Educação espacial e o futuro das cidades africanas: uma entrevista com Matri-Archi

Liderado por Khensani de Klerk e Solange Mbanefo, Matri-Archi é um coletivo com sede na Suíça e África do Sul que visa aproximar e empoderar mulheres para a educação espacial e o desenvolvimento das cidades africanas. Por meio da prática projetual, textos, podcasts e outras iniciativas, Matri-Archi — eleito um dos melhores novos escritórios de 2021 pelo ArchDaily — se dedica ao reconhecimento e à capacitação das mulheres no campo espacial e na indústria da arquitetura.

O ArchDaily teve a oportunidade de conversar com as codiretoras do coletivo sobre temas como espaço hegemônico, arquitetura informal, tecnologia, idiossincrasias locais e o futuro das cidades africanas e globais. Acompanhe a entrevista a seguir.

ArchDaily: Vocês frequentemente falam sobre um Espaço Interseccional e a necessidade dele para alcançar um desenvolvimento progressivo na África. Poderiam falar sobre este espaço interseccional? Como podemos catalisá-lo?

Matri-Archi: Para começar, precisamos reconhecer a raiz histórica da interseccionalidade, originalmente citada em 1989 pelo advogado afro-americano e teórico racial Kimberlé W. Crenshaw, como um termo que descreve as dinâmicas e traços de colisão esquecidos dentro de grupos de identidade discriminados, cuja desvantagem é afirmada por meio de múltiplas fontes de opressão, incluindo raça, classe, gênero, religião e outras características identitárias. Além disso, as estruturas institucionais desempenham um papel importante como veículos que infligem vulnerabilidade e discriminação por meio da retenção do poder e da exclusão de membros não dominantes da sociedade. 

Você poderia citar dez exemplos mundialmente conhecidos de arquitetas negras africanas?

Apresentamos esta questão retórica como uma introdução para contextualizar a urgência da condição contemporânea de reconhecer a crise em curso palpável por meio de falhas intersetoriais em construções sociais geopolíticas, particularmente no domínio arquitetônico. Nesse sentido, vemos o espaço interseccional como uma resposta, reagindo à mudança de paradigma de transformação em direção a futuros social e ecologicamente sustentáveis ​​no ambiente construído.

Para a Matri-Archi, o Espaço Interseccional é parte do contexto e da ação. O onipresente contexto globalizante em que vivemos está inegavelmente crescendo em diversidade com a sobreposição de culturas e camadas sociopolíticas abrigadas no ambiente construído. Nesse sentido, o espaço a que nos referimos é uma sobreposição resultante de meios discursivos, digitais e físicos; afetados e frequentemente informados pelo design.

Matri-Archi abraça um impulso coletivo para desmontar, reparar e avaliar as falhas que estão bloqueando o potencial de nossa profissão de celebrar e desenvolver a diversidade dentro da prática e da educação espacial. Ao ocupar e criar um espaço interseccional, o design pode promover relações simbióticas com interações humanas refletindo uma paisagem heterogênea policêntrica em que ideias idiossincráticas catalisam continuamente futuros compartilhados não-discriminatórios.

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Casa; Ilustração de Matri-Archi(tetura). Design gráfico: Kizzy Memani, Phathu Nembilwi

AD: Seu trabalho na Matri-Archi explora o universo da educação espacial. O que vocês querem dizer com educação espacial e por que ela é tão importante para o desenvolvimento das cidades na África?

MA: A nosso ver, a educação espacial é a base para explorar, apreciar e moldar o ambiente construído. A academia se tornou um mercado na condição capitalista contemporânea, nascida de injustiças históricas coloniais. É, portanto, uma consequência inevitável que as ferramentas e teorias de design, conteúdo histórico, métodos de construção e outros meios correntes de aquisição de conhecimento, assimilação e reprodução do ambiente construído não favoreçam o desenvolvimento do futuro urbano africano.

Este problema chega ao extremo de termos uma completa ausência institucional no desenvolvimento formal da arquitetura, planejamento, educação e construção. Por outro lado, a qualidade espacial é determinada por seus usuários – como eles ocupam, como usam e como tratam os espaços. Qualquer pessoa que interage com o ambiente construído é um usuário e contribui para a qualidade desse espaço.

Isso traz à tona a dura realidade de que a maioria dos usuários urbanos vive abaixo da linha de pobreza, em condições climáticas e culturais excluídas do discurso dominante. Como membros da Matri-Archi que trabalham em várias geografias, tomamos partido de nossa posição singular de margem e centro em instituições educacionais do norte e sul globais com intenções de expandir o espaço interseccional. Como? Utilizamos recursos existentes em espaços restritos como meio de aumentar o reconhecimento da diversidade na práxis arquitetônica e, ao fazê-lo, tentamos refletir o mundo diverso em que vivemos, ampliando e explodindo esse binário (norte-sul) que é, em si mesmo, um problema.

Nesse sentido, vemos a educação espacial como uma ferramenta para potencializar intervenções qualitativas no desenvolvimento das futuras comunidades urbanas africanas.

AD: Vocês acham que os rótulos que configuram o formal como efetivo e o informal como ineficaz surgem em consonância com o fato de que a maioria dos projetos de arquitetura tem o propósito de estabelecer uma suposta “ordem” que não se encontra na informalidade? Em outras palavras, é preciso caluniar o informal para que seja possível manter o controle sobre os corpos?

MA: Para nós, essa questão é retórica e, muitas vezes, exaustiva. Todavia, de fato, a falta de qualquer percepção alternativa da informalidade cria uma espécie de necessidade contínua de mapear fenômenos intangíveis que impulsionam os mercados informais e as vidas informais – situação em que vive a maioria da população mundial. Mais ainda, esta deve ser uma responsabilidade daqueles que vivem em condições e instituições formais mantidos pelos recursos humanos e ambientais do mundo informal. Sem a exploração das comunidades pobres, o desenvolvimento histórico do norte global não existiria e, com ele, também a desigualdade contemporânea. Tentar remediar a desigualdade e a injustiça histórica é afastar-se da compreensão espacial da informalidade. 

A arquitetura como profissão projetiva e de prestação de serviços acabará por precisar responder às crescentes pressões e necessidades do suposto mundo informal, que constituirá a maioria da população urbana em 2050.

De nossas investigações de padrões nômades urbanos em Joanesburgo, com foco particular nas necessidades de infraestrutura para as mulheres que comercializam bens em pontos de convergência do transporte informal, vemos os mercados informais como sistemas extremamente criativos na canalização e mobilização de pessoas, bens e serviços – formas completamente alternativas e muitas vezes inéditas. A mera existência de tais sistemas destaca uma das muitas brechas em nossa crença de que a formalidade é normativa.

Com o tempo, esses sistemas se cruzarão cada vez mais a um ponto incontrolável, definindo o papel dos praticantes e pesquisadores espaciais como socialmente competentes e pluridisciplinares – algo que consideramos empolgante. Nossas tentativas persistentes de desafiar esses binários sistêmicos buscam encorajar uma mudança do design que foge da complexidade da informalidade para um design que seja proativo na otimização dos aspectos da informalidade que podem resultar na promoção ativa da dignidade espacial, algo que acabará se tornando um incentivo se as previsões de crescimento populacional se confirmarem. 

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Explorando nosso(s) conhecimento(s); ilustração de Matri-Archi(tetura). Design gráfico: Kizzy Memani, Phathu Nembilwi

AD: A arquitetura informal apresenta maior liberdade de mudanças no objeto construído, algo que, de alguma forma, lhe confere maior adaptabilidade. O que os arquitetos podem aprender com a arquitetura informal e como podem intervir nela – se é que isso é necessário – sem desfigurar suas principais características?

MA: Citando a obra Arquitetura sem arquitetos, de Bernard Rudofsky, “a arquitetura vernacular não passa por ciclos de tendências. É quase imutável, na verdade; inevitável, uma vez que serve a seu propósito com perfeição.”

Concordamos que as formas arquitetônicas derivam de uma improvisação informal de uso e interação com o ambiente. Em antropologia, o termo “padrões de cultura” elabora como a repetição natural de um ato o transforma em hábito. Se comprovado como mais eficaz e / ou superior a outras tendências, torna-se uma prática socialmente encorajada, uma cultura, uma norma e, eventualmente, uma metodologia que é ensinada a partir de então às gerações subsequentes. A arte, o ofício ou a ciência do ensino partiu de testes informais antes de entrarem para o estático dogma da história. Em outras palavras, uma característica comum do informal é o constante fluxo. Os padrões que poderiam definir um objeto específico construído ainda estão se transformando, e abrem espaço para que nós aceitemos o desafio da liberdade criativa.

As necessidades das pessoas e das comunidades são um dos melhores indicadores que determinam os parâmetros do projeto, especialmente olhando para o potencial de respostas qualificadas e o impacto da prática espacial. As análises de mercado frequentemente auxiliam no sucesso dos desenvolvimentos por meio de projeções, nas quais vemos arquitetos usando suas habilidades para atenderem às populações como clientes por meio de trabalho participativo. Nesse sentido, a forma como percebemos o design passa a ter mais consideração pelas vidas que as intervenções implicam. Para nós, tais processos exigem comunicação contínua e não extrativa com usuários que não apenas usam infraestruturas informais, mas criam e mantêm sua eficácia. Como jovens arquitetos na profissão, continuamos apaixonados em experimentar muitas versões da mesma solução (informal), mantendo um dinamismo em nossos processos e resultados. Acreditamos que nossas habilidades de tradução criativa e competências profissionais de projeto podem transformar e ampliar a energia já funcional dos sistemas informais em sistemas ecologicamente sustentáveis ​​e socialmente responsáveis.

A formalização de sistemas informais não é de forma alguma nosso objetivo, já que muitos sistemas formais estão baseados em práticas ecologicamente insustentáveis e socialmente abusivas. 

Esperamos simplesmente lembrar a outros praticantes do espaço que há alegria na arquitetura enquanto profissão social e que cada linha e palavra que legitimamos por meio de nosso trabalho têm implicações na sociedade. A informalidade dos nossos estudos de caso atuais é um convite a refletir sobre novos estilos de vida e hábitos que ainda não foram abordados na esfera arquitetônica. Ao vermos os praticantes do espaço assumirem o desafio criativo de trabalhar em geografias informais, temos esperança de que a arquitetura como profissão possa finalmente evoluir para o estabelecimento de padrões multi-qualitativos que atendam ao momento de complexidade. Clientes, comissários e mercados formais devem aderir a essa realidade.

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Desnudando o patriarcado; ilustração de Matri-Archi(tetura). Design gráfico: Kizzy Memani, Phathu Nembilwi

AD: A relação entre tecnologia e idiossincrasias locais é explorada a fundo em um artigo que vocês publicaram no site Matri-Archi e também no ArchDaily. Na ocasião, vocês analisam o papel das novas tecnologias digitais, como o BIM, e a necessidade de um pensamento crítico e positivo sobre os aspectos culturais locais.

Vocês acreditam que uma possível alternativa para o desenvolvimento das cidades africanas pode ser encontrada neste cruzamento? Como?

MA: A primeira coisa a se considerar antes de responder a essa pergunta completamente é por que se deve colocar o caso das cidades africanas em um compartimento especial em relação ao futuro do ambiente construído a partir de tecnologias orientadas por idiossincrasias locais. 

Uma vez que rompemos o complexo de superioridade do ponto de vista eurocêntrico e começamos a reconhecer todas as formas de existência humana, histórias, avanços tecnológicos e educação em um nível de igual impacto para nossa economia global, a questão começa a desdobrar uma nova mentalidade para examinar os problemas.

A tecnologia deriva do termo grego do início do século XVII para tratamento sistemático: tekhnologia. Onde Tekhne se refere à arte ou artesanato. Quando a tecnologia é usada como uma ferramenta para melhorar sistematicamente a eficiência geral e a qualidade de vida, as coisas tendem a ir mais rápido, ficar menores, ficar mais leves, durar mais etc. O uso de recursos deu um salto nesta terceira revolução industrial, onde vivemos em uma economia inflacionada, impulsionada pelo valor emocional que atribuímos às coisas. Ou seja, o preço real da matéria-prima ou recursos usados para fabricar um produto não está mais em relação linear com o que eles valem. Com isso em mente, o potencial do desenvolvimento tecnológico está trazendo uma nova escola de pensamento sobre como nos envolvemos com a tecnologia enquanto ferramenta.

Estamos atualmente vivendo em uma era onde o design espacial está evoluindo do Computer Aided Design (CAD) em direção à era da informação do design, como BIM, design generativo, modelagem computacional etc. O fato de que a padronização e a acessibilidade têm impulsionado o desenvolvimentos do ambiente construído contemporâneo não significa que este seja o único caminho a seguir. Como contemporâneos que vivenciam essas muitas transições, a era da informação e a nova economia de troca de conhecimento ampliaram nossos horizontes para buscar melhorias além de nossas zonas de conforto, explorar o desconhecido e desafiar os rígidos sistemas institucionais e sociais que estão desatualizados. Portanto, a questão de pensar alternativas para cidades futuras é um tópico que todos os profissionais que lidam com o espaço, sejam políticos, arquitetos, urbanistas ou designers, devem examinar atentamente, porque é inevitável que novas formas de vida mais tecnológicas e interconectadas já tenham se tornado o novo normal.

O caso das cidades do continente africano é paradoxalmente promissor e preocupante devido à imensidão da tarefa. A maioria das nações africanas vive há apenas cerca de 60 anos a chamada independência, embora ainda seja fortemente influenciada pela atual confusão geopolítica que move os mercados globais. Do lado promissor, isso define o tom para revoluções digitais sustentadas por uma busca radical para apreciar nossas histórias, culturas, línguas, ecossistemas, recursos e experiências das gerações futuras em todos esses aspectos. Não há uma agenda rígida sobre como deverá / irá ocorrer a emancipação das cidades afrofuturistas. No entanto, é um processo que exige um movimento mais holístico dos africanos para os africanos e, essencialmente, o retorno à filosofia igualitarista central ao continente. 

AD: Que caminhos devem ser percorridos para romper com o pensamento colonial e hegemônico presente na arquitetura?

MA: Não pretendemos alcançar ou citar uma lista de ações definitivas que podem romper as forças dominantes – coloniais e hegemônicas – arraigadas em nosso modo de vida hoje, que é capitalista. Acreditamos que para impactar a mudança enquanto indivíduos, o reconhecimento e a reflexão constante sobre como ocupamos posições dentro das instituições é fundamental, dado o mundo cada vez mais individualista em que vivemos, um resultado das mídias sociais digitais. Nas recentes palestras e workshops ETH Zurich Parity Talks V, para as quais fomos convidadas, enfatizamos esses caminhos em um processo contínuo de alteração, transformação e diversidade.

Entendemos a diversidade como uma simbiose libertadora entre as dimensões do tangível (físico) e do intangível (liberdade abstrata e discursiva do pensamento humano). Reconhecer (por autoria e financiamento) os interesses, o trabalho e a energia dos indivíduos e das iniciativas que atualmente focam a diversidade por meio do pensamento crítico e da resolução criativa de problemas, pode ser uma forma de ação do compromisso institucional. Tais indivíduos e iniciativas tornam-se canais de transformação, livres das barreiras codificadas do DNA das instituições que foram intencionalmente projetadas para resistir a mudanças fora das normas hegemônicas. Acreditamos que incorporar esses profissionais por meio da colaboração, e não reinventar a roda, é uma maneira pela qual podemos testemunhar e iniciar mudanças, talvez, se tivermos esperança, por uma fração de nossas vidas e para as vidas de comunidades que continuam a sofrer com condições espaciais precárias às quais os arquitetos podem e devem responder.

Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: Novos Escritórios. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Sobre este autor
Cita: Baratto, Romullo. "Educação espacial e o futuro das cidades africanas: uma entrevista com Matri-Archi" [Spatial Education and the Future of African Cities: An Interview with Matri-Archi] 29 Nov 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/951519/educacao-espacial-e-o-futuro-das-cidades-africanas-uma-entrevista-com-matri-archi> ISSN 0719-8906

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