Brasil, resíduos e as cidades: desigualdades sociais e gestão desintegrada / Arthur Eduardo Becker Lins

O Brasil ocupa atualmente uma incômoda posição em relação à gestão de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), reflexo do processo de exploração colonial. Do século XVI ao XIX, as condições de higiene das cidades eram muito precárias: nas casas, os detritos acumulavam-se em tinas nos recintos domésticos - esvaziadas periodicamente por escravos, os tigres. Nas cidades litorâneas, como no Rio de Janeiro, havia maior dificuldade para enterrar os resíduos devido às condições do solo, e as águas do mar sempre acabavam como destino final.

A primeira manifestação oficial sobre limpeza pública da Câmara Municipal do Rio de Janeiro data de 1830 [1], e trata sobre a limpeza e conservação de ruas e praças, e outras ações. Em Manaus, registros apontam que em 1871 inaugurou-se um dos primeiros incineradores que queimava parte dos resíduos lá gerados. No ano de 1880 a Capital Imperial implanta o primeiro sistema de limpeza urbana, através da contratação de Aleixo Gary – que mais tarde daria origem ao termo gari. As promessas de inovação não resolveram o problema dos resíduos com eficiência, e em 1895 adota-se o uso de incineradores. Mais um fracasso, e os resíduos passam a ser despejados na Ilha de Sapucaia, na Baia de Guanabara.

A partir de 1907, já no período republicano, adota-se novamente o procedimento de incineração de resíduos, resistente até a década de 60 [2]. É nesta mesma época – início do século XX, que o então prefeito da Capital, Pereira Passos, trabalha no projeto de modernização da cidade do Rio de Janeiro, pautado nos ideais higienistas e nas premissas haussmannianas. Assim como nos moldes europeus, pretendia-se eliminar as epidemias e dar novos ares ao centro da cidade, incluindo o trato dos resíduos. O plano, entretanto, ao impor uma nova paisagem às áreas centrais, apenas transferiu de endereço determinados problemas urbanos. Realidade que permanece até os dias de hoje – os resíduos tem seu destino final a quilômetros de distância das áreas aonde são gerados, muitas vezes dispostos em locais absolutamente inadequados, como encostas florestadas, manguezais, rios, baías e vales. No Brasil, 43% dos municípios ainda vazam seus resíduos em locais a céu aberto [3], em cursos d’água ou em áreas ambientalmente protegidas, muitas vezes com a presença de catadores trabalhando em ambientes frágeis e hostis.

Destino dos Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil. Fonte dos dados: IBGE 2008.

Ao longo do século XX, o crescimento das cidades brasileiras não acompanhou a provisão de infraestrutura e serviços urbanos. E ainda que seja tema de políticas públicas recentes, a discussão sobre resíduos escapa de um de seus principais nós: a sua espacialização no território. A produção destes resíduos no espaço urbano não é homogênea - reflete justamente a essência de uma sociedade desigual e heterogênea, cujo controle é estabelecido pelo poder de consumo das diferentes camadas sociais. A geração de resíduos está no cerne do processo produtivo, se encaixa no final da cadeia de consumo – extração, produção, distribuição, consumo e disposição – e ameaça a cada dia mais as condições de vida nas cidades, com elevados custos sociais e ambientais. Neste sentido, é evidente que a geração de resíduos está diretamente associada às atividades desenvolvidas pelo homem, tanto no tempo quanto no espaço. Os resíduos marcam a paisagem, impregnando-se no espaço construído e habitado pelo homem, constituindo-se agente de primeira linha na territorialidade urbana [1]. 

As cidades brasileiras carecem de infraestrutura básica de saneamento, incluindo o manejo de resíduos sólidos urbanos . Image © Arthur Eduardo Becker Lins

O Brasil, no período pós II Guerra Mundial, não seguiu o cenário de alarme em relação ao meio ambiente e resíduos sólidos. No Rio de Janeiro, o primeiro aterro sanitário a ser implantado foi apenas no final da década de 70, no município de Duque de Caxias. Porém, equivocadamente instalou-se em área de manguezal, na localidade de Jardim Gramacho, e tornou-se o maior lixão da América Latina, fechado no ano de 2012 devido aos frequentes problemas ambientais e sociais. O aterro de Gramacho talvez seja o exemplar que demonstra com mais clareza a fragilidade do sistema de Gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil, e o distanciamento que há com o planejamento e a produção do espaço urbano. Ao redor do aterro formaram-se grandes bolsões de miséria, de uma população dependente da atividade de catação, em condições de insalubridade e inabitabilidade.

Já em terras capixabas, o documentário de Amylton de Almeida - O lugar de toda pobreza - de 1983, retrata as condições de miséria e a disputa pela sobrevivência através da atividade de catação, em um território dominado pelo acúmulo de lixo. Na periferia de Vitória, no Bairro São Pedro, homens, mulheres e crianças sobreviviam em meio aos dejetos, e ao longo do tempo comunidades foram construídas sobre o território onde antes se depositava os resíduos da cidade.

Na capital gaúcha, o curta-metragem Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, exibe realidade semelhante àquela de Vitória. A deposição do lixo de Porto Alegre, em uma ilha do Rio Guaíba, demonstra a ausência de políticas públicas para solucionar a questão dos resíduos e a ampla desigualdade da sociedade brasileira. Ainda hoje a população que lá reside sofre com o descaso do poder público.

Anos depois a população da Ilha das Flores, as margens do Rio Guaíba, ainda sofre com inundações e muitos dependem da reciclagem do lixo para o sustento familiar. Image © Arthur Eduardo Becker Lins

No Distrito Federal, o Lixão da Estrutural prolonga sua desativação por oito anos, e quase cinco anos após a sanção da Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei nº 12.305/2010. A 15 quilômetros de Brasília, o lixão estende suas atividades desde a década de 60, e mais de 2mil pessoas provêm seu sustento da separação de resíduos no local. A promessa é que a abertura do Aterro Sanitário Oeste, em Samambaia, prevista para meados de 2017, encerre as atividades no lixão. Enquanto isso inúmeras famílias sobrevivem em situação desumana, longe dos olhos da população. Segrega-se da cidade o lixo, e a classe social menos privilegiada.

"Removemos os dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis, por não olhá-los, e inimagináveis por não pensarmos neles. Eles só nos preocupam quando as defesas elementares da rotina se rompem, e as precauções falham." [4]

Hoje, no Brasil, a produção de resíduos sólidos demonstra com evidência a desigualdade social existente nos países em desenvolvimento. A população mais rica chega a exibir índices de geração de resíduos na ordem de 1,5 kg/hab/dia, como em países de primeiro mundo, enquanto que setores de baixa renda atingem apenas 0,3 kg/hab/dia - índice igual ou menor ao de nações paupérrimas [1]. Dados como esses demonstram a associação entre a produção de resíduos e as desigualdades socioespaciais, que se relacionam com o poder de consumo da população e se espacializam nas cidades contemporâneas.

"O lixo associa-se à ordem e à desordem. Portanto, dizemos que isso está no campo da arquitetura, da cidade, da ordenação das cidades, da ordenação do espaço da cidade, do espaço punitivo da cidade. [...] O lixo é muito mais que um subproduto da sociedade atual, [...] ele é o retrato mais fiel da sociedade de consumo, [...] que prioriza as embalagens em detrimento do conteúdo." [5]

Em um panorama ampliado da gestão nos municípios, a grande preocupação do poder público em relação aos resíduos é realizar a coleta, afastando-os o mais breve possível do perímetro urbano para destinos finais os quais a população quase sempre desconhece. É mínima a preocupação em resolver o problema na origem, quiçá de pensar o problema na escala do território. Neste sentido, as maiores ações têm ocorrido voltadas para a reciclagem pós-consumo.

Diante disto, a coleta seletiva de materiais recicláveis passou a ser uma alternativa para a redução e reciclagem de RSU no país a partir de meados da década de 80, mobilizando a sociedade organizada, empresas, comércio e governos locais. Contudo, somente 18% dos municípios brasileiros possuem programas de coleta seletiva formal [3], o que se faz deduzir que a reciclagem é mantida pela coleta informal. Os números mostram que a coleta seletiva de resíduos, de modo tímido, tem crescido anualmente no Brasil. Frequentemente observa-se a movimentação de segmentos da população que, com maior consciência ambiental, cobram dos órgãos públicos posturas e procedimentos mais adequados em relação ao destino final dos resíduos produzidos nas cidades.

Em torno desta realidade constrói-se um discurso ideológico de proteção ao meio ambiente, responsabilizando consumidor e catador pela destinação, e não o produtor – agente determinante na geração de resíduos. O discurso do desenvolvimento sustentável vem à tona sem que se compreenda a essência da crise, com o objetivo de viabilizar a continuidade da produção de mercadorias garantindo a apropriação privada de riquezas naturais. A natureza é governada pelas suas próprias leis, mas a humanidade as ignora em seu próprio risco, ao permitir que os interesses de uma minoria se sobreponham aos interesses sociais. Os programas de reciclagem, que deveriam fazer parte de um sistema integrado de gestão, muitas vezes tornam-se apenas elemento de publicidade.

Nas cidades, a prática da coleta seletiva se espacializa através de diferentes modalidades. A coleta domiciliar (porta-a-porta), realizada por prefeituras, empresas particulares e/ou por catadores percorre o espaço urbano rua a rua, alcançando os estabelecimentos residenciais e comerciais individualmente, nem sempre na sua totalidade. Já os Pontos de Entrega Voluntária (PEV), outra modalidade, se concretiza por meio de pontos locados em lugares estratégicos da cidade, onde a população deve levar o resíduo produzido. 

Coleta Seletiva Domiciliar. Os resíduos sólidos são recolhidos porta a porta nas cidades
Coleta Seletiva através de PEV. Os cidadãos entregam os seus resíduos em pontos estratégicos

A primeira modalidade resulta em maior adesão da comunidade devido à comodidade gerada para a população, porém os custos são elevados, e caso não haja uma política municipal de gestão, ocorrem muitos conflitos com catadores independentes. Esta coleta restringe-se aos RSU. Já a segunda modalidade necessita a participação e cooperação da população, que precisa entregar os resíduos nos pontos estabelecidos, podendo resultar em um percentual menor de adesão.

Os municípios podem conciliar mais de um método para realizar a coleta seletiva, e em ambos trabalhar junto às organizações de catadores. Segundo a Pesquisa Ciclosoft, realizada em 2014 pelo CEMPRE [6], cerca de 28 milhões de brasileiros (13%) possuem acesso a programas de coleta seletiva. Das 927 cidades com programas pesquisadas, em 80% delas adota-se o modelo porta-a-porta, em 45% existem postos de entrega voluntária, e em 76% o sistema de coleta seletiva possui parceria com cooperativas de catadores.

O material que é arrecadado e triado na coleta seletiva – pelos diferentes agentes – é negociado em diversos destinos. Para realizar a venda destes materiais no mercado, faz-se necessária a triagem do que é recolhido na coleta seletiva em espaços físicos apropriados. Entretanto, atualmente somente 10% dos catadores estão bem organizados, sem dependência de intermediários – constituídos em cooperativas e trabalhando em galpões mais equipados e com melhor infraestrutura [6].

A grande maioria trabalha de forma não organizada e sem condições de higiene e segurança. Os espaços de trabalho são inadequados e quase sempre em estado de miserabilidade. Os galpões onde os catadores organizam e separam os resíduos arrecadados são ambientes mórbidos – apertados, com falta de espaço para os equipamentos de trabalho, iluminação e ventilação insuficientes, inexistência de higienização – onde as condições de habitabilidade são mínimas. São fatores que influenciam diretamente na produtividade e saúde dos trabalhadores, mas que são ignorados e desconhecidos por aqueles que gerenciam estes espaços.

As condições de trabalho em galpões de triagem de resíduos são precárias. Image © Arthur Eduardo Becker Lins

 A arquitetura não é suficientemente reconhecida na problemática da reciclagem do lixo, e muitas vezes até menosprezada a sua importância em face das necessidades mais emergentes dos catadores [5]. Praticamente inexistem projetos para estes espaços. Tudo isso acaba refletindo no espaço da cidade, e os espaços mal projetados acabam refletindo-se nas relações sociais e de produção daqueles que trabalham com a catação e triagem de RSU.

A atividade de compostagem e recuperação de resíduos orgânicos é igualmente menosprezada nas cidades. O reaproveitamento da fração orgânica poderia acontecer em áreas próximas à população, ampliando locais de compostagem, inclusive com a previsão de áreas rururbanas pelos Planos Diretores, fomentando a prática da agricultura urbana.

Neste viés, é cada vez mais necessário promover a Gestão Integrada de Resíduos Sólidos Urbanos no território, incentivando o gerenciamento em escala regional, de modo a superar os limites geográficos dos municípios. A formalização de consórcios intermunicipais é um dos meios de se viabilizar esta integração.

A articulação em rede das cooperativas e associações de catadores, por exemplo, proporcionaria maior eficiência deste serviço tanto no âmbito urbano quanto regional, além de garantir maior segurança e benefícios aos trabalhadores. Igualmente, o compartilhamento de equipamentos em nível regional se reflete em um recurso eficaz tanto do ponto de vista administrativo quanto da organização do espaço, onde cada município assume diferentes responsabilidades, dentro de sua capacidade e limitações. Uma infraestrutura adequada e devidamente organizada no território minimiza os custos para o poder público e consequentemente reduz o manejo irregular dos resíduos nas cidades em questão. 

NOTAS
[1] WALDMAN, Maurício. Lixo: cenários e desafios: abordagens básicas para entender os resíduos sólidos. São Paulo: Corte, 2010.
[2] EIGENHEER, Emílio Maciel. Lixo, a Limpeza Urbana através dos tempos. Porto Alegre: Gráfica Palloti, 2009. [3] – IBGE 2008.
[3] IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Ministério das Cidades, Ministério do Planejamento, 2008.
[4] BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
[5] FUÃO, F. Fernando; SCHAAN, Fernanda; RAIMANN, Michelle; MELLO, Bruno; BERNADELI, Camila. Unidades de triagem: reciclagem para a vida. In: Arqtexto, (UFRGS), v. VIII, p. 101-130, Porto Alegre: 2006.
[6] CEMPRE: Compromisso Empresarial para a Reciclagem (www.cempre.org.br).

Arthur Eduardo Becker Lins é Arquiteto e Urbanista em Florianópolis/SC. Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor do Grupo Uniasselvi em disciplinas de atelier de projeto e plataforma BIM.

Sobre este autor
Cita: Arthur Eduardo Becker Lins. "Brasil, resíduos e as cidades: desigualdades sociais e gestão desintegrada / Arthur Eduardo Becker Lins" 25 Mar 2016. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/784351/brasil-residuos-e-as-cidades-desigualdades-sociais-e-gestao-desintegrada-arthur-eduardo-becker-lins> ISSN 0719-8906

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