Afinal, fazemos arquitetura e urbanismo para quem?

O que seria de todo o ambiente construído sem seus usuários? Esta pergunta talvez facilite a compreensão de que a arquitetura e o urbanismo não se sustentam apenas como espaço físico, pelo contrário, ganham significado principalmente através das movimentações e vínculos humanos e não-humanos que -  juntos dos traços arquitetônicos ou espontâneos que compõem a paisagem urbana - provocam as sensações que cada indivíduo sente de forma única.

Corpos dissidentes, racializados ou vistos através de seu gênero ou orientação sexual, de diferentes maneiras vivenciam violências atreladas apenas por suas naturezas e muitas vezes estas hostilidades vem dos espaços que eles percorrem, uma vez que, público ou privado, o ambiente construído sempre contém interferências culturais colocadas através do projeto ou da ocupação deste, que carregam significados e símbolos que podem oprimir ou desprestigiar a existência de diversas pessoas.

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Collage realizada utilizando fotografias de EneasMx e M(e)ister Eiskalt com modificações realizadas por Hic et nunc. (licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license and Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license) via Wikimedia Commons

Ao pensar como os espaços são concebidos, Mario Gooden, professor e autor do livro Dark space: architecture, representation, black identity, traz uma importante colocação quanto à branquitude masculina presente no pensamento arquitetônico:

"A arquitetura privilegia historicamente a construção do espaço visual através do olhar do sujeito masculino branco, desde a pintura A Entrega das Chaves a São Pedro (1481-83) de Pietro Perugino - cujos atores primários são representados como homens europeus de pele clara com traços romanos (embora Cristo e os Apóstolos fossem da Palestina e provavelmente de tons de pele mais escuros) - até as colagens perspectivadas de Mies van der Rohe que desvinculam o espaço de uma forma que o ponto de vista estacionário se desloca e o colapsa à visão do autor” [1]

No conteúdo deste recorte, Gooden nos exemplifica não apenas a invisibilidade da negritude na arquitetura, como também oferece outras leituras sobre como diversos corpos e gêneros foram esquecidos durante o pensamento arquitetônico ou não tiveram a oportunidade de fazer parte dele, ao menos no mundo ocidental. 

Através deste ponto de vista, algumas questões surgem: Se a arquitetura cria espaços de identidade, essa identidade serve a quem? Será que (in)conscientemente o pensamento arquitetônico passa por uma resistência à outras liberdades que não a colocada pelo pensamento hegemônico branco? O que deixamos de aprender ao focar o ensino da arquitetura apenas em cânones do norte global? É possível os arquitetos representarem a comunidade LGBTQIA+ de alguma forma?

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Collage realizada utilizando fotografias de QuintusPetillius e Faustisland (licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license) via Wikimedia Commons

Talvez não haja uma resposta imediata para algumas dessas questões, pois a intenção arquitetônica ainda se decorre muito aliada à forma como a sociedade ocidental ensina a pensar e assim discrimina outras possibilidades de vida que não a padrão colocada pelo sistema cis-heteronormativo: o pai, a mãe e seus filhos. Para propor novas formas de viver é necessário imaginar espaços que abraçam liberdades, novos programas arquitetônicos que podem sugerir e permitir outros modos de vida que envolvam diversas outras constituições familiares.

É possível traçar alguns momentos da história onde isso já existiu. Um exemplo que se encaixa nessa perspectiva é Manhattan. Sarah Schulman, em seu livro The Gentrification of the Mind: Witness to a Lost Imagination, expressa de forma brilhante como a gentrificação na ilha nova-iorquina, que ocorre juntamente à AIDS - epidemia que dizimou uma geração gay e que até hoje não foi revisada apropriadamente exatamente por se tratar da comunidade gay -  não apenas beneficiou o mercado imobiliário, como também aconteceu no campo das ideias.

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Collage realizada utilizando fotografias de Jim Austin Jimages e Dietmar Rabich (licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license) via Wikimedia Commons

Schulman demonstra que o fim de uma certa urbanidade queer e subcultural acarretou numa homogeneidade no campo das ideias e comportamentos que passam a ocupar os espaços de Manhattan, uma vez que pessoas dos subúrbios com “uma taxa muito mais alta de conformidade de gênero, conformidade de classe, heterossexualidade compulsória, segregação racial e experiência cultural homogênea” passam a ocupar espaços antes ricos em diversidade - e aqui ela não significa apenas sexual, mas também cultural e racial. 

“Incorporado nisto havia um crescente "medo" ou alienação da cultura urbana, do multiculturalismo, da não-conformidade de gênero e do comportamento individualizado. Estética inovadora, tradições alimentares diversas, novas inovações nas artes e no entretenimento, novas descobertas na música, convivência com comunidades religiosas distintas, livre expressão sexual e radicalismo político eram muitas vezes desconhecidos, separados ou considerados antitéticos...” [2]

O que ela descreve é um resumo da concepção hegemônica que passa a prevalecer e que aceita apenas o que ela mesmo produz e ensina, criando uma verdade única sobre o modo de viver que diminui cada vez mais a pluralidade de ideias e culturas que a urbanidade oferece como seu máximo potencial. Arquitetos e urbanistas sabem, ou deveriam saber, que a padronização de ideias e pensamentos universais muitas vezes podem falhar. A gentrificação opera como uma importante ferramenta neste processo, por isso combater ela ou qualquer modo de exclusão social deveria ser um dever ético da profissão. Além disso, “ignorar a realidade de que nossas cidades não podem produzir ideias libertadoras para o futuro a partir de um lugar de homogeneidade nos impede de sermos verdadeiros sobre nossas responsabilidades inerentes uns aos outros”, arremata Schulman.

Ao contrário do que muitos pensam, abraçar a diversidade não significa em nenhum momento criar rupturas ou pensar somente em pessoas que não são heterossexuais ou brancas. Está em compreender a complexidade da sociedade que vivemos e como ela se estrutura de forma violenta ao limitar desejos e vivências de parte da população que não se encaixa nos padrões colocados e ter em conta que isso se aprofunda ainda mais de acordo com raça, classe e gênero, mesmo entre pessoas LGBTQIA+.

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Collage realizada utilizando fotografias de Ana Karenina e Eneas De Troya (licensed under the Creative Commons Attribution 2.0 Generic license) via Wikimedia Commons

No campo da arquitetura, do objeto construído, discutir este tema e a inclusão racial parece um assunto ainda mais distante. No entanto, concordar com isso, é o mesmo que dizer que a arquitetura está estagnada e não consegue mais acompanhar os desafios de seu tempo. Arquitetos adoram dizer que por trás de um traço, sempre há uma intenção. Já passou da hora de colocar outras intenções nos desenhos - e na própria existência - que vão além do próprio espelho. Este é um processo que além de trazer pensamentos e experiências de outras realidades para perto, deve passar principalmente por mudanças internas. As palavras de David Harvey inspiram algumas possibilidades desta transformação coletiva que perpassa por cada indivíduo:

“O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual aos recursos que a cidade constitui: é um direito de mudarmos a nós mesmos, mudando a cidade mais de acordo com o desejo do nosso coração. É, além disso, um direito coletivo e não um direito individual, pois a mudança da cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e nossas cidades é, faço questão de argumentar, uma das mais preciosas, porém mais negligenciadas, dos nossos direitos humanos.” [3]

Hoje, a democratização de diferentes pensamentos e informações que se encontram na internet é quase indissociável de um projeto de coletivo. As redes virtuais se demonstram como excelentes ferramentas para descobrir novos modos de pensar e agir para aqueles que se propõem a mudar suas próprias ideias. É através delas que é possível se deparar com distintas práticas arquitetônicas que se originam além dos padrões dominantes e oferecem novos ares para o campo. Seja através da produção teórica e material da arquitetura queer de Andrés Jaque e sua equipe do Office for Political Innovation, a abordagem sustentável e contextual que o atelier masomi, liderado por Mariam Kamara, apresenta em seus projetos ou as discussões propostas por Joel Sanders ao, por exemplo, revisitar as questões de identidade de gênero na arquitetura e as tipologias dos banheiros, entre tantas outras possíveis referências.

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Collage realizada utilizando fotografias de Tim Evanson e Daniel Case (licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 2.0 Generic license and Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license) via Wikimedia Commons

Ao compreender as obras arquitetônicas como grandes símbolos culturais que representam sua sociedade, cada projeto carrega em si uma opinião e para que ela passe a se comunicar de uma forma mais igualitária, talvez o primeiro passo para iniciar uma mudança esteja em rever a perspectiva do moderno, que realiza uma leitura do universal através de uma medida do humano que privilegia a branquitude, o masculino e a heterossexualidade - a hegemonia que perdura por séculos no campo. 

Em outras palavras, é como se nunca tivéssemos superado o homem vitruviano e pensado em todos os outros corpos que existem. Ao excluir as comunidades não hegemônicas do debate e da construção do campo arquitetônico, se exclui também outras visões, técnicas e modos de fazer arquitetura, deixa-se de usufruir a potência do encontro com o diferente, um catalisador para soluções inovadoras e novas experiências.

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Collage realizada utilizando fotografias de KimonBerlin e Nesnad (licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 2.0 Generic license) via Wikimedia Commons

Referências

  • [1] GOODEN, Mario. Dark space: architecture, representation, black identity. New York: Columbia Books on Architecture and the City, 2016. p. 121. (Tradução livre)
  • [2] SCHULMAN, Sarah. The gentrification of the mind: witness to a lost imagination. Los Angeles: University of California Press, 2012. p. 24. (Tradução livre)
  • [3] HARVEY, David. The Right to the City, 2018. p. 1. (Tradução livre)

Sobre este autor
Cita: Victor Delaqua. "Afinal, fazemos arquitetura e urbanismo para quem? " 05 Jul 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/942447/afinal-fazemos-arquitetura-e-urbanismo-para-quem> ISSN 0719-8906

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