Arquitetura, pedagogia e um projeto de país: o Sistema S

Muito tem se falado desde que o novo ministro da economia, Paulo Guedes, afirmou que é preciso “meter a faca” no Sistema S, entretanto, as discussões se concentraram nas questões e aspectos financeiros do sistema. Para compreender a relevância do Sistema S - que tem no SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), SESC (Serviço Social do Comércio), SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), SESI (Serviço Social da Indústria) e SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), seu carro chefe - para a sociedade brasileira, parece mais significativo conhecer as motivações originais do sistema de ensino profissionalizante, o projeto pedagógico e político por trás de sua criação, a importância da arquitetura de suas unidades para alcançar os objetivos pretendidos e a sua relevância ainda atual no campo da educação e cultura.

A valorização da educação para o trabalho já vinha ocorrendo desde a década de 1920 no Brasil, mas só alcançou relevância para a política econômica após a grande crise de 1929, quando gradativamente procurou-se instituir uma produção industrial nacional com vistas a substituir as importações. Tal mudança na orientação político-econômica do país exigia mão de obra preparada para lidar com as tecnologias do sistema industrial, e nesse horizonte a formação de um novo tipo de trabalhador apresentou-se como necessidade fundamental, demandando investimento em um projeto pedagógico extenso que abarcasse toda a sociedade brasileira.

Após mais de uma década de debates, a Constituição de 1937 finalmente estabeleceu um sistema de ensino sob novas bases, determinando conteúdos e formatos comuns para todo o país, unificando os diferentes programas praticados pelos estados da federação até então. Nos anos seguintes foram sendo paulatinamente aprovadas as leis orgânicas que regulamentavam cada uma das etapas, dentre as quais tem destaque:

  • Ensino industrial: Decreto lei nº 4048 de 20/01/1942 e Decreto lei nº 4073 de 30/01/1942;
  • Ensino secundário: Decreto lei nº 4244 de 09/04/1942;
  • Ensino primário: Decreto lei nº 8529 de 02/01/1946.

A precedência da organização do ensino industrial demonstra quais eram os objetivos prioritários do Estado. Cada uma das etapas do ensino recebeu incumbências específicas, e a ordem de normatização revela a importância dessas atribuições nos planos estatais. Enquanto a primazia da regulamentação do ensino industrial se justificava pela necessidade de suprir o carente mercado brasileiro com mão de obra qualificada, a organização do ensino secundário nos permite entrever que este também estava entre as prioridades do Estado, assim como o ensino universitário, instituído durante os anos 1930 com a fundação das as primeiras universidades do Brasil.

Sede do SEBRAE / gruposp + Luciano Margotto. Imagem © Nelson Kon

Vê-se que a organização de um sistema de ensino estava por trás de um projeto de nação que permeava todas as classes sociais e todas as esferas da existência. Não se tratava apenas da qualificação da mão de obra ou da formação de uma nova classe de industriais preparados pelas novas universidades para a direção política e econômica, mas também de estruturar uma sociedade culta, letrada e pacificada. Parte da elite industrial tinha essa compreensão, entre eles Roberto Mange, que em sua biografia, realizada pelo Projeto Memória SENAI-SP, afirmou:

"Embora fundamentais, operários qualificados não são a única necessidade da sociedade industrial em seu conjunto. Aos novos métodos de aprendizagem e produção devem ser associados ritmos de vida e de comportamentos destinados a reforçar essa "pedagogia do industrialismo", e isso vai acontecer nas escolas, nas fábricas, nos escritórios, nas ruas e até nas casas." (MANGE apud SENAI, 2012, p.118-119)

Para colocar em prática essas ideias, em 1931, foi criado o IDORT (Instituto de Organização Racional do Trabalho), presidido por Armando Salles de Oliveira e dirigido por Roberto Simonsen, Roberto Mange, Lourenço Filho, entre outros. Organizado com o objetivo principal de reunir a classe industrial de forma a ensejar o estabelecimento de metas afeitas ao seu projeto de desenvolvimento nacional, o Instituto participou ativamente da formulação das políticas econômicas durante todo o Estado Novo, tendo papel fundamental nas reformas educacionais, mesmo naquelas não relacionadas diretamente ao ensino profissional. O início da Segunda Guerra Mundial também colaborou com o planejamento de uma reforma educacional brasileira objetivando primordialmente a preparação do trabalhador, visto que impôs ainda mais exigências ao sistema produtivo mundial, incluindo uma reestruturação nos fluxos de comércio entre as nações e, dessa forma, nos papéis exercidos pelos países na economia mundial - tanto centrais quanto os periféricos.

Sesc 24 de Maio / Paulo Mendes da Rocha + MMBB Arquitetos. Imagem © Flagrante / Romullo Fontenelle

Apesar da aparente valorização, oposições às propostas de implantação de um sistema de ensino ainda se fizeram presentes, baseadas principalmente em questões de ordem financeira, as mesmas que estão em pauta agora, e que frequentemente ressurgem no seio da sociedade brasileira quando se trata de investimento em educação. A despeito disso, alguns fatores - entre eles destaca-se o fato de a administração das escolas ficar a cargo das associações industriais e/ou comerciais - fizeram com que o sistema vencesse a resistência e se efetivasse na prática, espraiando-se por todo território nacional ao longo das décadas seguintes. A relativa desvinculação dessas organizações com relação ao Estado garantiu uma certa liberdade de ação, concedendo às escolas por elas administradas uma margem de proteção quanto às decisões, escolhas ou mudanças de rumo impostas pelos governos. Considerando o cenário atual, parece que esse percentual de autonomia não será suficiente para garantir a continuidade do sistema S, ao menos não com as características quantitativas e qualitativas pelas quais é reconhecido.

Foi a partir dos anos 1920 então, com a aceleração dos processos de industrialização e, consequentemente, de urbanização, que surgiram movimentos a favor da educação pública e obrigatória que, como vimos, mesmo naquele contexto não foram unânimes. Cabe lembrar que foi também a partir da segunda década do século XX que se fortaleceu no país um movimento nacionalista, cuja premissa fundamental era edificar uma identidade brasileira, determinar seus símbolos, em um esforço de distinção do país em face às demais culturas. Os arquitetos participaram ativamente desse projeto, e a educação ganhou importância em função dos compromissos de transformação social.

Nova Unidade Senac São Miguel Paulista / Levisky Arquitetos | Estratégia Urbana. Imagem © Ana Mello

Esse ponto é relevante porque nas recentes discussões sobre o sistema S, surgiram, ou melhor, ressurgiram críticas e questionamentos relativos à arquitetura dessas escolas e/ou centros culturais e esportivos que, no entendimento de alguns, é monumental ou valorosa demais para o seu fim. Na contramão desse pensamento, os pedagogos da primeira metade do século XX, como Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, enxergavam a arquitetura escolar como parte operativa do sistema educacional, porque eles – assim como grande parte da intelectualidade brasileira daquele período - acreditavam no nacionalismo como estratégia fundamental para o desenvolvimento socioeconômico do país, participavam ativamente da edificação de uma identidade brasileira e enxergavam o significativo potencial pedagógico da arquitetura como catalizador dessas construções, como podemos ver nas palavras de Teixeira:

"Reconheçamos, entretanto, que nenhum outro elemento é tão fundamental, no complexo da situação educacional, depois do professor, como o prédio e suas instalações. (...) No Brasil estamos a procurar este efeito. Façamos o gesto da fé para ver se a adquiriremos. A arquitetura moderna é esse gesto. Possam estes prédios escolares concebidos em juventude, árdegos e elegantes como potros de raça, impacientes de dinamismo e de amor à vida, comunicar a educação e, pela educação, a existência brasileira as suas finas e altas qualidades de inteligência, coragem e desprendida confiança no futuro." (TEIXEIRA, 2003, p.209)

Nesse sentido, além de responder com competência à racionalidade funcional do programa educacional, o projeto de arquitetura dos edifícios de ensino, para aqueles intelectuais da primeira metade do século XX, deveria atender aos ensejos políticos do governo de produzir ícones que pudessem ser assimilados como símbolos de brasilidade. Essa postura revela o reconhecimento de uma dimensão pedagógica da arquitetura e de que a profissão estava vinculada a uma função social que, naquele momento, interessava apropriar para os fins políticos de atrelar valor aos edifícios públicos.  

Com a arquitetura das edificações do Sistema S não foi e não é diferente. O projeto arquitetônico das unidades dessas instituições deve prioritariamente atender aos propósitos dos educadores e materializar as inovações por eles propostas nos programas educacionais, mas também observar os ensejos dos idealizadores do sistema e os objetivos do próprio Estado. Nesse horizonte, o projeto de arquitetura deve ultrapassar o pragmatismo e se dispor a atender aos intuitos mais sutis e subjetivos como o de valorizar o programa que a arquitetura abriga, chamando a atenção da sociedade para a relevância política e cultural da instituição, e auxiliando em sua continuidade e crescimento. Em outras palavras a arquitetura participa não apenas da organização física, espacial, mas é colaboradora direta da construção da imagem institucional, como podemos ver no trecho abaixo, de autoria do engenheiro Bauer – do setor de obras do SENAI -, publicado na revista Bem Estar:

"(...) a preocupação, justificável, de chamar a atenção do público e dos industriais para a importância da obra educacional que o SENAI vinha realizando, e, conquistando sua simpatia, de mostrar-lhes o muito que ainda havia por fazer." (BAUER, 1960, p.30)

Sesc Avenida Paulista / Königsberger Vannucchi Arquitetos Associados. Imagem © Pedro Vannucchi

Para além de dar visibilidade ao sistema educacional, a arquitetura também tem papel fundamental no fortalecimento do vínculo do aluno com a instituição, ao fomentar o sentimento de pertencimento, de orgulho da própria escola e, consequentemente, do diploma que portará ao final dos estudos. A arquitetura das unidades do sistema é pensada a partir da escala do aluno - jovens iniciando uma caminhada profissional, no caso do Sistema S - para ser um lugar atrativo, um espaço cativante que estimule o interesse do mesmo por aquela instituição em particular, auxiliando, dessa forma, na retenção do aprendiz, motivando-o à conclusão do ensino. Nesse sentido, a arquitetura se mostra um fator fundamental para o sucesso do projeto nacional de desenvolvimento social e econômico. Nas palavras de Bauer:

"(...)a preocupação de se edificar uma escola - a escola para o aluno - que atendesse a todos os requisitos da pedagogia atual e fosse capaz de colocar o aprendiz num ambiente especialmente preparado para satisfazer os anseios de sua personalidade de menino-homem e despertar nele de modo tão profundo o interesse pelos estudos, que esse mesmo aprendiz sentisse necessidade de fazer qualquer sacrifício para completar o seu curso." (BAUER, 1960, p.30).

Aspectos funcionais das implantações, como o melhor aproveitamento da topografia, da morfologia e localização do terreno, da insolação e ventilação naturais, a flexibilidade dos espaços, a racionalização estrutural e construtiva, a previsão de futuras ampliações, entre outras, são características comuns aos projetos arquitetônicos e que explicam espaços cuja qualidade ultrapassa as questões estéticas e destacam as unidades do Sistema S de outras instituições similares. Na receita de seu sucesso – e do consequente incômodo que causam – devemos somar ao já exposto a permissibilidade de uso de parte das instalações sociais das unidades pela comunidade, uma premissa que além de funcionar como vitrine dos processos de formação, atraindo novos aprendizes, também atende aos já explicitados ensejos políticos do sistema, colaborando, ao oferecer espaços culturais e de lazer de alta qualidade, com a transformação social. Nesse sentido, os edifícios do Sistema S são projetados para um público muito grande em uma frequência muito expressiva, daí as preocupações de escala e durabilidade das instalações.

Não só naquela primeira metade do século XX, mas até hoje, é senso comum que a educação se apresenta como o caminho mais eficiente de transformação política e econômica. E é provável que seja justamente esse seu poder para alterar a estrutura social que tanto incomoda alguns setores da sociedade brasileira, estes mesmos que realizam oposição à instituição de sistemas de ensino mais democráticos e acessíveis, como se vê nas atuais discussões sobre o Sistema S.

SESC Pompéia / Lina Bo Bardi. Imagem © Pedro Kok

As recentes ações do poder público no Brasil no sentido de congelar os investimentos e cessar as estratégias de ampliação ou mesmo de melhoria de um sistema de ensino ainda muito ineficiente, revelam que os esforços continuados de um grupo de profissionais e políticos para implementação e aprimoramento da educação no país nem sempre encontraram ancoragem efetiva na sociedade. O que se pode entrever disso é que a especificidade do liberalismo brasileiro e a estrutura social e econômica calcada na alta concentração de renda, explicam em parte porque o Brasil, ao contrário de muitos países do Ocidente, inclusive na América Latina, não conseguiu erradicar o analfabetismo, nem alcançar a universalização da educação básica.

Um dos maiores educadores da nossa história, Anísio Spínola Teixeira, afirmou:

"Estamos, desde o aparecimento da ciência como é ela concebida hoje, a tentar uma organização social em que todos os homens tenham oportunidades iguais para se desenvolverem segundo as suas aptidões individuais e viverem aqui e agora uma vida decente e de progressivo bem-estar, fundada no trabalho e em uma organização social justa." (TEIXEIRA, 1977, p.31)

Entretanto, isso só é possível, como apontava o próprio Teixeira, através do investimento na formação dos cidadãos por meio da educação e cultura, para o qual foi pensado e ainda colabora de maneira significativa o Sistema S.

Referências bibliográficas

BEM ESTAR. São Paulo, v. 3, nº 5-6, mai-jun, 1960, p.30.
SENAI. De homens e máquinas: Roberto Mange e a formação profissional. São Paulo: SENAI-SP Editora, 2012.
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Um presságio de progresso. In: XAVIER, Alberto (Org). Depoimento de uma geração. Arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, pp.207-209.
______. Educação e o Mundo Moderno. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.

Galeria de Imagens

Ver tudoMostrar menos
Sobre este autor
Cita: Juliane Rolemberg. "Arquitetura, pedagogia e um projeto de país: o Sistema S" 22 Jan 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/909667/arquitetura-pedagogia-e-um-projeto-de-pais-o-sistema-s> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.