A busca por produtos mais sustentáveis deve começar na etapa de projeto. Nessa ótica, é essencial que os projetistas e todos os envolvidos neste processo tenham conhecimentos adequados, sendo que práticas sustentáveis devem fazer parte da formação do Arquiteto e Urbanista.
Verifica-se que ao longo dos anos, muitos cursos de Arquitetura têm incluído, de forma mais significativa e aprofundada, essa discussão em suas grades curriculares, seja através de disciplinas específicas e eletivas ou inserida em disciplinas obrigatórias do curso.
Uma experiência importante, em que o estudante começa a ter contato com os materiais é o chamado canteiro experimental, onde ele pode colocar em prática e construir algum projeto desenvolvido. O canteiro experimental pode ser definido como um espaço para a aplicação prática de exercícios de ensino, pesquisa e extensão, com foco na área da construção. Um dos objetivos do canteiro experimental é promover um método de conscientização, instituir como um espaço de unidade entre o saber e o fazer, como lugar da problematização e da autonomia dos sujeitos na definição de sua atuação. Desta forma, por que não estimular um canteiro que utilize materiais alternativos, mais sustentáveis e circulares?
A economia circular (EC) vem de um amplo conceito econômico, que pode ser aplicado em diversos setores, inclusive o da arquitetura e construção civil. Embora a EC aplicada à arquitetura e construção tenha várias estratégias, como pode ser visto aqui, a experiência aqui relatada explora o reaproveitamento de resíduos, elencando pontos importantes a serem considerados durante as atividades realizadas em um canteiro experimental.
Os exemplos apresentados decorrerem da experiência de dois anos (entre 2017 e 2018) da disciplina de Processos Construtivos III, do Departamento de Tecnologia da Construção da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DTC-FAU/UFRJ). Todas as atividades foram realizadas no Laboratório de Ensino de Materiais de Construção e Estudos dos Solos (LEMC-FAU/UFRJ) e seu Canteiro Experimental. Algumas das atividades do Canteiro Experimental da FAU/UFRJ podem ser acessadas aqui.
Quem são os principais beneficiados?
Os primeiros beneficiados são os próprios alunos, pois podem ter uma grande economia no processo, evitando gastos com materiais novos para desenvolvimento do trabalho. Sendo que em alguns casos o gasto pode chegar próximo a zero! O meio ambiente também agradece, já que muitos destes resíduos seriam descartados e são evitados o consumo de matérias primas virgens. Os geradores de resíduos também agora possuem uma forma de destinar seus resíduos, que podem se tornar matérias primas importantes.
Um ponto importante do canteiro experimental é ver na prática, como alguns materiais podem ou não ter um desempenho satisfatório. Pois, um ponto negativo comum quando resíduos são utilizados é a produção de produtos de baixa qualidade ou durabilidade. Dessa forma, o aluno tende a ter uma maior consciência que para o emprego de resíduos são necessários cuidados especiais para o desenvolvimento de produtos de bom desempenho, para só assim, poder ser considerado um produto sustentável.
Por fim, toda a sociedade pode ser beneficiada! Muitos dos produtos desenvolvidos podem ser utilizados na própria faculdade/universidade ou ser doado para locais carentes, como creches, asilos, comunidades carentes, etc. Nessa ótica, é muito importante que os produtos desenvolvidos tenham relação com as necessidades específicas desses grupos sociais.
A importância do processo de projeto e execução e avaliação do produto
Como qualquer desenvolvimento de produto é necessário um bom projeto! Desta forma, parte-se de um projeto conceitual até chegar mais próximo do que seria um projeto executivo, para a execução do protótipo, de forma que já saibam de antemão quais serão os equipamentos que irão precisar nos processos de transformação do material. Porém, como é um processo normalmente do tipo “acertos e erros” é importante que o projeto seja atualizado constantemente e todas as informações (principalmente os erros) sejam registrados ao longo do processo, possibilitando uma melhoria contínua.
Um ponto importante é a avaliação de custos, que pode ser realizada na forma de uma planilha simplificada de orçamento, com a quantificação dos insumos, custos unitários e custos totais. Como grande parte dos resíduos são obtidos de forma gratuita, ao final é possível quantificar de forma objetiva a importância que foi reaproveitar um resíduo.
Uma forma interessante de registrar o processo e que foi aprovado pela maioria dos alunos foi a produção de um vídeo (em torno de 3 a 5 minutos) mostrando todas as etapas desenvolvidas no processo de projeto e execução. Os vídeos produzidos nestes dois anos podem ser acessados aqui. Um relatório final mostrando todas as dificuldades encontradas ao longo do processo e proposição de melhorias também é importante para a avaliação do senso crítico dos alunos.
Quais os resíduos são mais fáceis de serem reutilizados?
Observou-se ao longo destes dois anos que materiais leves, como papelão, tubos de PVC são os mais fáceis de serem reutilizados, pois um obstáculo comum é o transporte desses materiais para a Universidade, já que muitos alunos utilizam transporte público. Esse, por exemplo, é um dos maiores problemas para os paletes de madeira, mas mesmo assim foi utilizado em alguns projetos.
Outros resíduos inusitados como esquadrias, corpos de prova de concreto (que são gerados em grande quantidade em laboratórios de pesquisa que estudam materiais de construção), tecidos, “tampinhas” metálicas, caixas de leite, também foram reutilizados, mostrando que o importante é ter criatividade!
- Artigo relacionado
Arquitetura e economia circular na era dos espaços compartilhados
A escolha do resíduo deve ser bem justificada ao contexto que o projeto será aplicado, sendo que algumas perguntas são importantes, como por exemplo: De onde vem este resíduo? É fácil de ser adquirido? É possível utilizar externamente? Precisa de algum tratamento? Tem algum material tóxico em sua composição? Infelizmente, muitas dessas informações não estão disponíveis facilmente, sendo necessário pesquisas mais aprofundadas. Sugerimos que um banco de dados seja elaborado e atualizado a partir das experiências realizadas no canteiro. Um exemplo de “Materioteca” que contém informações sobre diversos materiais, inclusive alguns provenientes de resíduos pode ser acessado aqui.
Quais os principais produtos que podem ser desenvolvidos?
Diversos produtos podem ser desenvolvidos, sendo os mais comuns painéis que podem ser utilizados como elementos na fachada, divisórias internas ou forros; pisos, seja pensando em algum tipo de revestimento (como é o caso do porcelanato líquido com tampinhas), ou estrutura (por exemplo, utilizando paletes de madeira); e mobiliários, como bancos, mesas, casas de cachorro, jardins verticais (utilizando diversos materiais como tubos de PVC, papelão, paletes, etc.).
Quais equipamentos podem facilitar o processo?
Como o tempo para o desenvolvimento desses produtos tende a ser escasso, o uso de equipamentos que aumentem a produtividade do processo são muito bem vindos! Verificamos que alguns deles são de grande ajuda, principalmente para o tratamento e beneficiamento de materiais à base de madeira, como a serra tico-tico, cortadora a laser, parafusadeira, lixadeira elétrica. Mas é claro, é importante que os alunos saibam manusear esses equipamentos, para não ocorrer acidentes. É importante ter pelo menos um técnico capacitado para o apoio destas atividades. Muitos destes equipamentos já estão presentes nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo e canteiros experimentais, mas, especificamente para o reaproveitamento de resíduos eles se tornam ainda mais importantes.
Um ponto importante é o controle e registro de acesso a alguns desses equipamentos utilizados pelos alunos, principalmente aqueles de maior custo e mais sensíveis, como a serra tico-tico, furadeiras e parafusadeiras. Como é comum uma grande rotatividade de alunos esse cuidado torna-se essencial para a preservação dos equipamentos.
Quais os cuidados necessários?
Na etapa de concepção e projeto é preciso pensar muito bem qual será o público que utilizará o produto desenvolvido, que pode ser desde crianças, idosos ou os próprios estudantes e trabalhadores das universidades. Para isso, é essencial que durante a etapa de desenvolvimento do projeto conceitual sejam pesquisados quais os materiais e cuidados importantes para o público alvo e, de preferência, conversando com os responsáveis dos locais que se pretende destinar os produtos desenvolvidos no canteiro.
Na etapa de construção, o primeiro cuidado a ser tomado é a disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os alunos, para diminuir a chance de ocorrer acidentes. Esta é uma etapa complicada, pois muitos alunos não veem a importância e a seriedade de proteção, então todo cuidado é pouco! Alguns EPIs são básicos, como: luvas, óculos, máscaras e botas, que devem estar facilmente acessíveis.
Placas informativas, que mostram onde as ferramentas estão localizadas e quais os locais mais adequados para se trabalhar com certo material (que pode ser feito a partir de um layout do canteiro) também são muito importantes, para uma melhor organização e segurança do processo.
Os canteiros experimentais devem ser projetados e organizados para funcionarem em locais grandes e de preferência com pé-direito alto e bem ventilados, já que muitas atividades são realizadas de forma simultânea.
Como muitos dos produtos necessitarão de algum tipo de proteção, como uso de tinta, verniz, ou algum tipo de cola, é muito importante que as atividades que façam uso desses materiais, que normalmente possuem alguma substância de forte odor e liberação de substâncias químicas, sejam realizadas em locais externos à edificação e com uso de máscaras!
Finalmente, a limpeza durante e após a realização dos serviços executados no canteiro deve ser uma premissa básica. Sendo ainda importante gerenciar os resíduos gerados nesse processo, que podem servir para outros grupos ou serem destinados à reutilização ou reciclagem indo ao encontro do que a EC prega.
Quais as principais dificuldades?
Dentre as principais dificultadas observadas podem ser citadas: o transporte de alguns resíduos (do local de geração até o canteiro experimental), principalmente aqueles de grande volume ou mais pesados, como paletes e caixas de madeira; a qualidade de alguns resíduos que muitas vezes estão muito degradados para serem reaproveitados; a dificuldade de encontrar alguma forma de ligação/fixação entre diferentes resíduos/materiais; a falta de padronização e homogeneidade entre os resíduos, por exemplo papelão (gramatura, espessura), tubos de PVC (diâmetro); o tipo de tratamento a ser dado (por exemplo, qual o tipo de tinta, resina, verniz, etc.) e; a disponibilidade da quantidade mínima adequada de alguns resíduos.
Todas essas dificuldades são comuns quando resíduos são reaproveitados, sendo também observadas em modelos de negócio que utilizam princípios da EC. Dessa forma, o aluno passa a entender alguns aspectos que podem ser críticos caso ele queira se especializar e empreender na área de EC.
Considerações finais
O desenvolvimento de produtos mais sustentáveis e circulares no setor de arquitetura e construção deve começar nos cursos de formação dos profissionais. A técnica de experimentação, de acertos e erros se mostrou adequada, pois muito dos materiais (resíduos) utilizados não se tem muito conhecimento, por exemplo de fixação, ligação, tratamento, durabilidade, etc. Dessa forma, o canteiro experimental se mostra como um lugar totalmente oportuno para esse tipo de experimentação, e, deve ser incentivado nos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Produtos.
Nessa ótica, o registro das estratégias que deram certo e as que não tiveram sucesso é muito importante, como é o caso deste artigo, que trouxe um breve registro, mas que esperamos que seja útil para outros estudantes e profissionais da área.
Pensando em uma organização do fluxo de materiais e resíduos normalmente gerados em uma universidade ou faculdade, seria interessante o desenvolvimento de um tipo de plataforma online, ou quem sabe um aplicativo de celular, onde estaria disponível um banco de dados, com esses materiais/resíduos, locais de geração e quantidade gerada, para uma melhor gestão dos mesmos.
Finalmente, apresentamos aqui diversas possibilidades de produtos que podem ser desenvolvidos. Destacamos a importância de mostrar ao futuro usuário que o produto em questão foi produzido com o reaproveitamento de resíduos e sugerimos a elaboração de um tipo de manual de uso e operação, pensando principalmente na forma de construção e manutenção do produto, e os cuidados necessários.
Enquanto o reaproveitamento de resíduos não for ensinado, estimulado e valorizado, dificilmente será possível ter um desenvolvimento mais sustentável e circular na arquitetura e construção civil.
Biografia resumida
Lucas Rosse Caldas é engenheiro civil, ambiental e sanitarista, doutor pelo PEC-COPPE-UFRJ. Pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Materiais e Tecnologias de Baixo Impacto Ambiental na Construção Sustentável (NUMATS). Professor na Pós-Graduação Executiva em Meio Ambiente da COPPE/UFRJ e ministra cursos sobre construções e cidades sustentáveis no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ).
Luciana Maria Bonvino Figueiredo é engenheira civil, doutora em Engenharia Civil, Professora do Departamento de Tencologia de Construção da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (DTC – FAU UFRJ). Pesquisadora dos Grupos de Projeto e Pesquisa Espaço Saúde e Laboratório de Habitação - LabHab, da FAU-UFRJ.
Marcos Martinez Silvoso é engenheiro civil, doutor pelo PEC-COPPE-UFRJ. Professor do Departamento de Tecnologia de Construção da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (DTC – FAU UFRJ) e Coordenador do Laboratório de Ensino de Materiais de Construção e Estudos dos Solos (LEMC-FAU/UFRJ) e de seu Canteiro Experimental. É Professor e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRJ (PROARQ-UFRJ) onde desenvolve o Projeto Inovação e Sustentabilidade em Materiais e Sistemas Construtivos.