Projetando a Economia do Reuso: Como arquitetos podem construir cadeias de suprimentos, e não apenas edifícios

Ao redor da Europa — e além dela — arquitetos enfrentam um ponto de inflexão. À medida que metas de redução de emissões colidem com a escassez de materiais e com a urgência crescente dos compromissos climáticos, o ambiente construído é forçado a encarar, de forma mais profunda, como consome, circula e descarta recursos. O que antes era tratado como resíduo revela-se agora como um arquivo arquitetônico adormecido, um ecossistema urbano de materiais à espera de serem recuperados, revalorizados ou reimaginados. Nesse movimento, os arquitetos começam a assumir um papel radicalmente diferente — não apenas como autores de edifícios, mas como orquestradores dos fluxos que os sustentam.

Essa mentalidade emergente está remodelando as bases da prática. Em vez de depender de longas e extrativas cadeias de suprimento, designers começam a construir redes de ciclo fechado, criando bancos de materiais, negociando protocolos de desconstrução e participando de novas formas de mineração urbana.

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O objetivo não é apenas reduzir resíduos, mas cultivar economias de continuidade, onde componentes fluem de uma vida para a outra. É uma mudança silenciosa, porém profunda, que aponta para um futuro em que a arquitetura será medida não pelo que consome, mas pelo que consegue manter em circulação.

Um Acerto de Contas Climático

O impacto climático da construção tornou-se impossível de ignorar. Quase 40% das emissões globais de carbono vêm dos edifícios, com uma parcela crescente ligada ao carbono incorporado — as emissões embutidas no concreto, no aço, nos isolamentos e no vidro antes mesmo de uma edificação ser ocupada. O ciclo tradicional de demolição, que descarta esses materiais após poucas décadas de uso, mina os avanços obtidos na eficiência operacional. Cidades começam a perceber os limites de um sistema linear, à medida que aterros se esgotam e a extração de recursos se torna mais cara e imprevisível.

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Material de construção reciclado. Foto de https://pxhere.com/en/photo/1087307. Licença Creative Commons Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional.

Nesse cenário, a economia da reutilização está mudando. Materiais recuperados, antes vistos com desconfiança, passam a ganhar legitimidade como alternativas viáveis, verificáveis e, muitas vezes, superiores ao novo. O que antes era enquadrado como gesto ambiental torna-se cada vez mais reconhecido como estratégia diante da incerteza climática. A crise não é apenas ecológica; ela é logística.

Precedentes que Reescrevem as Regras

Alguns dos exemplos mais contundentes dessa transição vêm de profissionais que reconfiguram as bases do setor. Na Bélgica, o Rotor Deconstruction inaugurou um modelo que demonstra como a recuperação de materiais pode ser estruturada e escalável — e não um improviso tardio. Por meio da extração cuidadosa, catalogação e revenda de componentes — de escadarias de pedra a sistemas de iluminação —, a organização desfaz a fronteira entre escritório de arquitetura e curadoria de recursos. Seu método prova que a reutilização não só é possível, como é compatível com qualidade, artesania e estética contemporânea.

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Entulho de concreto em frente a um canteiro de obras em reconstrução, Amsterdã. Imagem via Shutterstock.

Movidos por ethos semelhante, os Superuse Studios, nos Países Baixos, fazem do mapeamento de fluxos de resíduos o ponto de partida do projeto. Seus trabalhos não começam com formas esquemáticas, mas com inventários do que já existe: pás de turbinas eólicas, sucatas de aço, subprodutos industriais, estoques esquecidos de madeira. Em suas mãos, arquitetura é o ato de revelar o potencial oculto nos fluxos materiais de uma região.

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Foto de Frederic Köberl no Unsplash

O Madaster, também holandês, amplia essa filosofia para o domínio digital. Criando “passaportes de materiais” para edifícios, registra a origem, toxicidade, reciclabilidade e potencial futuro de cada componente. A plataforma transforma construções em repositórios de recursos, ativos que podem ser minerados, redirecionados e reutilizados — e não abandonados. Assim, redefine o edifício como uma configuração temporária dentro de um ciclo contínuo de materiais.

Juntos, esses precedentes revelam uma mudança cultural: da busca pelo novo para a gestão do valor existente.

Repensando o Papel do Arquiteto

À medida que a circularidade se torna central para a economia da construção, o papel do arquiteto se expande. Não mais restritos a questões estéticas ou espaciais, arquitetos são convocados a lidar com logística de materiais, planejamento de ciclos de vida e com os sistemas sociais e econômicos que moldam a construção. A profissão avança para um modelo em que coordenação, negociação e orquestração têm peso equivalente ao desenho.

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Photo by Brett Jordan on Unsplash

Isso envolve novas responsabilidades: identificar componentes reutilizáveis já nas fases iniciais; colaborar com empreiteiras e governos para criar protocolos de desconstrução; integrar elementos recuperados às especificações; e projetar edifícios que possam ser desmontados com a mesma precisão com que foram montados. Trata-se de uma transição do projeto para a permanência ao projeto para a impermanência inteligente, reconhecendo que edifícios não são objetos estáticos, mas nós temporários nos ciclos de recursos.

Cidades como Reservatórios de Materiais

Centros urbanos se tornam campos de teste para sistemas circulares. Cidades como Copenhague, Paris e Zurique realizam auditorias de material dos estoques existentes, identificando componentes recuperáveis antes da demolição e integrando cotas obrigatórias de reutilização aos marcos regulatórios. Essas políticas transformam cidades em vastos reservatórios de materiais, arquivos vivos cujos componentes podem ser redirecionados para novas obras.

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Instalação de Recuperação de Materiais. Foto de Michael Barera. Licença Creative Commons Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional.

A mineração urbana desafia concepções tradicionais de demolição, reformulando esse processo não como limpeza para a renovação, mas como o primeiro ato do projeto. Em Londres, depósitos de tijolos reutilizados suprem milhares de unidades por ano; em Paris, hubs de desconstrução coordenam esforços de recuperação entre diversos arrondissements. Iniciativas como essas revelam uma nova lógica urbana: os materiais necessários aos edifícios futuros já existem, incrustados na cidade que habitamos.

Infraestruturas Digitais e Sociais

A infraestrutura necessária para a circularidade não é apenas física — é também digital e social. Plataformas como o Madaster introduzem rastreabilidade no mercado de materiais, dando estabilidade ao setor de componentes recuperados ao fornecer transparência e responsabilização. Ao mesmo tempo, iniciativas comunitárias — bibliotecas de ferramentas, oficinas de reaproveitamento, redes de vizinhança — fortalecem culturas locais de reutilização, permitindo que cidadãos participem diretamente dos fluxos de recursos.

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Materiais reutilizados. Foto © Paula Mussi

Esses sistemas se reforçam mutuamente: a tecnologia acelera, as redes sociais sustentam, as políticas públicas consolidam. Juntos, eles permitem que a circularidade deixe de ser exceção e se torne padrão.

Reuso como Prática Cultural no Sul Global

Embora grande parte do debate sobre construção circular tenha sido moldado na Europa, a Arquivo, de Salvador, demonstra como esses princípios podem ser reinterpretados em contextos sociais, econômicos e materiais radicalmente distintos. Fundado por Fernanda Veiga, Pedro Alban e Natalia Lessa, o coletivo construiu uma prática influenciada pelo ethos do Rotor, mas enraizada nas dinâmicas do Sul Global — onde informalidade, escassez e tradições artesanais moldam os fluxos de materiais.

O trabalho da Arquivo já desviou mais de 300 toneladas de componentes da rota dos aterros, tratando cada peça recuperada não apenas como recurso, mas como fragmento de memória local. A renovação do Casarão 28, uma ruína do século XVIII reconstruída com mais de cem elementos recuperados de dezenas de demolições, revela como o reuso pode funcionar simultaneamente como ação ambiental e preservação cultural.

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Painéis compostos de alumínio para reparar e restaurar a fachada do edifício. Foto de Andrew Dunn. Licença Creative Commons Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional.

Do mesmo modo, na Casa Carcará, quarenta e três janelas recuperadas são transformadas em linguagem arquitetônica por meio de uma colaboração entre jovens designers e o mestre carpinteiro Seu Antônio — um gesto que converte o reuso em artesania intergeracional. A premiação do coletivo no ArchDaily Next Practices Awards de setembro de 2025 sublinha como, quando enraizado em saberes locais e redes sociais, o design circular se torna não apenas estratégia de descarbonização, mas catalisador de desenvolvimento comunitário e equitativo.

Uma Nova Ética Arquitetônica

A virada em direção ao reuso não é técnica: é ética. Exige redefinir a autoria arquitetônica de modo a privilegiar continuidade sobre consumo e a estender a responsabilidade para além da conclusão da obra. Nesse quadro, arquitetos tornam-se zeladores de futuros materiais, garantindo que as decisões de hoje ampliem — e não reduzam — as possibilidades de amanhã.

Essa ética emergente não limita a criatividade; ela a amplia. Convida novas formas de beleza, derivadas não do brilho do novo, mas das histórias estratificadas de materiais que carregam vidas anteriores. Propõe cidades não como ciclos lineares de construção e destruição, mas como ecologias circulares capazes de regenerar seus próprios recursos.

À medida que as pressões globais se intensificam, o caminho se torna claro. O futuro da arquitetura não será definido pelo quanto pode construir, mas pelo quanto pode colocar em circulação com sabedoria. Projetar a economia do reuso não é apenas resposta a uma crise: é um esboço de um ambiente construído mais resiliente, engenhoso e imaginativo — um que entende edifícios não como pontos finais, mas como participantes de uma história material contínua e em constante transformação.

Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Construir menos: repensar, reutilizar, renovar, reapropriar.

Repurposing sits at the nexus of sustainability and innovation — two values central to the Schindler Group. By championing this topic, we aim to encourage dialogue around the benefits of reusing the existing. We believe that preserving existing structures is one of the many ingredients to a more sustainable city. This commitment aligns with our net zero by 2040 ambitions and our corporate purpose of enhancing quality of life in urban environments.

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Sobre este autor
Cita: Nayak, Ananya. "Projetando a Economia do Reuso: Como arquitetos podem construir cadeias de suprimentos, e não apenas edifícios" [Designing the Reuse Economy: How Architects Can Build Supply Chains, Not Just Buildings] 08 Dez 2025. ArchDaily Brasil. (Trad. Simões, Diogo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1036292/projetando-a-economia-do-reuso-como-arquitetos-podem-construir-cadeias-de-suprimentos-e-nao-apenas-edificios> ISSN 0719-8906

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