Mães e mobilidade urbana: como as cidades devem respeitar essa relação

As mulheres são maioria nas ruas e no transporte coletivo. Os padrões de deslocamento e o uso dos modos de transporte são diferentes para cada gênero, influenciados pelo fato de as mulheres ainda assumirem com mais frequência as tarefas “domésticas”, muitas delas relacionadas aos filhos. Se questões de gênero ainda são negligenciadas no planejamento urbano, o acesso de mulheres com crianças à cidade é um tema ainda mais carente de atenção. Por meio dos depoimentos de algumas mães, ficam ainda mais claras as consequências que as falhas de planejamento e mobilidade urbana provocam no dia a dia de mães e filhos.

Grande parte das cidades brasileiras ainda sofre em decorrência de planejamentos que não foram executados de forma a garantir o acesso sensível a questões de gênero e classe social. Somado a isso, as cidades há muitos anos são construídas para o melhor uso do carro. No Brasil, pesquisas indicam que os homens são os que mais utilizam carros nos deslocamentos diários. Já as mulheres são maioria no transporte coletivo (74,6%) e no transporte a pé (62,5%), segundo estudo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, feito a partir de dados da pesquisa Origem e Destino de 2012 do Metrô de São Paulo.

Padrões de deslocamento entre homens e mulheres. Image Cortesia de Via TheCityFix Brasil

No estudo “Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero”, a engenheira Haydée Svab concluiu que uma das variáveis que impactam os padrões de mobilidade das mulheres é a presença de crianças entre cinco e nove anos na família. As principais motivações para os deslocamentos das mulheres ainda são estudo e trabalho, porém elas também assumem com mais frequência outras tarefas, como levar os filhos à escola, creche, médicos, ir ao mercado e a farmácias.

Relatório recentemente lançado pelo Institute for Transportation and Development Policy (ITDP) e a Women’s Environment and Development Organization (WEDO), explora como os sistemas de transporte deixam de tratar a diversidade de padrões de mobilidade e necessidades entre os diferentes gêneros. O documento Policies for Inclusive TOD (Políticas para o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável Inclusivo, na tradução livre) afirma que as mulheres têm comportamentos de viagem diferentes devido a distintos papeis e responsabilidades, assim como experenciam de formas diferentes os usos dos meios de transporte.

“Mulheres são tipicamente mais dependentes dos ônibus porque esses são mais convenientes para viagens curtas”, alega o relatório. Ao mesmo tempo, como é ressaltado no texto, veículos de transporte coletivo são desenhados para homens, com degraus e barras de apoio mais altos, pouco espaço para acomodar pertences ou carrinhos de criança.

O documento destaca ainda os sistemas de cobrança pelo transporte, que devem atender aos diferentes padrões e combinações de deslocamento. “Se os sistemas de cobrança não são integrados para permitir o acesso a múltiplos modos de transporte em um período de tempo, os custos de uma viagem podem ser muito altos.”

Anne Rammi, autora do blog Mamatraca e mãe do Joaquim, de 8 anos, do Tomás, de 6, e da Iolanda, de 2 anos, mora em São Paulo e, desde setembro do ano passado, não usa mais o carro como principal meio de locomoção. Ela e o marido decidiram vender o automóvel e fazer seus deslocamentos a pé, de bicicleta e de transporte coletivo, combinando modais. A motivação, segundo ela, foi ideológica: “optar pela mobilidade ativa tem ganhos sociais – a gente faz uma escolha mais sustentável e acaba influenciando outras pessoas, atuando na mudança real de um cenário tão preocupante que é a mobilidade em São Paulo –, mas também tem ganhos de saúde pessoais. As crianças conhecem seu bairro, ganham agilidade e inteligência para circular nele, aprendem sobre as coisas na rua, respiram melhor, se mexem. E os adultos também”, explica.

O planejamento urbano é determinante para melhorar o acesso das mulheres e crianças. Cidades espraiadas dificultam os deslocamentos fomentando e perpetuando a desigualdade. As infraestruturas de calçadas e ciclovias e os acessos ao transporte coletivo também são capazes de excluir mães com filhos se não apresentarem boas condições de uso.

“A poesia da mobilidade ativa é um pouco mais espinhenta – claro – para quem é mãe. Primeiro porque somos mulheres, e sabemos que mulheres são sempre potenciais alvos para violências cotidianas na cidade, além das de gênero. E depois porque além, dessa condição, carregamos crianças. Minha vivência mostra que não há ainda um trabalho, sequer um olhar eficiente, para as questões da infância e da maternidade dentro da perspectiva da mobilidade”, destaca Anne.

Uma das fundadoras do projeto Carona a Pé, Carol Padilha lembra dos dias de gestação. “O corpo que gesta é maravilhoso, mas não é mais o corpo ágil de antes. Com 16kg a mais, atravessar o sinal de poucos segundos de uma grande avenida próxima do meu apartamento era como correr uma maratona. Me fez perceber que aquele tempo semafórico não era para mim. E assim como eu, por ali circulam muitas outras grávidas, cadeirantes, idosos, acidentados, crianças”, ressalta.

Carol lembra ainda das escolhas de arborização urbana como elemento importante na qualidade dos deslocamentos pela cidade, desde mais espaços verdes até o tipo de vegetação não-agressiva aos pequenos. “Ver o Bento caminhando é lindo, mas sinto falta de mais gramados para ele testar os limites de seu corpinho e para interagir com outras pessoas.”

Entre os empecilhos das locomoções com as crianças, Anne ressalta desde as políticas de prioridade nos bancos de ônibus ou metrô, a situação das calçadas e os tempos semafóricos até a falta de ciclovias. “Carregar as crianças sem ciclovias é também um fator de resistência. Eu carrego, mas não acho que todas as mães têm a obrigação de colocar seus bebês no meio do trânsito para tentarem provar um ponto. É obrigação dos governos priorizarem as crianças.”

Cortesia de Via TheCityFix Brasil

Ananda Etges, jornalista e autora do blog Projeto de Mãe, saiu da cidade natal, Venâncio Aires, no interior do Rio Grande do Sul, e se mudou com o marido e os dois filhos, o Vítor, de 7 anos, e a Clara, de 5, para Liverpool, na Inglaterra. Para ela, a principal diferença sentida em relação à mobilidade é no uso do transporte coletivo. As rotas e a eficácia do sistema de ônibus mudaram a rotina que antes era dependente do carro. “Aqui, o transporte público surge como alternativa, e ter um carro passa a ser uma possibilidade, não uma urgência”, destaca. O próprio planejamento urbano da cidade inglesa mexeu com a rotina da família. Há quase dois anos morando no exterior, a família se vê realizando quase todas as atividades diárias a pé.

Ananda acredita que o transporte influencia na formação dos filhos, especialmente como cidadãos, e em seu sentimento de pertencimento. “O transporte nos dá segurança e possibilidades dentro de um espaço. Apresenta ambientes, alternativas e isso nos insere em um determinado local. Dentro do conceito de cidadania, se sentir parte desperta cuidado e respeito pelo que nos cerca. Como mãe, é exatamente o que tento transmitir para os meus filhos nas nossas relações cotidianas.”

“É tão bonito ver o Bento dando tchau para o Osmar da banca, para o Lúcio que vende flores e para a Dri da loja de bolos. Eu penso que quando ele crescer terá um sentimento de pertencimento e é nisso que quero me apegar não isolando meu filho das belezas e problemas que a cidade tem, afinal ele já faz parte dessa sociedade”, salienta Carol.

Aline Cavalcante é sócia e fundadora do oGangorra, projeto que busca melhorar a cidade a partir do incentivo ao uso da bicicleta, e mãe do Cauê, de 2 anos. Nos deslocamentos sozinha ela opta pela bicicleta e o transporte a pé, mas quando está com o filho, não se sente segura para pedalar e escolhe o transporte coletivo e o carro.

Para acolher melhor as mães e crianças, Aline acredita que seja fundamental reduzir os limites de velocidades das vias, respeitar mais os tempos das pessoas com algum tipo de limitação de locomoção, calçadas acessíveis em nível e adaptadas, de qualidade. “No transporte coletivo seria muito importante a acessibilidade, mais espaço para carrinhos, por exemplo. Ser mais seguro também do ponto de vista dos limites de velocidade, pois aqui os ônibus andam muito rápido. É uma lógica onde todo mundo no trânsito, motorista de ônibus e de carro, todos incorporassem a vida das crianças”, sugere.

Recomendações para ações de gênero

O relatório “Políticas para o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável Inclusivo” apresenta cinco recomendações-chave para corrigir os desequilíbrios de gênero nas cidades. São indicações que vão ao encontro do que as mães entrevistadas pelo TheCityFix Brasil apontam.

A acessibilidade nas vias públicas e no transporte é fundamental. Foto: mrhayata/Flickr-CC. Image Cortesia de Via TheCityFix Brasil

1. Incluir as mulheres, os direitos humanos das mulheres e as considerações de gênero nos processos de planejamento e nos quadros políticos.

"Se locomover com crianças é diferente de se locomover sem crianças, e isso extrapola a questão de gênero. Minha percepção é que como as mulheres mães são excluídas dos polos de tomada de decisão, e também da produção intelectual sobre os temas da contemporaneidade, a criança e a maternidade somem das pautas.” Anne Rammi

"Esse é um assunto bem ‘invisibilizado’ na nossa sociedade. Depois que nos tornamos mães, meio que sumimos. Temos dificuldades para o mercado de trabalho para atender os nossos horários, as nossas demandas específicas. E isso se estende para as políticas públicas que não reconhecem a nossa existência.” Aline Cavalcante

2. Projetar ruas completas que sejam seguras para todos os usuários, começando em primeiro lugar com bons ambientes para o caminhar, mas também para facilitar o uso da bicicleta, modos intermediários, e o transporte coletivo.

"O tempo de travessia nos semáforos é insuficiente. Isso quando tem semáforo. Os motoristas não respeitam as faixas de pedestre. Isso quando tem faixas. E as calçadas não são seguras, não permitem trânsito de carrinhos de bebê e não oferecem conforto para o deslocamento das crianças. Isso quando tem calçada.” Anne Rammi 

3. Desenvolver comunidades completas, garantindo que o uso do solo e os meios de transportes sejam bem integrados e oferecer diversas atividades e serviços a nível de bairro.

"No nosso caso, várias das atividades domésticas e familiares são realizadas sem necessidade de grandes deslocamentos. Vamos à escola, mercado, posto de saúde, biblioteca pública, farmácia popular, pracinha e outros lugares a pé. Isso muda a nossa relação com a cidade e como as crianças enxergam o lugar em que moram, se sentindo parte de uma verdadeira comunidade.” Ananda Etges

4. Fornecer serviços de transporte inclusivos e veículos que atendam a padrões de viagem variados e necessidades além do trajeto.

"Gostava que o Bento ficasse bem aconchegado e usava o meu sling ou canguru. Era uma delícia, até entrar em um ônibus. Subir aquele degrau altíssimo, depois de andar pela lotação eu não passava na catraca, não cabia. Tira o bebê, tira o idoso do banco prioritário, aguenta a cara feia de todo mundo por que estou gerando tumulto. Quando comecei a usar o carrinho achei que seria o máximo! E foi. Fazer um passeio matinal em volta do meu quarteirão me fazia sentir que eu era o máximo ao concluir o que era quase a prova olímpica de corrida com obstáculos. Calçadas esburacadas, revestimentos escorregadios, desníveis homéricos priorizando automóveis, postes e árvores impedindo a passagem.” Carol Padilha

"As políticas de prioridade no acesso aos bancos de ônibus ou metrô não contemplam crianças. Uma mãe, como eu, que anda com três crianças, desrespeita cotidianamente as políticas de prioridade nos assentos. Porque eu preciso me segurar e consigo segurar um filho só. Os outros dois, eu preciso que estejam sentados ou seguros de alguma forma.” Anne Rammi

5. Permitir o progresso com financiamento, educação e assistência para alcançar a mobilidade sustentável.

"Acredito que o planejamento de cidades inglesas e de muitas outras cidades europeias enxerga a mobilidade como um dos pilares para a qualidade de vida da população e isso faz toda a diferença. São pequenos detalhes que percebo nas calçadas, nas ruas, nos ônibus que ajudam muito nas minhas viagens com as crianças. Motoristas de ônibus e de carro também demonstram outro cuidado quando se trata de mães gestantes ou com filhos. Isso vem de uma base educacional de cada pessoa e que também nos faz sentir mais segurança na hora de sair de casa.” Ananda Etges

Via TheCityFix Brasil

Sobre este autor
Cita: Paula Tanscheit. "Mães e mobilidade urbana: como as cidades devem respeitar essa relação" 11 Jun 2018. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/896047/maes-e-mobilidade-urbana-como-as-cidades-devem-respeitar-essa-relacao> ISSN 0719-8906

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