(Re)Feito na China: projetos soviéticos que estão moldando as cidades chinesas

O artigo a seguir, escrito por Jacob Dreyer e publicado originalmente no The Calvert Journal como "Maximum city: the vast urban planning projects of Soviet-era Russia are being reborn in modern China", analisa um fascinante fenômeno: a importação do urbanismo Soviético - ou urbanismo stalinista - que vem moldando as cidades chinesas de hoje.

Como pedalei para trabalhar do dia 20 de maio desse ano, a Via Expressa Yan'an, que atravessa toda a cidade de Xangai, estava estranhamente silenciosa, isolada por conta de uma visita do presidente Vladimir Putin. Descobrimos no dia seguinte que o resultado da sua visita foi a assinatura de um contrato de 400 bilhões de dólares com a China para a exportação de gás e petróleo. Como o presidente Barack Obama havia previsto, Putin se aproximou da Ásia, embora de uma maneira um pouco diferente. Em Xangai, os termos do acordo - que foi imensamente vantajoso para a China - fizeram parecer que a Rússia se tornara voluntariamente um estado-vassalo da República Popular, tornando realidade as previsões do romance distópico de Vladimir Sorokin, Day of the Oprichnik and of Russian, sobre assustadoras histórias de imigrantes chineses ocupando a Sibéria.

A ironia é que os modelos de sociedade importados da Rússia durante o período soviético - aparatos legais inclusive em relação à arquitetura e ao urbanismo - são mais influentes que nunca na China. Se, como o filósofo chinês Wang Hui observou em seu livro O Fim da Revolução, o socialismo foi a porta pela qual a China entrou na modernidade, então, nesse caso foi a Rússia que abriu esta porta, exportando modelos e conhecimentos que lançaram as bases para muito do que constitui a China moderna.

Talvez o mais tangível desses legados é a aparência da cidade chinesa contemporânea; e desde que a China se tornou uma economia centralmente planificada, essa aparência e atmosfera é se apresenta por toda a parte. O fator principal para a formação da cidade chinesa moderna era o urbanismo soviético - ou, mais precisamente, o urbanismo stalinista. Em 1949, quando os comunistas chegaram ao poder, Pequim era uma cidade de meio milhão de habitantes, 95% ou mais de toda a população e estruturas construídas na atual aglomeração de 20 milhões de pessoas emergiu a partir da revolução, e com a assessoria soviética com a qual o novo governo contou. Em seu brilhante livro Beijing Record, Wang Jun deixa clara a escala dessa influência: "Em 16 de setembro [de 1949], um grupo de soviéticos, especialistas em administração municipal, chegou a Pequim. Eles deveriam ajudar o novo governo a planejar o desenvolvimento da cidade. Na realidade, porém, eles tinham a palavra final em tudo."

Estes urbanistas e arquitetos soviéticos, liderados pela MG Barannikov, entregaram um relatório, Propostas para o Aperfeiçoamento da Administração Municipal de Pequim, que definiu, em grande parte, o modo como a cidade futuramente se estruturou. Eles haviam vindo para a China não apenas por razões geopolíticas, mas - como os teóricos urbanistas japoneses que vieram na década de 1920 e 1930,ou os arquitetos-estrelas ocidentais que vêm hoje - por causa da capacidade da China de realizar grandes projetos rapidamente. A cidade modelo soviética poderia se tornar realidade em solo chinês, já que não poderia na Rússia devido a alguns impedimentos; Mao estava disposto a derrubar todos os edifícios antigos, tornando a cidade chinesa uma tábula rasa. Além disso, Mao combinava em uma só pessoa os desejos revolucionários radicais de Lenin com o poder totalitário de Stalin; ele desejava e era capaz de fazer e refazer completamente a sociedade urbana. Uma versão "mais verdadeira e mais pura" da ideologia urbana Soviética poderia ser materializada no deserto urbano chinês - campos literalmente vazios e camponeses analfabetos que estavam sendo "modernizados".

Como o modelo de Pequim foi reproduzido por todo o país, em áreas rurais e agrícolas que nunca haviam conhecido grandes cidades, essa visão tornou-se onipresente: tipologias arquitetônicas soviéticas e os modelos de urbanistas russos constituíram a primeira ideia de cidade vista por camponeses chineses em uma sociedade em rápida modernização. De fato, até hoje, os trabalhadores da zona rural são empurrados para grandes torres suburbanas que dominam os limites das cidades russas. Os anéis viários, as torres, os táxis pretos, os restaurantes sujos, as calçadas cheias de garrafas de bebida vazias: os modelos urbanos da China contemporânea são idênticos aos da União Soviética, apenas multiplicados. As semelhanças não acabam por aí: alguém que viaje frequentemente de Blagoveshchensk para Heihe, ou mesmo, de Pequim para Moscou, não deixará de notar os dentes estragados e os cortes de cabelo assimétricos dos bilionários, as repetições suburbanas vulgares de Versailles, o zumbido interminável no centro da cidade.

Shenzen, China (2004). Imagem © Neville Mars sob a licença de CC

Muitos pesquisadores ocidentais, com uma miopia tipicamente condescendente, trataram o modelo soviético de cidade como irrelevante. Na verdade, esse modelo de urbanismo está prosperando. A indicação mais clara de sua sobrevivência na China atual é o conceito de níveis de cidade, com Xangai e Pequim no "primeiro nível", Hangzhou, Chengdu ou Tianjin no "segundo nível" e assim por diante. Esse é um longo caminho a partir do que o arquiteto e teórico holandês Rem Koolhaas chamou de "urbanismo delirante": a cidade chinesa é meticulosamente planejada como parte de uma estrutura nacional holística composta pelas redes de transporte, de comunicação e de distribuição de mercadorias - em que a grande maioria delas é propriedade estatal ou está sob controle do estado.

A tendência ocidental de ver esse controle estatal como evidência de corrupção ou incoerência é estranha, considerando o temor generalizado pelo desenvolvimento da economia chinesa e, em particular, a rápida emergência de algumas das cidades que mais crescem no mundo, como   Zhengzhou, Hefei, Shijiazhuang e Changsha. Não devemos esquecer que, de alguma forma, todas essas cidades são frutos mutantes da Belle Époque stalinista. O objetivo final do stalinismo - expandir rapidamente a economia para destruir a hegemonia ocidental - está se tornando realidade neste exato momento, através de pessoas que foram membros do Partido Comunista por toda suas vidas. Os pesquisadores ocidentais podem até pensar que não são comunistas "reais", visto que eles bebem bons vinhos, contratam prostitutas e têm motoristas particulares: esses pesquisadores não estão, evidentemente, familiarizados com a natureza da sociedade chinesa no auge do radicalismo maoísta, em que todos essas coisas ocorriam em abundância.

Shenzen, China (2004). Imagem © Neville Mars sob a licença de CC

Além disso, a prevalência do modelo soviético de planejamento urbano centralizado não é apenas indiscutível, ela é bem vinda. Embora exija a superação de grande parte do cinismo criado por ideologias que procuram convencer-nos de que nosso modo de vida ocidental é o melhor e o único, o futuro do povo - das massas anônimas globais de trabalhadores, cujas vidas se desenvolvem longe da metrópole - encontra-se no modelo de desenvolvimento soviético-chinês. Esse modelo é repugnante por seu materialismo implacável - tanto para suas elites quanto para os seus cidadãos mais pobres - mas é eminentemente prático pela mesma razão.

A criação de tipologias arquitetônicas genéricas que podem ser multiplicadas infinitamente, o modelo de um sistema econômico que coloca tudo e todos em uma aspiração coletiva para o aumento da produção - este modelo "chinês" de urbanismo, que tem raízes profundas na obra dos teóricos soviéticos, está hoje cada vez mais presente em todos os lugares onde as empresas estatais chinesas operam (e muitas vezes na própria ex-União Soviética). O modelo stalinista-maoísta, que instrumentaliza a relação entre as pessoas e seu ambiente a fim de gerar riqueza industrial, mesmo que a um grande custo para as pessoas e ambientes, está vivo e em rápida expansão. A cidade soviética está morta - vida longa a Pequim.

Jacob Dreyer é um escritor e teórico de arquitetura que trabalha em Pequim. Ele é editor sênior da Lifestyle 品味生活 Magazine e seu trabalho tem sido publicado em diversas revistas nos EUA, Reino Unido e China. Seu livro "The Nocturnal Wanderer" será, em breve, publicado pela Imprensa Eros e seus escritos podem ser lidos aqui.

Sobre este autor
Cita: Dreyer, Jacob . "(Re)Feito na China: projetos soviéticos que estão moldando as cidades chinesas" [(Re)Made in China: The Soviet-Era Planning Projects Shaping China's Cities] 09 Ago 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/625292/re-feito-na-china-projetos-sovieticos-que-estao-moldando-as-cidades-chinesas> ISSN 0719-8906

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