O papel da casa na cidade

A apreciável quantidade de trabalhos dirigidos a examinar as transformações da estrutura urbana das grandes cidades em geral, e a de Buenos Aires em particular, tem se orientado em sua maioria a estudar o fenômeno residencial como processo de suburbanização das elites, buscando compreender como e por que os setores médio da população migram da cidade consolidada para a extrema periferia em busca de um entorno arborizado e tranquilo.

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A intenção também se centrou em explicar os processos de tomada de terras por parte dos setores populares excluídos do mercado formal da habitação, assim como a “ocupação” de edifícios abandonados, obsoletos ou degradados por parte de grupos de famílias “sem teto”. E recentemente se enriqueceu o debate com a conflituosa erupção de edifícios altos dirigidos a setores médios que, por substituição edilícia, invadem áreas de baixa ocupação e densidade.

Entretanto, estas visões não assumem o importante papel que desempenha a habitação individual em Buenos Aires, com um estoque edilício tão variado como antigo, que reconverte-se a si mesmo a cada década – melhorando sua fachada, renovando seus interiores, crescendo em altura, substituindo suas instalações – e que se estende por numerosos bairros para alojar setores sociais médios e médio-baixos, empreendendo uma silenciosa resistência aos embates do desenvolvimento imobiliário.

As casas de pátio, os sobrados, as casas chorizo, as casas cajón, os chalés, os petit hotel, entre outras tipologias residenciais dominantes na cidade, periodicamente se desvalorizam, logo se intervém, se rearmam e voltam a valorizar-se. Bairros como Núñez, Saavedra, Villa Urquiza, Villa Pueyrredón, Villa Crespo, Villa Real, Villa Devoto, Villa del Parque, Villa Luro, Floresta, Liniers e Mataderos dão conta deste processo.

A partir desta perspectiva, um stock edílicio da casa individual se renova periodicamente para adaptar-se as novas demandas funcionais e tem contribuído através do tempo para consolidar o caráter aberto da cidade consolidada, enriquecendo a dinâmica urbana de seu entorno. Mais além de suas particularidades, suas transformações atuais não fazem mais que reafirmar essa condição intrínseca.

O novo processo de urbanização apresenta dois aspectos singulares: por um lado, os processos sociais que o impulsam e, por outro, sua repercussão sobre o território. Desta nova dinâmica derivam formas espaciais diferentes, cujas características variam de um lugar a outro segundo a disposição e sobreposição das redes de relações econômicas, culturais e políticas que atravessam cada lugar.

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A expansão residencial

Se bem os processos de suburbanização residencial em Buenos Aires foram de caráter principalmente popular, na atualidade são os setores médio-altos os que se suburbanizam. Para suas altas rendas o mercado oferece uma ampla gama de bairros fechados, country clubs, countries náuticos, chacras e cidades fechadas. A demanda desta tipologia de habitações está motivada principalmente pelo desejo de habitar em um entorno seguro.

Este critério assumiu uma grande importância, sobre tudo desde a década de 1990, caracterizada por um aumento da sensação de insegurança em Buenos Aires. Assim mesmo, sob a mesma ótica, existiu uma correlação em nível urbano, sobre as áreas subcentrais, através da tipologia “torre jardim” como residência para certos setores médios. Surgem como a expressão mais urbana e simbolizam a “chegada” do country club ao bairro.

Trata-se de edifícios de apartamentos destinados a residência permanente, localizados sobre as áreas densamente consolidadas e servidas. São torres de grande altura, de perímetro livre, com volumes muito elaborados, cujo prédio ocupa geralmente a totalidade da quadra (um hectare) e incluem um apartamento por andar, de grandes dimensões, capaz de competir com a residência individual. Bairros como Belgramo, Palermo, Barrio Norte, Quilmes, San Isidro ou Olivos tem sido os preferidos para sua localização.

A chegada desta nova tipologia residencial a muitos bairros tradicionais consolidados da cidade, geralmente de baixa densidade habitacional e ocupados por casas de classe média, que contavam com equipamento comunitário básico, tem provocado um importante impacto de tipo urbano, ambiental e social, que se manifestou principalmente em mudanças na vida cotidiana, nas relações entre a vizinhança, nos modos de aprovisionamento, na utilização do espaço público e tempo livre, na morfologia urbana.

Sua inserção no tecido urbano marca um claro contraste coma  trama aberta que caracterizou tradicionalmente o desenvolvimento da cidade em suas distintas etapas. Como contrapartida, tanto nas bacias de inundação dos rios e arroios, assim como em zonas centrais, surgem a modo de enclaves, desenvolvimentos fora do mercado, as “villas de emergencia”, que hoje absorvem de maneira informal uma porcentagem crescente das demandas de habitação em setores populares.

Por outra parte, os estratos sócio econômicos que ficam fora deste processo, que representam a maior parte da população (que carece de recursos para progredir em suas condições econômicas), se vem forçados a manter seus habituais níveis de aglomeração. Aparecem zonas na cidade que estancam ou que manifestam signos de deterioração crescente, feito que é apresentado como sintoma de um desenvolvimento desigual do espaço urbano.

As agudas mudanças econômicas e sociais produzidos no país no começo dos anos 90 geraram um aprofundamento dos cortes existentes no interior do amplo ventilador de classes médias de Buenos Aires, e isso se expressa em uma separação clara entre uma “classe média-alta” (executivos, profissionais de sucesso, etc) e o resto das classes médias (comerciantes, profissionais médios, empregados públicos, etc).

 

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O novo cenário urbano

Atualmente não existe na extrema periferia da aglomeração (a mais de 40km do centro) subdivisão alguma de terras com fins residências que não esteja dirigida aos setores de poder aquisitivo alto e médio-alto. Esta acentuada tendência marca o agudo contraste com os desenvolvimentos residenciais periféricos das décadas anteriores, protagonizados por grupos de baixos recursos nos limites metropolitanos.

Precisamente, o grosso desta classe média, que em geral sofreu uma retração de suas rendas – e, em muitos casos, um sensível empobrecimento – ou conseguiu manter sua propriedade ou a substituiu por outra de menor valor. Os setores mais baixos incrementaram a ocupação de “villas miseria”, “pensiones” ou propriedades alheias não habitadas.

Desde esta perspectiva, a estrutura urbana mono funcionaliza a rua e diminui a qualidade do espaço público. Isto pode ampliar-se ao bairro: o mercado do solo faz se tornar escasso também os lotes que se usam com fins comerciais ou artesanais. Por outra parte, o alto grau de motorização individual fomenta a compra em hipermercados, em geral nas áreas periféricas próximas. aumenta assim o “efeito túnel” dos deslocamentos de seus habitantes, que circulam de grade para grade.

Os barrios porteños começam sua história muito ligados ao desenvolvimento urbano de seu centro de fundação. a medida que a cidade crescia, as zonas rurais iam se deslocando para o interior. Este mecanismo de crescimento é próprio também da trama urbana de Buenos Aires, que transformam de maneira constante os terrenos circundantes em pequenos assentamentos suburbanos. Nesse sentido, se analisarmos a distribuição da casa individual surgem certos padrões de localização que constatam:

● A casa individual em torno de áreas centrais e subcentrais: em primeiro lugar, aparecem em áreas centrais, grandes vazios, ante sua sobreposição com atividades de caráter não residencial. Isto sucede em bairros como Montserrat, San Nicolás, Balvanera e Retiro, que formam o próprio macro centro da cidade.

● A casa individual em torno de corredores viários e comerciais: Em segundo lugar, se evidencia a retração da casa individual sobre as principais avenidas, como Rivadavia, Santa Fe e Cabildo, já que esses espaços snao demandados para uma exploração intensiva do solo e as expulsam do mercado.

● A casa individual em torno a áreas em processo de densificação: Em seguinte ordem, sua notória coexistência com edifícios de apartamentos altos,q eu definem setores em franco processo de crescimento e densificação. Bairros característicos do descrito são Palermo, Belgrano, Almagro e Caballito.

● A casa individual em torno a áreas consolidadas com baixa densidade: Finalmente, se detecta uma predominância quase excludente sobre áreas periféricas, com bairros preferenciais, tais como: Lugano, Mataderos, floresta, Villa Luro, Liniers, villa Devoto, Villa del Parque, Villa crespo, Villa Urquiza, Saavedra e Núñez.

Neste quadro de situação, caracterizado por processos de auto gestão residencial tanto em áreas periféricas como centrais, a casa individual em Buenos Aires assume um papel de enorme relevância, atuando como articulador social na cidade aberta, dotando de qualidade pública o espaço urbano e contendo aso amplos setores médios da população.

(*) Versão adaptada de um fragmento do livro do autor, denominado: “Buenos Aires: Albores de una ciudad moderna”. Buenos Aires: Nobuko, 2009.

Sobre este autor
Cita: Leonardo Márquez. "O papel da casa na cidade" 27 Out 2012. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-77687/o-papel-da-casa-na-cidade> ISSN 0719-8906

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