse ampliar aeroportos e rodovias, apenas o suficiente para lidar com o que o tráfego ferroviário de alta velocidade irá lidar, isso custaria cerca de US $ 180 bilhões, em vez dos US $ 94 bilhões que vamos gastar no trem de alta velocidade. Isso é colocar de lado os benefícios reais, que não são apenas por conveniência, mas também redução das emissões de carbono e economia de energia.

MCP: Quem está contra o trem de alta velocidade?

PC: Um monte de ambientalistas.

MCP: Sério?

PC: Porque ele vai passar por algumas fazendas e campos abertos. É o tipo de pensamento pequeno em relação a um raciocínio global. Tragicamente, existem alguns grupos ambientais que têm algumas preocupações e não conseguem enxergar além delas. Não pensam de forma holística. E, claro, a direita também é contra o trem de alta velocidade. Eles realmente acreditam que é parte de uma conspiração internacional das Nações Unidas. Eu estive nessas oficinas que fizemos em todo o estado e eles apareciam e gritavam até o fim das reuniões.

MCP: Você já teve a oportunidade de rever a 2030 Palette. Como vê isso influenciar o ambiente construído, tanto nos Estados Unidos como na China?

PC: Acredito que ele é um guia universal, de melhores práticas. Arquitetos muitas vezes evitam as melhores soluções óbvias, por considerarem muito complicadas ou caras demais. O Architecture 2030 traçou um conjunto muito simples de elementos que as pessoas podem utilizar. Ele divide-os em cinco escalas: a região, a cidade, o bairro, o local, e as escalas de construção. Muitas vezes os arquitetos só pensam nos edifícios autônomos. Eu venho dizendo há 30 anos que não é apenas como os edifícios lidam com o clima - embora isso seja importante - mas o modo como as pessoas se movimentam entre essas edificações que frequentemente cria as maiores exigências sobre o meio ambiente e produz a maior parte da pegada de carbono. E a maneira como este foi estruturado torna todos os elementos muito claros. Acredito que será internacionalmente útil.

Sobre este autor
Cita: Pedersen, Martin . "Será a urbanização chinesa a desgraça ou a salvação? Entrevista com Peter Calthorpe " [Does China's Urbanization Spell Doom or Salvation? Peter Calthorpe Weighs In...] 08 Set 2013. ArchDaily Brasil. (Trad. Souza, Eduardo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-139309/sera-a-urbanizacao-chinesa-a-desgraca-ou-a-salvacao-entrevista-com-peter-calthorpe> ISSN 0719-8906

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