Cultivando territórios comuns: encontros para autonomia

Considerando que 90% das cidades são construídas sem arquitetos e urbanistas, quais são os reais arquitetos que estão imaginando e construindo o mundo que queremos viver? Quais os modos de produção, os materiais, os modos de relação e reprodução social que são praticados por esses coletivos e apontam caminhos de futuros possíveis, inclusivos, diversos, justos e ecológicos? Quais arquiteturas existem para instigar a liberdade, a colaboração, a co-responsabilidade, o cuidado consigo, com o outro e com o espaço que habitamos?

Diferentes alternativas baseadas em práticas inovadoras (econômica, material, social e ecologicamente) e construções coletivas têm sido desenvolvidas e prototipadas, apontando para uma experiência de democracia em ação e processos sociais emancipatórios. Contra-narrativas e vislumbres de outras possibilidades de mundo emergem, questionando nossa relação com identidade, tempo, trabalho, desejo, cuidado, o outro, a comunidade, a cidade e o território. A variedade de alternativas encoraja o debate sobre questões chave que precisam ser discutidas e aprofundadas, assim como aquelas que se referem a pedagogia e práticas da arquitetura contemporânea.

Ao discutir uma arquitetura para autonomia, reclama-se pelo direito à cidade, pela necessidade de desenvolver capacidade de resiliência, pela coprodução e gestão compartilhada dos comuns. Entender como empoderar o movimento de transição de uma prática hegemônica, exclusiva, colonial, rumo a práticas complexas, múltiplas, inclusivas, situadas, resilientes, social, cultural e ecologicamente integradas - que produzam afeto, valor, significado e pertencimento.

Cortesia de Marcela Arruda

A primeira edição do Seminário “Arquitetura para Autonomia: ativando territórios educadores” aconteceu em Veneza, em julho de 2018, no contexto da 16a Bienal de Arquitetura, organizada pelo coletivo Escola Sem Muros em parceria com o Esperienza Pepe, uma ocupação temporária de residências transdisciplinares ao longo de 2018 realizada pelo coletivo Biennale Urbana em colaboração com o Pavilhão da França Infinite Places.

O encontro internacional buscou compreender, discutir e apontar caminhos para uma prática da arquitetura e urbanismo contemporâneos mais complexos e em relação ao contexto que vivemos. Diante de um necessário processo de descolonização do pensamento e do corpo, e compreensão de modos de habitar não hegemônicos, é fundamental afetar-se, repensar os meios de produção em que a prática arquitetônica está inserida, reposicionar-se com relação à crise social, política e ecológica que enfrentamos.

Para isso, Arquitetura para Autonomia reuniu arquitetos e artistas com uma prática social e ecologicamente responsável, ativistas do bem viver nos territórios em que estão inseridos; práticas que reinventam os métodos educativos, de aprendizado, e que cultivam territórios de construção do comum, em três dias de apresentações de práticas, debates, laboratórios de cocriação de ideias para criar uma pedagogia da autonomia e estratégias para proteger territórios educadores.

Cortesia de Marcela Arruda

No primeiro dia, os pesquisadores Marcella Arruda e Bernardo Amaral apresentaram um contexto sobre a realidade da arquitetura e o que seria uma arquitetura real. A arquitetura sempre foi uma ferramenta para o poder: religioso, institucional, econômico. O que significaria então usar a arquitetura para descentralizar o poder, distribuí-lo às comunidades para regenerarem seus próprios territórios? Entender a arquitetura a partir da relação entre afeto e processo: o que, porque, onde, como, para quem (com quem) construir? Como criar territórios educadores [1] através da arquitetura (no sentido de criar um processo baseado na formação mútua, na troca horizontal, na produção de conhecimento coletiva a partir da experiência real)? Quais as funções pedagógica e social da arquitetura (individual e coletiva/ecológica)?

A noção de conscientização de Paulo Freire se mostrou fundamental - e então, como entendê-la de um ponto de vista de resistência e (r)existência: como o sujeito pode perceber sua realidade de uma forma crítica, mas também descobrir-se como sujeito ativo de transformação dessa realidade? Quais as arquiteturas que fomentam esse processo de conscientização e portanto de desenvolvimento da autonomia do ser? Quais estruturas que podem existir dentro de uma lógica de responsabilização pelos elementos agrupados ao longo do processo do fazer: econômicos, materiais, ecológicos, sociais? Para mudarmos a forma como fazemos as coisas, precisamos então mudar a forma como aprendemos as coisas.

No Seminário, pessoas de iniciativas de diversas cidades do mundo apresentaram suas pesquisas para uma nova educação e outras práticas espaciais críticas. Dentro da discussão de ferramentas para uma pedagogia da liberdade, Barbara Muhle (BR - grupo de construção agroecologia da FAUUSP), Samuel Kalika (critical concrete), Rossina Shatarova e Dora Gorenak (EASA European Assembly of Students of Architecture Bulgaria e Croacia), Gabriela Deleu (O espaço das águas e os resíduos como materiais) e Bianca Elzenbaumer e Martina (Brave New Alps e Eco-nomadic school) apresentaram suas vivências com seus respectivos trabalhos e coletivos, sob a perspectiva de práticas político-pedagógicas. Com relação aos agenciamentos necessários para criação de uma arquitetura integrada e territórios autônomos, Paola Cannavo e Alessandro Antonelli (LabGov - LABoratorio per la GOVernance della città come un bene comune), Jorge Noreña (Ruta4 arquitectura), Patrick Hubmann (Constructlab), Giulio Grillo (Rebiennale), e Giulia Cantaluppi, Carlo Gallelli, Isabella Inti e Matteo Persichino (Tempo Riuso) apresentaram suas práticas e estratégias de projeto.

Após o encontro de Veneza, será então realizado o segundo Seminário “Arquitetura Para Autonomia: ativando territórios educadores” em São Paulo, Brasil, nos dias 29 a 31 de março de 2019. Organizado pelo Escola Sem Muros em parceria com o Instituto a Cidade Precisa de Você, o encontro busca fomentar a troca de utopias tangíveis de outras formas de construir e habitar o mundo. O papel do arquiteto reside em proteger e promover valores na sociedade materiais ou imateriais que ofereçam espaço para perceber e reconhecer as coisas de uma outra forma. Que ferramentas podemos utilizar? De que forma estamos praticando essa construção de outros mundos?

Cortesia de Marcela Arruda

O Seminário conta com o apoio e fomento do CAU-SP, em parceria com os espaços comunitários Quilombaque Perus, Teatro de Conteiner e Casa do Povo, além de ter envolvido cocriadores (Goma Oficina, Permasampa, SASP, Ecoativa, Laboratório para Outros Urbanismos, Canteiro Escola FAUUSP, Espaço Cultural Jardim Damasceno e Grupo Fresta), colaboradores das rodas de conversa e oficinas. Como produto do Seminário, será produzida uma publicação com relatos de experiências de organizações, coletivos e pessoas que estão em suas práticas desenvolvendo uma arquitetura autônoma e contribuindo para a ativação e fortalecimento de territórios educadores no Brasil e América Latina.

Mais informações aqui.

Notas
1. Por território educador, compreender esse conceito desde uma perspectiva mais ampla, entendendo seu significado como não só algo na escala macro, mas também micro, do corpo como território.

Sobre este autor
Cita: Marcella Arruda. "Cultivando territórios comuns: encontros para autonomia" 18 Mar 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/913223/cultivando-territorios-comuns-encontros-para-autonomia> ISSN 0719-8906

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