Reabilitação e memória de equipamentos públicos: entrevista com Nuno Valentim

No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.

No episódio desta semana, Sara conversa com o arquiteto Nuno Valentim sobre a reabilitação do Mercado do Bolhão. Ouça a entrevista e leia a transcrição da conversa, a seguir:

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Entrevistas da série "No País dos Arquitectos":

Sara Nunes: Olá, Nuno, bem-vindo!

Nuno Valentim: Olá, Sara. Viva! É um gosto estar aqui!

SN: Tem sido um prazer, Nuno, porque para além desta conversa, tenho acompanhado a tua obra atrás das câmaras e sei que és um bom conversador. Para além disso, desta vez, temos uma estreia neste podcast, que é a possibilidade de falarmos sobre um edifício que ainda está em processo de construção, mas antes de falarmos sobre o projecto pergunto-te quais as memórias que tinhas do Bolhão antes de sonhares que ias estar envolvido no seu projecto?

NV: É uma pergunta muito curiosa que eu não tenho tido oportunidade de falar sobre isso, mas penso que todo o portuense tem uma ligação ao Bolhão e isso aconteceu também comigo. O mais interessante é que eu passei a ter uma relação mais próxima com o Bolhão porque o escritório do meu pai – que é engenheiro e me disponibilizava uma sala, onde eu fiz todo o meu curso – situava-se na rua do Bolhão. Depois, logo a seguir, quando eu terminei o curso e montei a minha primeira sala de atelier com alguns amigos – entre os quais o Frederico Eça, a Paula Monzio – e nós auto-designávamo-nos como os ‘Arquitectos do Bolhão’.

SN: A sério?! (risos) Essa história é muito engraçada!

NV: Isto tudo aconteceu nos finais dos anos 90 (entre 1998 e 2000 aproximadamente)... Mal eu sabia que um dia estaríamos responsáveis pela reabilitação do Bolhão. E por isso era muito frequente almoçar por ali e um dos meus percursos habituais era mesmo atravessar o Bolhão, para ir ver qualquer coisa à Fnac e voltar. Dava uma volta porque era um percurso que eu gostava de fazer.

SN: Já fazia parte da tua vida de uma forma muito próxima. Acho curioso tu dizeres que todos os portuenses têm uma história com o Mercado do Bolhão e, sim, é verdade! Talvez, por isso, é que este projecto de reabilitação já era há muitos anos querido por todos os portuenses. Chegou a haver vários projectos em cima da mesa para que essa reabilitação fosse realizada, queria saber agora quais os desafios que tiveste ao fazer este projecto e o que é que este projecto traz de diferente em relação às outras propostas para o mercado?

NV: É uma pergunta com uma resposta um pouco complexa, por isso vou tentar responder de forma sintética. O Bolhão, mais do que uma jóia da cidade, faz parte da Alma da cidade. Portanto, tem uma dupla classificação. Ele é classificado fisicamente (isto é materialmente) pelo edifício e com a autoria de António Correia da Silva, um arquitecto camarário com formação Beaux-arts parisiense e foi também colega de José Marques da Silva. Por outro lado, tem uma classificação imaterial porque a actividade de mercado de frescos municipal também é classificada. Ou seja, tudo o que acontece a nível de trocas e de encontros entre pessoas é outro valor que o Estado reconhece como valor intrínseco, por isso eu acho muito importante quando temos de actuar num edifício que tem esta dupla classificação. Nós temos de estar atentos a esta duplicidade e, paradoxalmente, a preservação destes dois valores – o edifício e a actividade – podem eles próprios implicar sacrifícios.

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Mercado do Bolhão. Cortesia de "No País dos Arquitectos"
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Mercado do Bolhão. Cortesia de "No País dos Arquitectos"

SN: Em que sentido?

NV: No sentido em que nós hoje para garantirmos que o mercado de frescos funcione e resulte enquanto alternativa às grandes superfícies (que fazem uma concorrência completamente desleal fortíssima), temos de ser absolutamente exigentes nessa resposta, enquanto mercado. Nessa resposta falamos de questões como a função de mercado de frescos municipal, a manutenção das pessoas que estiveram até agora como comerciantes do Bolhão, a chegada de novos comerciantes... Tudo isso tem de ser um dos desígnios claros e central no que ao programa diz respeito, por isso, no limite pode implicar sacrifícios ao próprio valor patrimonial e material. Isto foi muito evidente nas alterações que tivemos de fazer nas barracas de venda pelo seu desajuste que, inclusive, tinha sido uma das fontes de degradação do mercado. Por exemplo, os comerciantes do terrado encerravam as antigas barracas, usando-as como armazéns e vinham cá para fora para expor os seus produtos no tradicional anfiteatro, nas cinco ruas que estruturam o comércio do Bolhão no seu interior. É muito curiosa esta relação que nós criamos em relação ao Bolhão porque sentimo-nos a percorrer estas ruas.

SN: Como se fosse uma cidade dentro da cidade, não é?

NV: Exactamente! E, por isso, voltando à tua questão inicial... Ou seja, este desígnio de manter o Bolhão enquanto mercado de frescos municipal é uma prioridade deste governo da cidade, deste executivo (do poder local). Aliás, isto só acontece porque há uma decisão política corajosa por trás da reabilitação do Bolhão que tem uma visão diferente das visões anteriores para o mercado. Como tu disseste há pouco, houve projectos feitos para o Bolhão e este será provavelmente o quarto, desde os anos 90 e foi aquele que acabou por se construir. No fundo, isto acontece porque há uma determinação política e um programa, também ele político, com uma visão muito ajustada ao edifício e ao programa. Uma das conclusões que eu tiro deste processo todo também olhando em retrospectiva (pois já lá vão cinco ou seis anos de trabalho), é que só com o conhecimento social, arquitectónico, urbano (acompanhado sempre de alguma visão de futuro) é que a decisão política é conseguida. Portanto, penso que o Bolhão (assim eu espero), vai ser a demonstração e a confirmação de que o conhecimento deve andar a par da decisão política. Foi isso que aconteceu neste caso.

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Reabilitação do Mercado do Bolhão. Cortesia de Nuno Valentim

SN: Eu tenho acompanhado as obras do Mercado do Bolhão e uma das coisas que é muito impressionante é este esforço e esta vontade de recuperar ao máximo a sua identidade, sempre que possível. Há umas semanas entrevistei o arquitecto João Mendes Ribeiro que me dizia uma coisa muito curiosa que era: procurar no passado respostas para o presente. Isso também aconteceu com o Bolhão nesta vossa investigação e ao longo deste processo construtivo? O passado também vos deu respostas para aquilo que estão a construir no presente?

NV: Sim, claro que sim! Desde logo esta questão (que eu falei há pouco): do comércio, da relação da rua enquanto estrutura, que havia, inclusive, antes de existir o edifício, pois já existia enquanto praça. E eram estas ruas que estruturavam a venda no mercado. Curiosamente essas estruturas de venda na antiga praça, antes destas barracas que existem neste momento no Bolhão...

SN: Ou seja já existia o mercado, mas não existia o edifício...

NV: Em 1830 surgem os primeiros desenhos para criar a praça do Bolhão, digamos assim... Isto é, o Mercado do Bolhão, que era no fundo uma praça aberta que resultava do encontro de quatro ruas: Sá da Bandeira, Fernandes Tomás, Alexandre Braga e Formosa. 

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Reabilitação do Mercado do Bolhão. Cortesia de Nuno Valentim

No fundo tal como sucedia em todos os mercados tradicionais, o Mercado do Bolhão era um mercado descoberto e o mercado teve um sucesso tal durante o séc. XIX, que no início do séc. XX o poder local voltou a discutir a necessidade de criar um edifício que resolvesse a quantidade de pessoas que estava a fluir e, simultaneamente, o sucesso de ter resolvido a venda dispersa pela cidade. Portanto, havia aqui também um objectivo higienista nesta operação e os primeiros projectos eram, de facto, um pouco megalómanos porque implicavam quase dois quarteirões cobertos da cidade com a Rua Sá da Bandeira a atravessar o mercado. Depois a Câmara Municipal do Porto optou por uma versão mais contida, ou seja de um edifício. Inicialmente, os desenhos que nós conhecemos do Bolhão eram com o Bolhão integralmente coberto como se fosse uma galeria comercial. A versão que acabou por ser construída é tal como a conhecemos com o Bolhão descoberto. E, por isso... ainda respondendo à tua pergunta, as estruturas de venda do mercado vão buscar inspiração às estruturas originais da praça. Para além disso, vão buscar inspiração também às estruturas que entretanto vão sendo construídas no próprio Bolhão, que apesar de mais maciças e de impossibilitarem a tal relação do interior com o exterior nos deram uma espécie de perfil para redesenharmos essas barracas. De resto, o edifício foi reconstruído, requalificado... Eu não vou dizer a palavra restaurado porque, no fundo, havia muita matéria existente que desapareceu. Ele foi em grande parte repristinado, ou seja reposto com uma dignidade que havia perdido. É evidente que fomos ao passado buscar essas pistas, foi reposta cobertura original em ardósia, foram repostas todas as montras em ferro fundido... 

SN: Essa questão da ardósia é interessante! Digo isto porque se calhar eu e muitos portuenses acharíamos que a cobertura era em ardósia, mas na realidade não, pois não, Nuno?

NV: Não, a cobertura era uma tela a imitar ardósia. Julgamos que foi colocada entre os anos 70 e 80. Isto porque começaram a acontecer muitas infiltrações e o pragmatismo dos anos 80 fez com que se fosse buscar uma tela preta. Neste momento quem passar no Bolhão vai reparar que aquele reflexo e aquele tom maravilhoso da ardósia quando incide a luz e aquela textura dos soletos... Vai reparar, quer dizer talvez nem se vai lembrar porque não vai ter a comparação...

SN: Ganhou um novo brilho, não é? 

NV: Algo de diferente está, de facto, a acontecer! Nós também fizemos uma aproximação à cor original do mercado, que era um tom de saibro, de areia dourado. Fomos tentando imitar o granito. O edifício é todo em argamassa e praticamente não tem granito à vista... Só tem granito entre as paredes interiores das lojas e tem alvenaria de granito por debaixo das argamassas, mas todas as lajes são já em betão. A construção acontece ali entre 1915 e 1918. Pensamos que se trata de um betão coignet, mas existe essa dúvida. É uma das primeiras estruturas em betão, que o nosso projecto procurou manter tanto quanto possível. Só nas zonas muito degradadas ou muito afectadas é que isso não era viável... Mas o passado também tem erros. 

SN: É importante é aprendermos com eles, não é?

NV: Exactamente! Ou seja, o Bolhão como teve um crescimento exponencial e como não se cobriu integralmente, as galerias tiveram que ser muito rapidamente cobertas. Os postos de venda centrais foram desenhados pelo Teixeira Lopes, mas os laterais já foram improvisados e cortam a colunata. Das montras originais restavam três ou quatro... das caixilharias de madeira dos talhos sobravam uma ou duas. Ou seja, há aqui muita adulteração, muita construção espúria. Não podemos ser acríticos relativamente ao que nós recebemos e é esse o papel do Arquitecto: ter um critério. Esse critério vem do seu conhecimento, do conhecimento do edifício, da história, mas também do conhecimento próprio. Eu costumo dizer que a autoridade vem do facto de sermos autores e termos esse conhecimento para perceber o que deve permanecer e o que deve ser transformado a bem do sucesso desta operação. E quando digo operação pode significar operação de mercado, uma operação patrimonial ou arquitectónica.

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Reabilitação do Mercado do Bolhão. Cortesia de Nuno Valentim

SN: Outra das coisas que este mercado vai ganhar é uma enorme transparência visual e de luz. Creio que uma das grandes preocupações deste mercado é que ele se abra à cidade e que isso também seja transposto para a sua própria arquitectura... Portanto, esta nova proposta propõe exactamente essa transparência maior. Fala-nos sobre isso, Nuno.

NV: Essa pergunta é interessante porque o mercado nasceu como algo fundamental para a cidade, mas não era propriamente um programa apetecível para ser visto, para ser apreciado. Se reparares nós do exterior pressentimos o mercado através de quatro portas...

SN: Quatro entradas...

NV: Entradas que filtram bastante o que acontece no interior. Outra coisa muito curiosa é a diferença de tratamento das fachadas exteriores. É um edifício de Beaux-arts que procura... apesar da sua expressão não ser de granito, procura imitar uma expressão de pedra no seu desenho, mas para o interior ele é seco, sem ordenamento e sem decoração. A função mercado que nós hoje romanceamos um pouco, na verdade, para estes senhores do início do séc. XX era uma função suja, que tem cheiro, que necessita de limpeza e era uma infraestrutura. E é muito interessante, por exemplo, outro pormenor que as pessoas vão reparar quando lá voltarem é que o terrado, ou seja, a cota baixa do mercado onde se vai passar todo o mercado de frescos... O mercado tem uma pendente contínua bastante forte. Ou seja, entre as escadas da Rua Fernandes Tomás de um topo e a porta da Rua Formosa há uma diferença de nível de 1,7 metros. É impressionante! Era como se fosse uma rua pendente para escoar claramente as águas de limpeza do próprio mercado, por isso existiam estes dois mundos: o mundo do mercado e o mundo mais glamoroso das lojas exteriores, que são uma espécie de mercado também dentro do mercado. Ou seja, o conjunto das sessenta e tal lojas que abrem para o exterior e que não têm relação com o interior do edifício é quase outro projecto. É incrível, com vários níveis e pisos. Portanto, quando nós falamos que o mercado vai ter uma relação nova com a cidade é porque este filtro que anteriormente e originalmente existia nós hoje olhamos para o mercado com outros olhos e até de forma diferenciadora das grandes superfícies, por exemplo. Ou seja, vamos buscar identidade, autenticidade, vamos buscar sabores aos alimentos. E queremos perceber, olhar e ver se as coisas estão limpas ou não e também entender se há pombos e animais a sobrevoar os nossos alimentos. Para além disso, todos aqueles vidros opacos, foscos, martelados vão ser transparentes, vamos poder olhar para o edifício. O edifício vai ter esta luz própria que vai dominar as ruas e vai ganhar também acessibilidade e relação porque não havia um único elevador no Bolhão. A entrada principal da Rua Formosa nem sequer escada tinha nesse ponto, portanto o edifício passou a ter uma bateria de elevadores para visitantes e elevadores de serviço brutal. São cerca de 12 elevadores, entre os quais contam-se elevadores monta cargas, elevadores de serviço, elevadores de público. Ganhou escadas, ganhou circuitos que não tinha, por isso neste momento vai ser possível atravessar directamente entre a Rua Alexandre Braga e a Rua de Sá da Bandeira. Ou seja, foi uma das intenções e um dos objectivos do projecto abrir claramente o mercado à cidade, tornando-o mais transparente, mais acessível, mais higiénico, mais funcional e acho que “mais” é mesmo uma das palavras-chave porque implica uma junção, procurando não retirar nada do que ele já era anteriormente.

SN: Achei curioso também fazeres esta comparação do Mercado do Bolhão com os supermercados e as grandes superfícies de hoje. Nunca nos preocupamos tanto com o facto de termos uma alimentação mais saudável, consumirmos produtos frescos, consumirmos localmente, saber a sua proveniência. Suspeitas que o mercado está a ser construído na altura certa?

NV: Sim, eu julgo que toda esta situação que nós vivemos reforça esta mudança cultural, este novo olhar que vamos ter em relação à forma como nos alimentamos e vamos comprar o que comemos, portanto eu acho que sim... Eu acho que é a confirmação de que a decisão política de manter radicalmente o mercado de frescos municipal com espaço para os produtores locais, com uma cave logística privilegiando precisamente essa possibilidade de abastecimento regional, local e também de abastecimento dos restaurantes de proximidade, mas... e sobretudo, e esta é uma decisão muito importante – a de manter o Bolhão descoberto e aberto. Isto também em relação aos tempos de pandemia que vivemos eu acho que confirmam a intenção política e arquitectónica da decisão deste quarto projecto, desta decisão de reabilitar o Bolhão. Isto porque a versão que estava na mesa anterior à nossa era uma versão que cobria integralmente o Bolhão de acordo com o tal projecto do Correia da Silva que acabou por nunca ser construído. Transformava o Bolhão numa galeria coberta e, no fundo, o projecto não vai para a frente porque o presidente Rui Moreira e o seu governo – com Paulo Cunha e Silva, Manuel Correia Fernandes, Pedro Baganha – não concordavam com esta decisão do Bolhão coberto e foi por essa razão que acabamos por ser convidados a fazer um novo projecto para o Bolhão, pois o projecto que estava em cima da mesa era, de facto, um projecto integralmente coberto. Parece-me que isto que passamos vem...

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Reabilitação do Mercado do Bolhão. Cortesia de Nuno Valentim

SN: Vem confirmar que este era o caminho certo...

NV: E, sobretudo, vem também confirmar outra coisa e, como tu dizias há pouco, houve aqui um grande esforço mútuo... mas houve também aqui um grande esforço nosso de construir apenas o que era necessário, o justo quanto. O nosso projecto é, de longe, aquele que constrói e edifica menos. Portanto, eu acho que também essa será uma das razões pela qual ele acabou por ser construído e viável, pois fez também esse exercício. Convém dizer que houve paralelamente um trabalho muito bem feito de diagnóstico social dos comerciantes feito pelo Gabinete do Mercado do Bolhão. 

Ou seja, a estrutura criada pela presidência para apoiar os comerciantes e, neste caso, falamos dos comerciantes actuais e dos futuros que contarão com essa ajuda neste processo de transição. É um gabinete que foi coordenado pela arquitecta Cátia Meirinhos e pelo Francisco Rocha Antunes e com uma equipa que esteve em permanência durante este tempo todo a trabalhar sempre nesse acompanhamento das pessoas envolvidas, seja as que já estavam, seja as que virão. Eu acho que essa é também uma das chaves para tudo isto correr bem, ou vir a correr bem como eu acredito que vai correr. 

SN: Um dos grandes desafios deste mercado é também o seu processo construtivo. Quem está de fora e vê apenas as telas azuis acho que não imagina a quantidade de pessoas envolvidas e o reboliço de obra quer por um lado para resolver a cave técnica, quer por outro as soluções de Engenharia que isso exigiu da vossa parte e também o esforço que fizeram para recuperar elementos e técnicas de construção que neste momento algumas delas até estão a desaparecer, o encontrar as cores certas, as avaliações constantes que existem e existiam durante o processo. Fala-nos sobre como tem sido este processo construtivo.

NV: As frentes de trabalho são imensas e há uma equipa muito grande de pessoas a trabalhar. Isto só é possível porque essa equipa existe e eu não queria também deixar de referir aqui os coautores e coautoras do projecto como a Margarida Carvalho, a Rita Lima, o Frederico Eça, o Juliane, o Luís Mendonça e agora na sinaléctica também o Eduardo Aires que vai ser fundamental com a marca e com a ideia de futuro do Bolhão. Já referi também o Gabinete do Mercado do Bolhão, mas também foram feitos estudos de túnel de vento no Laboratório de Engenharia Civil coordenados pelo professor Vasco Freitas, estudos de modelação e das futuras temperaturas que se vão sentir no terrado.

SN: Caramba! Vão a esse nível!? Que giro!

NV: Sim. Foram feitas análises permanentes... Para além da equipa de Engenharia coordenada pelo professor Cardoso Teixeira de todas as especialidades, houve também a consultoria muito especializada e específica do professor Aníbal Costa na parte das estruturas. Tivemos duas gestoras de empreendimento por parte da Câmara Municipal que têm feito um trabalho diplomático e prático – a engenheira Sara Matias e a engenheira Sofia Barbosa – com uma fiscalização muito atenta e competente e duas empresas de construção (a Lucios e a Arca) que tem feito tudo para que isto corra bem. 

Como dizia o Távora, o arquitecto poderá ser um pedreiro que aprendeu a falar latim, mas na verdade não faz nada sozinho. Eu sinto-me mesmo um pedreiro no meio de tudo aquilo e, por isso, é importante passar esta mensagem de que, sim, há complexidades técnicas imensas porque fazer o mercado hoje em dia não é abrir um guarda-sol e montar uma mesa no meio do terrado. A quantidade de exigências como aquelas que nos são colocadas ao nível da higiene, os próprios materiais que estão em contacto com os alimentos, a protecção solar e as temperaturas a que esses alimentos têm de estar sujeitos, a total protecção que temos de considerar em relação aos pombos, gaivotas, que não podem sobrevoar o mercado de frescos, a tal higienização diária a que o mercado tem de estar sujeito e a resistência mecânica e física regulamentar é enorme. Por outro lado temos de fazer tudo isto, preservando sistemas construtivos originais e de conciliação muito exigentes e isso só é de facto possível com uma equipa muito competente. Todos os dias chegam dezenas de e-mails com pedidos de aprovação de materiais e de alternativas. Nos dias que correm a relação com a obra é um exercício muito denso, complexo, exigente e que obriga a uma disponibilidade permanente muito maior (como podem imaginar neste caso) e, sim, no fundo, dando alguns exemplos: a manutenção das tais lajes de betão original, onde eu diria que em 90% das situações, obrigou a um escoramento e a estruturas provisórias que complicam muito o andamento da obra. O número de pessoas que está permanente em obra é brutal. Julgo que tens tido a noção disso porque tens estado a acompanhar e a filmar.

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Reabilitação do Mercado do Bolhão. Cortesia de Nuno Valentim

SN: Sim.

NV: Eu quando páro para olhar e ver o que é que se está a passar na obra e observo fico sempre muito impressionado com a quantidade de movimento que existe em permanência.

SN: Quase uma fábrica de construção.

NV: Sim e, portanto, é importante as pessoas saberem que isto não esteve nunca parado e o tempo que está a demorar é o tempo que é necessário e que o Bolhão necessita para ser reabilitado correctamente. O presidente não cedeu a tentações eleitoralistas e a pressões. O Bolhão é um edifício para este século. Ou seja, tem de servir este século. Estamos a fazer uma obra a longo prazo e isso não se compadece com pressas. Portanto, há aqui também um exercício muito difícil. O que eu posso garantir é que a Arquitectura tem estado muito próxima e respondendo de forma muito próxima.

SN: O que te ensinou o Bolhão sobre a Arquitectura, Nuno?

NV: O Bolhão ensina... Esta nossa decisão que tomamos de ser arquitectos um dia... Eu penso que sei porquê, mas acho que avançamos sem grande consciência do que nos espera... Mesmo assim, eu penso que ter uma profissão que se confunde com a vida é um privilégio e, por isso, nos últimos seis anos o Bolhão faz todos os dias parte da minha vida. Desde o convite que o Rui Moreira e o seu executivo me fez e que eu fixei porque é o dia de anos da minha filha... Até hoje não há um dia em que o Bolhão não faça parte da minha vida, portanto ensina que tal como a vida as obras são exercícios de crença, de fé, de esperança, de resiliência. Nós temos de ter a humildade, o bom senso e a calma para ir levando a Obra e a Vida com essa esperança. Um dia isto vai estar construído e cá estaremos para ir resolvendo os problemas que acontecem, que vão acontecer e que estão a acontecer, mas também para usufruir de novo num espaço maravilhoso. Ou seja, acho que sou um privilegiado pelo facto de poder assistir a esta transformação, de ter tido este convite e, por outro lado, sabendo que há custos, mas que no limite não são muito diferentes dos custos que todos os dias cada pessoa tem como o casar todos os dias, o educar todos os dias os seus filhos... Eu gosto muito desta analogia entre aquilo que faço e aquilo que vou vivendo. No fundo, o Bolhão ensinou-me a ter essa calma e, hoje em dia, estou também eu próprio muito mais sereno e menos preocupado. Acho que o Bolhão me deu essa resiliência!

SN: Nuno, muito obrigada por esta conversa e por fazeres parecer que a Arquitectura – que é tão complexa – é algo que tornas simples. 

SN e NV: (risos)

NV: Bom... Acho que só assim é que se pode ir fazendo alguma coisa porque se bloquearmos com... O medo é paralisante e eu acho que, de facto, mais do que nunca fazer Arquitectura é uma actividade de risco, perigosa e com imensa responsabilidade... mas, por outro lado, é maravilhoso transformar, pensar, partilhar e sobretudo fazer isto integrando uma equipa e pessoas. E, olha, eu é que agradeço esta oportunidade de falar desta forma do Bolhão um bocadinho mais pessoal e distanciada da obra porque, de facto, este é um projecto que tem muitas histórias dentro da sua história e agradeço muito este teu convite e a possibilidade de partilhar esta experiência. Muitos parabéns pela tua iniciativa também.

SN: Obrigada, Nuno!

Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Reabilitação e memória de equipamentos públicos: entrevista com Nuno Valentim " 18 Mai 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/961848/reabilitacao-e-memoria-de-equipamentos-publicos-entrevista-com-nuno-valentim> ISSN 0719-8906

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