Escombros do passado e futuros possíveis: entrevista com Carlos Alberto Maciel sobre o Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza

Quando foi escolhido pela Biennale di Venezia para dirigir a 17ª Exposição Internacional de Arquitetura, Hashim Sarkis desafiou os curadores nacionais a responderem uma pergunta urgente e nada fácil: como viveremos juntos? Nem ele, nem os curadores, nem ninguém esperava o que estaria por vir. Passado um ano e meio de pandemia global, a pergunta assume novos significados e apresenta, certamente, desdobramentos outros que extrapolam qualquer noção previamente vislumbrada pela organização do evento.

Neste contexto de incertezas globais, informada por um país marcado pela desigualdade social, Utopias da vida comumtítulo da participação brasileira elaborada pelos Arquitetos Associados em colaboração com o designer visual Henrique Penha – busca estabelecer um diálogo entre o passado moderno e um futuro possível (e melhor) para as cidades brasileiras. Tivemos a oportunidade de conversar com o arquiteto Carlos Alberto Maciel sobre a mostra que ocupará o Pavilhão do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza. Leia a seguir:

Romullo Baratto (ArchDaily): Como a participação brasileira dialogará com o tema How will we live together? [Como viveremos juntos?], proposto por Hashim Sarkis?

Carlos Alberto Maciel (Arquitetos Associados): A participação brasileira dialoga com o tema principal da Bienal de diversos modos. Nossa primeira iniciativa para pensar o tema foi olhar para o Pavilhão Brasileiro em Veneza e repensar seu espaço. Ao longo dos anos ele sofreu inúmeras intervenções que apagaram algumas de suas características mais marcantes. A principal delas era a abertura da primeira sala para os terraços laterais com generosas vidraças. Propusemos uma restauração completa do pavilhão e sua reabertura. Abrir portas seria uma resposta concreta àquela pergunta colocada pelo Hashim. Infelizmente essa iniciativa não foi possível devido a toda a mudança de contexto que todos conhecemos bem. Mas a ideia persiste, e está sinalizada na exposição.

Um segundo modo de se relacionar com o tema geral é a própria ideia que nomeia a nossa participação: utopias da vida comum.

Pensar o cotidiano e a apropriação da arquitetura e da cidade, de um lado, e lançar luz sobre iniciativas contemporâneas capazes de reverter a tragédia do desenvolvimento e a destruição ambiental decorrente da urbanização descontrolada, ou de promover um maior acesso à moradia e à cidade para os mais vulneráveis são respostas possíveis para aquela questão.

Um terceiro modo, que responde não exatamente à questão, mas ao chamado apresentado pelo Curador Geral, é a convocação de artistas para participar de toda essa conversa.

RB: Em entrevista ao jornal Estado de Minas, foi dito que a proposta visa "pensar como o tema pode ser abordado no contexto brasileiro". Poderiam dar mais detalhes sobre isso?

CM: Pensar em como viveremos juntos em um país marcado pela desigualdade social talvez exija uma recalibragem do olhar. Isso é o que motivou, por exemplo, a busca pelo trabalho dos dois artistas que comparecem na primeira parte da exposição – Futuros do Passado: Luiza Baldan e Gustavo Minas. Os dois ensaios fotográficos que apresentamos, que lançam um olhar sensível sobre duas obras modernas da arquitetura brasileira, o Pedregulho e a Plataforma Rodoviária de Brasília, revelam uma apropriação contemporânea daqueles espaços, bastante diversa daquela imaginada por seus autores, e nos permitem refletir sobre o significado desse legado arquitetônico hoje, no atual contexto social e econômico. Essa mesma sensibilidade aparece nos dois filmes comissionados especialmente para a mostra, que apresentam poeticamente duas questões críticas: o abandono dos rios urbanos, de um lado, e de edifícios em processo de obsolescência nas regiões centrais das principais cidades do país. Mas, mais do que denunciar o abandono, iluminam as suas possibilidades de transformação para um futuro melhor.

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Foto de Luiza Baldan. Sem título [série Natal no Minhocão], 2009. Arquitetura: Affonso Eduardo Reidy. Cortesia do artista

RB: O que os levou a selecionar o Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, e a Plataforma Rodoviária de Brasília, de Lucio Costa, como únicos projetos de arquitetura a representar o Brasil em Veneza este ano?

CM: Talvez valha recolocar essa questão: não são essas obras de arquitetura em si, mas a exposição como um todo e a reflexão sobre a presença das utopias em solo brasileiro o que representa o Brasil em Veneza esse ano.

Pedregulho e Plataforma Rodoviária são obras virtuosas de um passado que resistem e vêem sendo permanentemente ressignificadas ao longo das suas décadas de vida. Por essa razão não estamos apresentando esses edifícios, em si, como uma produção notável, mas o olhar contemporâneo de dois artistas sobre esses dois lugares notáveis, cuja apropriação é o que mais interessa, como uma vida que surge de uma certa erosão física e simbólica de uma modernidade cheia de contradições.

Em outras palavras, interessa-nos discutir como aquela utopia moderna produziu inúmeros edifícios que podem, ainda hoje, resistindo a um processo de obsolescência, constituir plataformas potentes para a vida. Basta comparar o Pedregulho a toda a produção habitacional de interesse social recente no Brasil e se compreenderá sua potência.

De outro lado, além dessas duas obras, duas iniciativas contemporâneas são destacadas na segunda parte da exposição, a que chamamos de Futuros do Presente: a proposta da Metrópole Fluvial elaborada pelo grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo coordenado pelo Professor Alexandre Delijaicov, que projetou um anel hidroviário para a maior metrópole brasileira, imaginando uma reversão daquela matriz automobilística que predomina ainda hoje no país – e que informou a criação da Plataforma Rodoviária, por exemplo! -, e de outro lado as iniciativas das ocupações urbanas de edifícios abandonados nas regiões centrais para habitação social, que na mostra estão representadas pela Ocupação Carolina Maria de Jesus, em Belo Horizonte. Para além da virtude de providenciar habitação em localizações com farta infraestrutura para os mais vulneráveis, as ocupações contribuem para a reversão do abandono de edifícios e da degradação urbana decorrente do esvaziamento das áreas centrais. E, ao contrário de condomínios de classe média que se fecham atrás de muros, grades e portarias com inúmeros dispositivos de segurança, as ocupações se abrem para a cidade, incluem em seus programas espaços para atividades coletivas e muitas vezes que atraem outros públicos para além de seus moradores, como por exemplo na Galeria de Arte da Ocupação Nove de Julho, em São Paulo. Essa outra lógica de habitar é extremamente mais viva e estabelece várias conexões com a cidade e com a sociedade. Lançar luz sobre essas iniciativas é também apontar a necessidade de construir políticas públicas para viabilizá-las em larga escala.

Se pensarmos no agravamento da desigualdade provocado pela pandemia, e ao mesmo tempo em uma redução da atividade econômica, redução da demanda por espaços de trabalho presencial e a maior vacância imobiliária decorrente disso, reinventar as políticas públicas para reverter esse passivo, recuperar a presença de vida nos centros e ao mesmo tempo dar a melhor condição de localização para as populações mais vulneráveis parece ser algo urgente.

RB: Dois vídeos também integram a participação brasileira, um dirigido por Aiano Bemfica, Cris Araújo e Edinho Vieira e outro por Amir Admoni. Do que tratam estas obras audiovisuais?

CM: Antes de falar sobre os filmes em si, é interessante falar um pouco sobre porque dois filmes nessa exposição. [A bienal de] Veneza é uma experiência que demanda um tempo longo de visitação: são dezenas de participações nacionais além de uma extensa exposição principal. Muitos visitantes apenas passam pelos pavilhões. Quando começamos a pensar como fazer uma exposição nessa condição, procuramos reduzir o tempo necessário para que o visitante possa ter uma primeira compreensão geral do todo. O filme, e, mais ainda, uma instalação de vídeo de caráter imersivo – cada filme foi produzido com um formato de 3 telas simultâneas, com constituem um ambiente, como um cubo, no qual as pessoas ingressam e experimentam aquele conteúdo na escala do seu corpo – amplifica a experiência do visitante de um modo mais sensorial e menos dependente do texto. Para os que desejarem ou puderem dedicar mais tempo, o conteúdo se desdobra nos textos e imagens – poucas. E para aprofundar a conversa, estamos produzindo um livro-catálogo que estará disponível on-line com contribuições de vários autores, críticos, arquitetos e não arquitetos, que aborda os exemplos apresentados na exposição e também outros momentos da presença da ideia de utopia em solo brasileiro. Outra razão pela qual optamos por esse caminho é o fato de que, em geral, depois das mostras, tudo que é produzido é descartado, gera lixo. Pensamos que fomentar a produção de duas obras cinematográficas novas é um modo de perpetuar um legado de todo esse esforço e investimento.

Bem, falando então dos filmes: Aiano, Cris e Edinho registram o cotidiano da ocupação Carolina Maria de Jesus em três tempos, ou escalas: do espaço privado da moradia, do coletivo no edifício e da relação com a cidade. Tempos de vida cotidiana, que incluem o tempo do trabalho. É um registro que revela uma vida potente em uma estrutura obsoleta, um hotel até então abandonado que em outro tempo foi rico, quase kitsch, e nos faz indagar sobre um futuro diferente que reconheça a falência da lógica de consumo frívolo e defina outras construções sociais sobre os escombros dessa cidade moderna. A ocupação mostra um caminho, revela que a alegria resiste e que a última fagulha da Revolução Francesa – a fraternidade – ainda tem lugar no porvir.

De outro lado está o filme do Amir. Amir é um cineasta paulistano com formação em Arquitetura pela FAUUSP. O seu título é muito elucidativo: Heterotopia Fluvial: um homem remando um barquinho percorre ao longo de um dia inteiro os rios de São Paulo. Entretanto o que se vê é apenas o reflexo desse sujeito, que parece absolutamente fora do lugar – no caso um não lugar cercado de trânsito intenso, poluição, arranha-céus – em um lento percurso que vai revelando uma outra maneira de ver a maior cidade brasileira. É um trabalho autoral inspirado nas discussões da Metrópole Fluvial. Para realizar o filme, Amir frequentou as aulas que Alexandre Delijaicov ministrou, aos modos de ateliê aberto, na Bienal de Arquitetura de São Paulo. É sem dúvida um discurso poético sobre tempos e sobre a possibilidade de construção de outros olhares sobre uma metrópole cansada.

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Frame do vídeo "Casa de Carolina de Jesus II", 2021. Créditos: Aiano Bemfica, Cris Araújo, Edinho Vieira

Ambos os filmes, como também os ensaios fotográficos, procuram trazer esse olhar do outro, dos artistas e cineastas, sobre as questões do mundo da arquitetura e das cidades. Os ensaios fotográficos já existiam. Os filmes foram feitos para essa exposição e, quando convidamos os autores, além do tema, claro, e do formato imersivo, procuramos dar a eles total liberdade para experimentação. Daí surgem dois filmes que são um conjunto coeso e ao mesmo tempo totalmente diferentes. É um modo de responder ao tema geral: como pensaremos juntos os nossos espaços de vida?

RB: Nas últimas três edições da Bienal de Arquitetura de Veneza, a participação brasileira vem progressivamente dando sinais de - finalmente - superar a discussão sobre o modernismo para, enfim, se posicionar no contexto contemporâneo internacional. A proposta atual, entretanto, parece retornar ao modernismo. Poderiam falar um pouco sobre esta decisão?

CM: Imagino que o que falamos até aqui permita dizer que a proposta não retorna ao modernismo, nesse sentido imediato que parece sugerir que olhar para o passado seria recusar também olhar para o futuro. A própria ideia de utopia nos remete ao futuro. O tempo é um só, passado e futuro são partes de um tempo histórico que é muito maior do que a existência de cada um de nós. Não estamos louvando o passado, mas olhando para os seus escombros para imaginar outros futuros possíveis. E nesse sentido, o passado, e particularmente a arquitetura moderna, é o que nos constituiu até aqui. Se pensarmos que a explosão da urbanização das cidades brasileiras coincidiu com a hegemonia do modernismo – ao contrário dos países mais velhos, como na Europa –, reconheceremos um patrimônio edificado – no sentido cultural e econômico - nos centros das principais cidades brasileiras que é majoritariamente moderno, em grande parte em acelerado processo de envelhecimento, e disponível. Nos interessa pensar essa arquitetura como um recurso para realizar outros futuros. Daí, olhar não para os edifícios modernos em si, mas para sua apropriação hoje, permite conectar por exemplo o cotidiano no Pedregulho, uma arquitetura de habitação coletiva notável, com o cotidiano igualmente rico da Ocupação Carolina Maria de Jesus, que vem renovando um antigo hotel abandonado, de arquitetura moderna absolutamente genérica. Nos permite também refletir se precisamos ainda construir: talvez não, talvez seja necessário redefinir a disciplina, considerar a transformação do que está dado e, para isso, repensar a própria formação de arquitetas e arquitetos jovens que terão outros desafios.

RB: A participação do Brasil, assim como todo o evento da Bienal, foi, evidentemente, bastante afetada pela pandemia e recorrentes momentos de lockdown. Como a imposição deste estado de emergência, isolamento e epidemia global interferiram nas decisões curatoriais ao longo de 2020?

CM: A pandemia estendeu o nosso trabalho por dois anos. Esse tempo estendido teve um lado positivo de permitir um amadurecimento das questões e nos fez produzir e reunir um conteúdo ampliado que será apresentado no catálogo. Temos de agradecer imensamente aos inúmeros convidados que contribuem com essa publicação, como vocês verão. Uma outra consequência positiva foi a iniciativa do Curators Commons, proposta pelos curadores da Coreia do Sul, da qual fazemos parte, que reuniu em um acontecimento inédito na história das bienais a maioria dos curadores das representações nacionais e vem promovendo encontros e debates ao longo desse ano, desde maio de 2020.

Sobre a exposição propriamente, quando surgiu a pandemia, já estávamos com o projeto estruturado e com os filmes em fase avançada de produção. O maior impacto negativo da pandemia nas decisões curatoriais incidiu sobre a expografia e a intervenção no espaço físico do Pavilhão. O contexto crítico, a dificuldade operacional e a mudança no contexto econômico mundial impediram que realizássemos o restauro do edifício, apesar de todos os esforços incessantes por parte da Fundação Bienal, a quem temos também de agradecer. Fizemos, como parte do trabalho curatorial, o anteprojeto de restauro do pavilhão. Esperamos que isso possa acontecer num futuro breve. Abrir suas portas seria mais do que uma utopia sobre como viveremos juntos e se converteria em um outro legado dessa exposição, para, como nos demais exemplos que apresentamos na mostra, reverter sua obsolescêcia para lhe dar uma vida mais longa, reforçando sua vocação de conformar uma plataforma inspiradora para pensar outros futuros.

Confira a abrangente cobertura da Bienal de Arquitetura de Veneza 2021 realizada pelo ArchDaily. Não deixe de assistir à nossa playlist oficial no Youtube, onde apresentamos entrevistas exclusivas com arquitetas, arquitetos e curadores da Bienal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Escombros do passado e futuros possíveis: entrevista com Carlos Alberto Maciel sobre o Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza" 29 Mai 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/961478/escombros-do-passado-e-futuros-possiveis-entrevista-com-carlos-alberto-maciel-sobre-o-pavilhao-do-brasil-na-bienal-de-veneza> ISSN 0719-8906

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