Problema de Architectura Civil (1777) / Mathias Ayres Ramos

Ainda duraõ hoje alguns dos amphitheatros, que a soberba Romana edificou para divertir hum povo soberbissimo. Ainda se mostraõ os vestigios das estradas famozas, que sahindo da Cidade capital daquelle Império, hiaõ ter a outras capitaes da sua vasta dominaçaõ. Ainda existem as magestozas piramides do Egypto. A voracidade dos seculos naõ tem podido anihilar tantos illustres monumentos; antes guardaõ nas ruinas hum authentico signal da sua grandeza; como se naquelles tristes restos quizessem competir com o tempo em duraçaõ; ou como se o tempo naõ tivesse força para os destruir, nem actividade para os acabar. Felices edificios, cujos fragmentos destroçados servem para conservar inteira a memória da sua pompa: e assim, que importa que a vicissidaõ das cousas lhes tenha feito perder o esplendor primeiro, se ainda sem uso, e depois de extincto o fim para que foraõ levantados, tem no mesmo abatimento tudo o que basta para infundir respeito; sendo maravilhas raras, ainda no estado inútil em que se achaõ, e sendo admiráveis nesse pouco que agora saõ, independentemente do muito que já foraõ?

Porém porque subsistem hoje aquelles insignes monumentos, que a douta antiguidade nos deixou para modelos? Será, porque foraõ fabricados sem regra, sem proporçaõ, sem arte? Naõ, antes he certissimo o contrario. Entaõ floreceraõ architectos excellentes; e a Architectura naõ consiste só na apparatoza figura do edifício, nem na regularidade visivel de cada huma das suas partes; mas também na justa eleiçaõ dos seus materiaes, e na proporçaõ reciproca que entre elles deve haver. Daqui vem a fortaleza de toda, e qualquer obra, e este he o penhor seguro que certifica a sua duraçaõ.

De que serve a magnificência em hum corpo débil, ou de que val a sumptuozidade em hum edificio infermo? Ninguém fabrica para hum dia, nem para hum anno só; porque naturalmente nos parece que havemos de durar muito. Devemos pois edificar com segurança, ainda quando edificamos só para a nossa vida. Naõ digo que tenhamos no sentido o fim universal, nem que presumamos seriamente que os nossos edificios podem chegar a esse tempo; mas ao menos edifiquemos para aquella posteridade que se ha de seguir logo depois de nós, á maneira de hum contrato feito para subsistir em duas, ou três vidas. Naõ tenhamos inveja aos que haõ de vir; preparemos-lhes a habitação, assim como elles prepararaõ esta em que nós estamos: exercitemos esta especie de liberalidade a respeito dos vindouros, e sejamos desta forte liberaes, já que a esse tempo naõ o havemos poder ser por outro modo. Duremos na duraçaõ da obra, já que em nós mesmos he taõ pouco o que duramos. Façamos de conta que o edifício he huma parte nossa; e que nesta parte exterior, afastada, e insensivel, podemos permanecer sem sustos, sem tribulaçoens, sem dores. Em fim supponhamos que também alli se continua a nossa descendencia, e que esta ainda que seja immobil, e sem acçaõ, com tudo he, e ha de ser sempre innocente, por força da sua mesma inacçaõ, e immobilidade, incapaz de merecimento, e de virtude, mas também incapaz de vicio, e culpa.

Se bem considerarmos, acharemos que os Varoens illustres da sabia Grecia seguiraõ aquelle pensamento, e que ennobrecendo a terra de nobres edificios, perpetuaraõ nelles a gloria dos seus nomes, sem temer que a fama delles caducasse involvida nas revoluçoens do mundo. Olhemos para a nossa Mafra, em cujos obeliscos, pórticos e colunas, ficou comos em hierogliphico o fiel, e immortal retrato do Augusto Rey D. Joaõ, que ainda choramos, quinto no nome, primeiro na grandeza: alli parece que o vemos respirar ainda; e que o seu glorioso espirito recebe o tributo voluntário das nossas lagrimas, o incenso dos nossos votos, e as oblaçoens da nossa saudade: pequeno obsequio para taõ alto objecto. Ditosos bronzes, mármores venturosos, em que as idades mais remotas, sem dependencia de cifras, e caracteres, haõ de ler como em emblema a historia memoravel daquelle Monarcha generoso; cujas acçoens heroicas só foraõ dignas delle para as obrar; e só seriaõ dignas de hum Homero para as escrever. Em outro sagrado, e magnífico lugar descançaõ as suas Reaes cinzas: lá recostada a Lusitania sobre a veneravel urna abraça religiosamente aquellas mesmas cinzas para as animar com o seu pranto; invoca como Nume tutelar o seu esclarecido nome; e segura na fé do amor, está vendo em vaticinio que do tumulo fecundo haõ de renascer os verdes louros para coroar tropheos, felicidades, e triumphos.

He preciso pois huma certa proporçaõ entre cada hum dos materiaes de que os muros se compõem. O architecto experiente nunca ignora aquella regra, antes nella põem o seu primeiro, e principal cuidado. Fortificando principia, e ornando acaba. O ornato póde vir em qualquer tempo, a fortificaçaõ ha de ser logo; porque aquelle faz-se para o agrado da vista, e esta para subsistencia da cousa. O edifício póde subsistir sem ornato algum, mas naõ sem toda a fortificaçaõ; póde ser tosco na apparencia superficial, mas naõ na sua substancia interior.

Aquella porçaõ porém (como já dissemos) naõ admitte regra invariável, nem póde regular-se de huma só maneira; porque huma cal necessita mais arêa do que outra; e da mesma sorte huma arêa requer mais, ou menos cal. Com tudo algum meio deve haver para fazer-se aquella distinçaõ, e para explorar-se exactamente quaes devaõ ser as verdadeiras proporçoens; porque, de outra sorte, edificariamos cegamente, e sem mais certeza que a de hum arbitrio incerto, e vago. Aquelle meio, ou aquelle conhecimento basta que se tire, e saiba à posteriori, como os Philosophos se explicaõ; e que provenha de experiencia certa, como logo havemos de mostrar em beneficio dos que querem fabricar com arte, e que desejaõ a duraçaõ da obra.

He muito de reparar, que sendo a fortaleza do edifício o primeiro objecto a que devemos attender, raras vezes nos occupamos em ordenar as porçoens justas de que ha de compôr-se a massa que serve de ligar as pedras humas com a outras. No que consideramos mais, he, que a obra esteja bem delineada no papel, e que neste esteja bem disposta a ordem da prospectiva, a correspondencia das entradas, a distribuiçaõ das serventias, a divisaõ das suas partes, a introducçaõ da luz em cada huma dellas, e finalmente a symmetria em todo o corpo do edifício. A segurança das paredes entra como cousa menos importante. A qualidade dos materiaes, e as proporçoens, em que devem concorrer, também he como matéria supposta, para que se olha pouco; e como tal, commumente se entrega aos primeiros serventes que a noticia da obra convocou. Naõ se inquire quaes saõ os materiaes melhores, e mais próprios, mas sim quaes saõ os que estaõ mais perto, e donde se haõ de haver com menos despeza. Nesta economia consiste o maior desvelo de quem dirige a obra. Naõ se examina como foi feita, e desfeita a cal; e da mesma sorte naõ se experimenta a arêa, para se saber se contém barro, ou terra ; se he salgada, ou sem sabor; se he grossa, ou fina.

Assim vai logo crescendo a obra mas imperfeita, e defeituosa desde o seu principio. Naõ se passaõ muitos dias que se naõ veja hir cahindo a cal juntamente com a arêa, desamparando as partes superficiaes, e Iateraes do muro. Os artifices que o vem, nunca lhes importa o indagarem a razaõ porque assim succede; e se forem perguntados, raramente acertaráõ com a causa de que procede; buscando fundamentos menos verdadeiros, a que erradamente attribuaõ aquelle facto. Os que edificaõ por aquelle modo, talvez entenderáõ que o mundo tem já pouco que durar; e que por pouco que a obra dure, sempre chegará até o tempo, em que haõ de acabar todas as cousas. Hum Philosopho assim o entendeo também, quando disse, fallando do mundo: Jam jam sepulcrum premit. Porém esta portentosa machina, parece que naõ foi feita só para seis mil annos. Alguns dos que quizeraõ computar as semanas de Daniel, fizeraõ cálculos menos acertados; porque se fossem certos, já teria acabado o mundo. O Divino Architecto do Universo, reservou só para si o tempo em que a sua obra ha de ter fim: só elle podia dizer Fiat, e só elle sabe quando ha de dizer Intereat.

Para conhecer-se pois quaes saõ as proporçoens, em que devem concorrer aquelles dous materiaes, he necessario, antes que a obra principie, fazer alguns experimentos em porçoens pequenas: em humas v. g. em que se juntem iguaes partes, isto he, tanto de cal, como de arêa: em outra em que se junte parte e meia de arêa contra huma de cal: em outra em que se juntem duas partes de arêa contra huma de cal: em outra em que se juntem duas partes e meia de arêa contra huma de cal; e em outra em que se juntem três partes de arêa contra huma de cal.

Feitas estas misturas separadamente, e postas ao ar cada huma de per si, (depois de amassadas bem com a agoa necessaria, e da mesma com que se ha de fabricar a obra) entaõ se verá como fica cada huma daquellas composiçoens: a que seccar com effeito em menos tempo, e que endurecendo mais de pressa, sustentar a agoa que por sima se deitar, sem a extravazar, nem amollecer a sua substancia, he a melhor, e em que as proporçoens dos materiaes foraõ acertadas. Entaõ se fará o amassadouro em grande; observando as mesmas proporçoens sabidas pela experiência antecedente.

O que fica dito, he suppondo sempre serem bons os materiaes que serviraõ para a experiencia; porque se a arêa tinha terra, ou barro; se era grossa damaziadamente; se continha sal de qualquer genero que fosse: e da mesma sorte, se a cal foi feita com pedra branda; se foi desfeita ao ar, ou com agoa salgada, e ainda salobra; de semelhantes materiaes, nunca podemos esperar que resulte hum corpo solido; tanto em grande, como em pequeno; e por mais bem ordenadas que as proporçoens se encontrem entre a arêa, e a cal.

Talvez que aquelle fosse o simplicissimo, e facilissimo segredo de que usavaõ os antigos, quando edificavaõ, segurando-se por aquelle modo das justas proporçoens que deviaõ praticar; e por cujo meio conseguiaõ o fazer taõ fortes as paredes, que quando queriaõ demolir-se para alguma nova obra, era menos custoso quebrar as pedras pelo meio dellas, do que dividillas pelas suas juntas; como vemos ainda hoje em todas as paredes de edifícios antigos. Sendo também para notar, que aquelles edificios tinhaõ as paredes comumente menos grossas; e ainda assim sustentavaõ pezos exorbitantes, sem ceder a elles; e assim mesmo duravaõ muitos seculos sem o menor defeito; em lugar, que as grossuras das paredes nos edifícios modernos sendo muitas vezes excessivas, nem por isso saõ mais fortes, nem promettem duraçaõ maior: de forte que nos primeiros a arte, com que os muros se formavaõ, e a bondade, e justas proporçoens nos seus materiaes, suppria a falta das grossuras; e nos segundos as grossuras excessivas naõ podem supprir a irregularidade de cada hum dos materiaes, e suas devidas proporçoens.

Referência:
Mathias Ayres Ramos, Problema de Architectura Civil. Parte II, Lisboa, 1777, capítulos XV e XVI, pp. 224-240, disponível online na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

© Transcrição e Revisão: Igor Fracalossi

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Problema de Architectura Civil (1777) / Mathias Ayres Ramos" 30 Abr 2015. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/766200/problema-de-architectura-civil-1777-mathias-ayres-ramos> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.