Dicionário Razoado da Arquitetura Francesa: Prefácio [Parte II/II] / Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc

As convicções isoladas, fortes como sejam, não podem fazer uma revolução nas artes. Se hoje em dia nós procuramos reatar aqueles fios quebrados, apanhar num passado que nos pertence em propriedade os elementos de uma arte contemporânea, que não seja em prol do gosto de tal ou tal artista ou de uma confraria; nós não estamos ao contrário mais que dos instrumentos dóceis dos gostos e das ideias de nosso tempo, e é assim por isso que temos fé em nossos estudos e que a descoragem não nos alcançará. Não somos nós que redirecionamos as artes da nossa época, é nossa época que nos arrasta..... Para onde? Quem sabe! É preciso ao menos que nós preenchamos do nosso melhor a tarefa que nos é imposta pelas tendências do tempo em que vivemos. Esses esforços, é verdade, não podem ser mais que limitados, já que a vida do homem não é bastante longa para permitir ao arquiteto abraçar um conjunto de trabalhos ao mesmo tempo intelectuais e materiais; o arquiteto não é nem pode ser mais que uma parte de um todo: ele começa aquilo que outros conquistaram, ou termina aquilo que outros começaram; ele não saberia então trabalhar em isolamento, já que sua obra não lhe pertence em propriedade, como o quadro ao pintor, o poema ao poeta. O arquiteto que pretenda impor sozinho uma arte a toda sua época fará um ato de insigne tolice.

Ao estudar a arquitetura da idade média, ao buscar difundir esse estudo, devemos declarar altamente que nossa meta não é fazer retrogradar os artistas, fornecer-lhes os elementos de uma arte olvidada, para que sejam retomados tais quais, e aplicados sem razão aos edifícios do século XIX; essa extravagância pode nos ser reprochada, mas felizmente ela jamais foi a meta de nossas pesquisas, a consequência de nossos princípios. Poderíamos fazer as cópias mais ou menos felizes dos edifícios anteriores ao século XVI; essas tentativas não devem ser consideradas mais que como ensaios destinados a recuperar os elementos de uma arte perdida, não como o resultado ao qual deve tender nossa arquitetura moderna. Se consideramos o estudo da arquitetura da idade média como útil, e podemos fomentar pouco a pouco uma feliz revolução nas artes, não é seguramente para obter obras sem originalidade, sem estilo, para ver reproduzir sem escolha, e como uma forma muda, monumentos notáveis sobretudo por causa do princípio que os ergueu; mas é ao contrário para que esse princípio seja conhecido, e que possa dar frutos hoje como produziu durante os séculos XII e XIII. Supondo que um arquiteto daquelas épocas reaparecesse entre nós, com suas fórmulas e princípios aos quais ele obedecia a seu tempo, e que ele pudesse ser iniciado a nossas ideias modernas, se colocássemos a sua disposição os aperfeiçoamentos aportados na indústria, ele não construiria um edifício do tempo de Philippe-Auguste ou de saint Louis, porque ele falsearia a primeira lei de sua arte, que é de se ajustar às necessidades e costumes do momentos, de ser racional. Jamais provavelmente recursos tão fecundos foram oferecidos aos arquitetos: os executantes são numerosos, inteligentes e hábeis com a mão; a indústria chegou a um grau de potência que nunca havia alcançado. O que falta a tudo isso, é uma alma; aquele princípio vivificante que rende toda obra de arte respeitável, que faz que o artista possa opor a razão às fantasias amiúde ridículas dos particulares ou das autoridades pouco competentes, muito dispostos a considerar a arte como uma superfluidade, um assunto de capricho ou moda. Para que o artista respeite sua obra, é preciso que ela haja sido concebida com a convicção íntima que essa obra emana de um princípio verdadeiro, baseado sobre as regras do bom senso: o gosto, frequentemente, não é outra coisa, e para o artista seja respeitado ele mesmo, é preciso que essa convicção não possa ser posta em dúvida: ora, como supor que se respeitará o artista que, submisso a todas as puerilidades de um amador fantasioso, construirá para ele, seguindo o capricho do momento, uma mansão chinesa, árabe, gótica, ou da renascença? Que devém o artista em meio a tudo isso? Não é o alfaiate que nos veste seguindo nossa fantasia, mas que não é nada por si mesmo, não tem nem pode ter nem preferência, nem gosto próprio, nem aquilo que constitui antes de tudo o artista criador, a iniciativa? Mas o estudo de uma arquitetura em que a forma é submissa a um princípio, como o corpo é submisso à inteligência, para não restar estéril, não saberia ser incompleto ou superficial. Nós não tememos em dizer, isso que muito retardou os desenvolvimentos da renascença de nossa arquitetura nacional, renascença da que se deve tirar proveito para o futuro, é o zelo mal dirigido, o conhecimento imperfeito de uma arte na qual muitos não veem mais que uma forma original e sedutora sem apreciar o fundo. Vimos surgir assim pálidas cópias de um corpo cuja alma é ausente. Os arqueólogos, ao descrever e classificar as formas, não eram sempre arquitetos práticos, nem podiam falar mais que daquilo que golpeava seus olhos; mas o conhecimento do porquê deviam necessariamente faltar a essas classificações puramente materiais, e o bom senso público é encontrado justamente chocado à vista de reproduções de uma arte da que não se compreendia a razão de ser, que parecia um jogo bom no máximo para entreter alguns espíritos curiosos de velharias, mas com a prática da qual deveria bem cuidar de se engajar. É que em efeito, se há uma arte séria que deva sempre ser escrava da razão e do bom senso, é a arquitetura. Suas leis fundamentais são as mesmas em todos os países e em todos os tempos: a primeira condição do gosto em arquitetura, é de ser submisso a essas leis; e os artistas que, após haver condenado as imitações contemporâneas de templos romanos nos quais não se podia recuperar nem o sopro inspirador que as ergueu, nem os pontos de conexão com nossos hábitos e nossas necessidades, estão postos a construir esses pastiches de formas romanas ou góticas, sem render contas dos motivos que fizeram adotar essas formas, não fazem mais que perpetuar de uma maneira muito grosseira os erros contra os quais eles eram erguidos.

Há duas coisas que devem ser levadas em conta antes de tudo no estudo de uma arte, é o conhecimento do princípio criador, e a escolha na obra criada. Ora, o princípio da arquitetura francesa ao momento em que ela se desenvolve com uma grande energia, do século XII ao XIII, era a submissão constante da forma aos costumes, às ideias do momento, a harmonia entre a vestimenta e o corpo, o progresso incessante, o contrário da imobilidade; a aplicação desse princípio não saberia fazer retrogradar a arte, nem mesmo lhe deixar estacionária. Todos os monumentos produzidos pela idade média seriam irreprocháveis, não deveriam pois ser hoje servilmente copiados, se é erguido um edifício novo; isso não é mais que uma linguagem que é preciso aprender a se servir para expressar seu pensamento, mas não para repetir o que outros disseram. E nas restaurações, mesmo quando não se trata mais que de reproduzir ou de reparar as partes destruídas ou alteradas, é de uma grandíssima importância que se renda conta das causas que fizeram adotar ou modificar tal ou tal disposição primitiva, aplicar tal ou tal forma; as regras gerais deixam o arquiteto sem recursos diante de numerosas exceções que se apresentam a cada passo, se ele não está permeado pelo espírito que dirigiu os antigos construtores.

Encontrar-se-á frequentemente neste labor exemplos que acusam a ignorância, a incerteza, os titubeios, as exagerações de certos artistas; mas, queira bem notar, aí se encontrará assim a influência, o abuso mesmo por vezes de um princípio verdadeiro, um método ao mesmo tempo que uma grande liberdade individual, a unidade do estilo, a harmonia no emprego das formas, o instinto das proporções, todas as qualidades que constituem uma arte, quer se aplique à mais humilde mansão de paisano ou à mais rica catedral, como ao palácio do soberano. Em efeito, uma civilização não pode pretender possuir uma arte se essa arte não está penetrada em tudo, se ela não faz sentir sua presença nas obras mais vulgares. Ora, de todos os países ocidentais da Europa, a França é ainda aquele em que essa feliz faculdade é mais bem conservada, já que é aquele que a possuiu em mais alto grau depois da decadência romana. Em todos os tempos a França impôs suas artes e seus modos a uma grande parte do continente europeu: ela tem ensaiado em vão desde a renascença se fazer italiana, alemã, espanhola, grega; seu instinto, o gosto nativo que reside em todas as classes do país, sempre retorna a seu gênio próprio realçando-a após os mais graves erros. É bom, cremos, reconhecê-lo, já que por muito tempo os artistas despreciaram esse sentimento e não souberam aproveitá-lo. Desde o reinado de Louis XIV sobretudo, os artistas fizeram ou pretenderam fazer um corpo isolado no país, sorte de aristocracia estrangeira, despreciando aqueles instintos das massas. Ao separar-se do povo, eles não foram mais compreendidos, perderam toda influência, e não dependeu deles que a barbárie chegasse sem retorno, o que restasse fora de sua esfera. A inferioridade da execução nas obras dos dois últimos séculos comparativamente aos séculos precedentes nos fornece a prova. A arquitetura sobretudo, que não pode produzir-se mais que através da ajuda de uma grande quantidade de obreiros de toda classe, não apresentava mais ao fim do século XVIII, que uma execução abastardada, mole, pobre e desprovida de estilo, ao ponto de fazer sentir falta das últimas produções do Baixo-Império. A realeza de Louis XIV, ao se meter em lugar de qualquer coisa na França, ao querer ser o princípio de tudo, absorvia sem frutos as forças vivas do país, mais ainda provavelmente nas artes que na política; e o artista necessita, para produzir, conservar sua independência. O poder feudal não era certamente protetor da liberdade material; os reis, os senhores seculares, como os bispos e abades, não compreendiam nem podiam compreender o que apelamos como direitos políticos do povo: eles foram negligenciados em nosso tempo, e o que foi feito no século XII! Mas esses poderes separados, rivais mesmo frequentemente, deixavam à população inteligente e laboriosa sua liberdade de comportamento. As artes pertenciam ao povo, e ninguém, entre as classes superiores, sonhava em lhes dirigir, em lhes fazer desviar de sua via. Quando as artes não foram mais exclusivamente praticadas pelo clero regular, e eles deixaram os monastérios para se repartir em centenas de corporações laicas, não parece que um só bispo tenha se levantado contra esse movimento natural; e como supor além disso que os chefes da Igreja, que haviam tão poderosamente e com uma tão laboriosa perseverança ajudado à civilização cristã, houvessem detido um movimento que indicava melhor que todo outro sintoma que a civilização penetrava nas classes médias e inferiores? Mas as artes, ao se difundir fora dos conventos, arrastavam com elas ideias de emancipação, de liberdade intelectual, que deveram vivamente seduzir os povoados ávidos de aprender, de viver, de agir, e de exprimir seus gostos e suas tendências. Era doravante sobre a pedra e a madeira, em pinturas e vitrais, que esses povoados iam imprimir seus desejos, suas esperanças; era aí que sem constrição eles podiam protestar silenciosamente contra o abuso da força. A partir do século XII, esse protesto não cessa de se produzir em todas as obras de arte que decoram nossos edifícios da idade média; ela começa com gravidade, ela se apoia sobre os textos sacros; ela devém satírica ao fim do século XIII, e finda o século XV com a caricatura. Qualquer que seja sua forma, ela é sempre franca, livre, crua mesmo por vezes. Com que complacência os artistas dessas épocas se estendiam em suas obras sobre o triunfo dos fracos, sobre a queda dos poderosos! Que artista do tempo de Louis XIV haveria ousado em colocar um rei no inferno ao lado de um avaro, de um homicida? Que pintor ou escultor de século XIII haveria colocado um rei nas nuvens, contornado por uma auréola, glorificado como um Deus, segurando o raio, e tendo a seus pés os poderosos do século? É possível admitir, quando se estuda nossas grandes catedrais, nossos châteaux e nossas habitações da idade média, que uma outra vontade que aquela do artista tenha influenciado sobre a forma de sua arquitetura, sobre o sistema adotado em sua decoração ou sua construção? A unidade que reina nessas concepções, a perfeita concordância dos detalhes ao conjunto, a harmonia de todas as partes, não demonstra uma só vontade em presidir o erguimento dessas obras de arte? Essa vontade pode ser outra que aquela do artista? E não vemos, a propósito das discussões que tiveram lugar sob Louis XIV, quando foi questão terminar o Louvre, que o rei, o superintendente da construção, Colbert, e toda a corte deram seus avisos, ocuparam-se de ordres, de corniches, e de tudo que toca à arte, e findaram por confiar a obra a um homem que não era arquiteto, e não sabia mais que fazer um dispendioso revestimento, cujo menor defeito é não está atado em fação alguma ao monumento e de render inútil um quarto de sua superfície? Aprecia-se uma civilização por suas artes, já que as artes são a enérgica expressão das ideias de uma época, e não há arte sem a independência do artista.

O estudo das artes da idade média é uma mina inesgotável, plena de ideias originais, audazes, que mantem a imaginação desvelada; esse estudo obriga a buscar sem cessar, e por consequência ele desenvolve poderosamente a inteligência do artista. A arquitetura, desde o século XII até a renascença, não se deixou vencer por dificuldades, ela as aborda todas, francamente; não estando jamais no limite dos recursos, ela não vai sem embargo extraí-los que num princípio verdadeiro. Ela abusa inclusive muito frequentemente desse hábito de superar dificuldades entre as quais ela ama mover-se. Que defeito! Podemos reprochá-la? Ele deve-se à natureza do espírito de nosso país, a seus progressos e suas conquistas dos que temos proveito, ao meio dos quais esse espírito se desenvolve. Ele denota os esforços intelectuais de onde a civilização moderna saiu; e a civilização moderna está longe de ser simples. Se a comparamos com a civilização pagã, quantas engrenagens novas não encontraremos sobrecarregadas: por que então querer retornar nas artes às formas simples quando nossa civilização, cujas artes não são mais que sua marca, é tão complexa? Tão admirável que seja a arte grega, sua lacunas são muito numerosas para que na prática ela possa ser aplicada a nossos costumes. O princípio que a dirige é muito estranho à civilização moderna para inspirar e sustentar nossos artistas modernos: por que então não habituar nossos espíritos a esses férteis labores dos séculos de onde saímos? Temos visto muito frequentemente, que o que falta sobretudo às concepções modernas em arquitetura, é a flexibilidade, aquela soltura de uma arte que vive numa sociedade que ela conhece; nossa arquitetura incomoda ou é incomodada, fora de seu século, ou complacente até à baixeza, até ao desprezo do bom senso. Se então recomendamos o estudo das artes dos séculos passados antes da época em que abandonaram sua via natural, não é que desejamos ver levantar entre nós hoje em dia mansões e palácios de século XIII, é que consideramos que esse estudo possa render aos arquitetos aquela flexibilidade, aquele hábito de razoar, de aplicar a toda coisa um princípio verdadeiro, aquela originalidade nativa e aquela independência que se deve ao gênio de nosso país.

Se não tivermos feito mais que nascer o desejo em nossos leitores de aprofundar uma arte há muito tempo olvidada, se tivermos contribuído somente em fazer amar e respeitar as obras que são a vivente expressão de nosso progresso durante vários séculos, creremos nossa tarefa completa; e se frágeis que sejam os resultados de nossos esforços, eles farão conhecer, esperamos pelo menos, que entre a antiguidade e nosso século, está feito um trabalho imenso dos que podemos tirar proveito, se sabemos recolher e eleger os frutos.

Referência:
Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, “Préface”, em seu Dictionnaire Raisonné de L'Architecture Française du XIe au XVe siècle, Tomo I, pp.VIII-XV, 1854-1868.

Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi

* Releia a primeira parte do artigo:

Dicionário Razoado da Arquitetura Francesa: Prefácio [Parte I/II] / Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Dicionário Razoado da Arquitetura Francesa: Prefácio [Parte II/II] / Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc" 23 Abr 2015. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/765284/dicionario-razoado-da-arquitetura-francesa-prefacio-parte-ii-ii-eugene-emmanuel-viollet-le-duc> ISSN 0719-8906

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