Projetistas não entendem de ciência (e isso é perigoso)

Os projetistas hoje em dia parecem amar as novas idéias oriundas da ciência. Eles as assimilam como analogias, metáforas e, em alguns casos, ferramentas para gerar novos projetos surpreendentes. (Algoritmos de informática e formas virtuosas são exemplos disto). No entanto, metáforas sobre a complexidade da cidade e suas estruturas adaptáveis não são a mesma coisa que a complexidade real da cidade.

O problema é que esta confusão pode causar resultados desastrosos. Pode inclusive contribuir para o lento colapso de toda uma civilização. Podemos pensar que a diferença entre metáfora e realidade é tão óbvia que nem vale a pela mencionar. Mas ainda assim tal confusão permeia o mundo atual do design e arquitetura, e se espalha a partir daí para a cultura geral. Ela desempenha um papel fundamental na expectativa delirante de que as metáforas poderiam dar origem a realidade.

Psiquiatras falam disso como sendo uma confusão conhecida como "pensamento mágico": se nossos símbolos forem bons o suficiente, então a realidade os acompanhará. Nas mãos de projetistas isto se torna algo muito perigoso.

Mais após o intervalo...

Guggenheim Museum de Ghery em Bilbao inspirou outras cidades espanholas a terem seus próprios “Guggenheim." Photo via Flickr User CC Txanoduna

Vemos isso nos decadentes edifícios icônicos que tinhamos certeza que melhorariam o desempenho econômico, ou a vitalidade urbana, ou aumentariam a qualidade de vida, exclusivamente devido a uma imagem futurista. Vemos isso também nas muitas características sustentáveis 'simbólicas' (turbinas eólicas, etc.) de outros inovadores edifícios cuja atual performance mostra-se, lamentavelmente, inferior a pré-estabelecida.

Do ponto de vista metodológico, este fenômeno é um problema projetual importante e interessante. Reconhecemos isso como uma fraqueza fundamental do conhecimento humano e precisamos ajustar nossa metodologia projetual neste sentido. Neste processo, as metodologias e conhecimentos de uma ciência humana apodem ser inestimáveis. Distinguir a complexidade metafórica da física esclarece esta situação confusa e insustentável, além de poder nos ajudar com isso (o objetivo final de qualquer ciência e qualquer filosofia).

Os temas urbanismo, arquitetura, design de produto, design ambiental, sustentabilidade e complexidade na ciência estão todos fortemente inter-relacionados. O ser humano "projeta" com o mesmo objetivo que a natureza - ambos visam aumentar a complexidade de um sistema para que este funcione 'melhor'. 'Melhor' no sentido de mais estável, mais diverso, e mais capaz de se manter em um estado organizado - como a saúde de um organismo. Aprendemos com as estruturas e processos com os quais a natureza sempre projetou para que, assim, possamos também aprender a criar e a sustentar estes estados mais organizados.

Alguns cientistas evitam a noção de que a natureza "procura" por algo. Mas isso levanta a questão: não somos parte da natureza, e não "procuramos" por algo nos nossos próprios projetos, e em outras partes da nossa vida (por exemplo, buscando melhorias na nossa saúde e bem estar)? Deveríamos então aceitar a "busca" como uma característica de ao menos uma parcela da natureza. Caso contrário negaremos a utilidade da tradição científica como uma ferramenta relevante para os projetistas. (De fato, nos colocamos em uma linha filosófica bastante perigosa: tornando a própria ideia de inteligência - humana ou não - sem sentido!)

Comecemos pela premissa de que estamos aqui, e que precisamos entender nossa própria situação e determinar nossas metas. Então podemos começar a nos questiona qual é a abordagem mais inteligente a ser tomada. Como podemos aprender a partir da inteligência - da 'intencionalidade', nesse sentido - dos sistemas naturais.

Calçada dos Gigantes na Irlanda do Norte. Um bom exemplo de "emergência", quando as estruturas complexas são criadas por processos naturais. Imagens por Stefano Viola e Horia Bogdan via shutterstock.com

Isso é agora uma questão urgente, pois grande parte da produção humana - especialmente a partir da industrialização moderna que nos permitiu realizações de maior impacto - é intencional no sentido errado. Ao invés de construir complexos sistemas que funcionem melhor dentro dos sistemas naturais que lhes dão suporte, eles adquirem uma complexidade frágil e não resiliente que funciona contra sua natureza. Desse modo, sistemas humanos de vida, movimento, produção e economias dependem cada vez mais do consumo de energia para minimamente manterem-se funcionando no mesmo ritmo de antes, e nos preparando para um cenário catastrófico inevitável.

Ao mesmo tempo, o projeto de nosso meio ambiente parece ser motivado não tanto por uma inteligência intencional como as imagens que são obstinadamente, mesmo religiosamente, aderidas, e que mostram que aquelas tipologias são inapropriadas para os complexos sistemas adaptativos. Como podemos consertar tal situação precária?

É necessária uma mudança de paradigma no modo como percebemos e agimos sobre os sistemas que fazem nosso planeta funcionar. Estes sistemas são complexos e adaptáveis - isto é, seus elementos são mutualmente coadaptados e co-evoluídos, formando assim um padrão extremamente complexo. Mesmo assim, tal padrão pode ser compreendido cientificamente e explorado por designers e arquitetos, seguindo uma nova compreensão do fenômeno da complexidade.

Este esforço é parte da crescente, mas historicamente recente, disciplina da "ciência da complexidade" - a junção de surpreendentes resultados em tópicos, como fractais, atratores incomuns, emergência e padrões algoritmicos. O que estes campos de investigação têm em comum é a investigação dos sistemas quando uma série de elementos está interagindo. Sistemas complexos tomam novas características, muito diferentes daquelas que tem apenas poucos elementos - e são geralmente impossíveis de serem previstas. Eles têm propriedades muito semelhantes aos sistemas vivos (o que não é uma coincidência).

Para projetistas e planejadores ambientais, conhecer este fenômeno de "emergência" é fundamental para acertar as coisas. Cidades, por exemplo, são certamente sistemas adaptativos complexos, e por isso há vários outros tipos de ambientes humanos. Se estamos tentando resolver os problemas das cidades, então precisamos saber o tipo de problema que estamos lidando. Se tratarmos isso como uma busca pela simplicidade, ou talvez um desafio artístico de visualização gráfica, quando é na verdade um problema de complexidade organizada obedecendo suas próprias regras de inteligência evolutiva, então é provável que o resultado seja uma bagunça. E ainda assim, é exatamente isso que arquitetos e planejadores têm feito nas últimas décadas.

Rocinha, a favela in Rio de Janeiro - a "Self-generated city — disrespected by those designers who wish to impose their own will on cities, and by governments who want total control — yet representing a natural phenomenon as basic as life itself." Image © Victoriano Junior, via shutterstock.com

A complexidade científica estava aflorando quando, em meados do século XX, o tecido vivo adaptável de nossas cidades foi demolido e substituído por um modelo muito mais elementar e mecânico de projeto. O resultado é uma máquina simples, intencionalmente distante da complexidade natural. Este drástico processo reducionista está repleto de analogias poéticas complexas, as quais convenceram a sociedade a implementar modelos crus que substituíram uma realidade amplamente complexa. Desde então, a disciplina científica avançou mais que o esperado e começou a trazer à tona segredos antes impenetráveis da natureza - as maravilhas da evolução, o comportamento dos sistemas terrestres, e até mesmo o funcionamento de processos genéticos. Para geógrafos e planejadores, o fenômeno das cidades se tornou mais compreensível também.

Muitos projetista ainda desconhecem estas revelações. Para eles, o projeto trata essencialmente da transmissão de significados, simbolismos e metáforas expressivas. Outros fingem adequar-se a sua época mas não se importam em gerar complexidade estrutural adaptável alguma - continuam usando metáforas modistas para construir formas urbanas e arquitetônicas disfuncionais, não-adaptáveis. Esta é uma herança distorcida da arquitetura e do design - em descompasso com a compreensão dos sistemas e suas propriedades emergentes - que bate de frente com a herança e o patrimônio científico.

Os artistas em algum ponto tornaram-se engrenagens especializadas na mesma máquina industrial mercantilizada. Seu trabalho era polvilhar "sentido" (metáfora, analogia, caráter expressivo) para estruturas industriais, e dar-lhes um aceitável, ou ainda melhor, um mercadologicamente desejável caráter estético. As coisas realmente decolaram quando os projetos começaram as ser associados com o fascínio causado pelas belas artes. Você pode querer protestar aqui, e perguntar: não é nosso trabalho simbolizar o espírito cientifico de nossa época e a nova visão cosmológica da natureza? Sim, mas não como uma simples camada de açúcar, frágil, uma 'tematização' produtiva bagunçada - o significado deveria ser incorporado nos objetivos que atingimos com nossos projetos, e do modo como eles acomodam e melhoram a vida humana.

A boa arquitetura não confunde estes dois aspectos da vida e da arte de uma maneira mutuamente destrutiva, mas os utiliza para servir um ao outro. Quando inserimos um "tema" metafórico no projeto, após alguns anos este começa a parecer ridículo. Isso é porque a imagem do lado externo não tem relação inerente ao interno - é pouco mais que uma camada superficial. E funciona muito mal. Portanto, o caso dos outrora futuristas computadores pessoais, a expressão de uma outra era que flerta com a tecnologia, perece agora absurda. As peles futuristas de famosos museus de arte e salas de concerto já estão antigas e datadas, de modo que agora os únicos clientes restantes para tal estilo são os países de terceiro mundo que apenas seguem as tendências arquitetônicas ocidentais.

Se, ao contrário, deixarmos a expressão do objeto crescer a partir de uma relação complexa com seu ambiente e de como ele serve aos seres humanos, algo extraordinário acontece: ela assume um tipo de qualidade "clássica". O projeto parece quase ter sido concebido desta forma, e então dizemos: "é um clássico". É atemporal. Será valorizado por gerações futuras como nós valorizamos (ou deveríamos) as maiores conquistas das gerações anteriores.

Temple wat Chaiwatthanaram of Ayuthaya Province Thailand. Image © SasinT via shutterstock.com

Infelizmente, a maior parte das empresas de projeto atuais não trabalham por este objetivo. Em vez disso, buscam atrair atenção através da novidade e da "tematização". Elas podem aproximar-se das questões discutidas aqui, mas não compreendem a profunda mudança metodológica necessária. Embora eles sejam especialistas em vender incrivelmente seus trabalhos para competir por maiores projetos e em praticar a persuasão para impressionar clientes, eles continuam fazendo negócios como os de costume.

Um bom arquiteto té responsável tanto pela implementação quando pela adaptação. Não confunda "intencionalidade" em um sistema em adaptação - um sinal de inteligência - com as intenções de um projetista que ignora estas adaptações. Este último é sinal de uma ação não inteligente. Vemos isso cada vez mais em produtos baseados somente nas imagens. Cidades satélites e periferias disfuncionais foram construídas desta maneira.

O projeto "intencionalmente" aumenta a complexidade de modo a fazer o sistema funcionar da melhor forma possível, não somente por sua função explícita, mas especialmente como ele é incorporado por ambos dento de seu contexto e meio ambiente. O trabalho une várias coisas - como uma cidade o faz - assim, o projeto tem que acolher e incentivar a conectividade dentro da diversidade. O intuito do projeto, em ambiente tão complexo, não é impôr uma ordem simples a partir de cima, mas ajudar a orquestrar a diversidade, utilizando suas próprias e latentes dinâmicas, em uma ordem mais espontânea ou mais padronizada. Quando ele tem sucesso, o reconhecemos como uma cidade amada que nos nutre de diversas formas.

Um modelo de complexidade organizada proposta por um de nós em 1997 (e reeditado como o Capítulo 5 do nosso livro A Theory of Architecture) encontra um paralelo marcante no "Integrated Information Model for Consciousness" mais tarde desenvolvido pelo neurocientista Giulio Tononi. Sua essência é que sistemas complexos desenvolvem uma conectividade integrada entre seus componentes, para que a sua saída de informações seja alta, mas coerente. Essa coerência é muitas vezes confundida com simplicidade, e esta é a fonte de grande parte da confusão que abordamos neste ensaio.

Perceba que a "complexidade" é muito diferente de "complicação". Alguns urbanistas pós-modernos parecem ansiosos para confundir estas duas idéias muito diferentes. Você não consegue um sistema quando acumula fragmentos desconexos, porque não há nenhuma integração. Em vez disso, um sistema complexo surge através de um processo de trabalho que organiza elementos diferentes, e muitas vezes contraditórios, de alguma maneira, apesar das suas diferenças. Intencionalidade na construção da complexidade deixa de lado toda "complicação" irrelevante e alheia, assim como nos sistemas naturais. Ela não "racionaliza" os processos para um único objetivo, apenas desenvolve o sistema para incluir os vários ciclos conectados, tanto grandes quanto pequenos, que interagem de alguma forma essencial.

Drawings of Denver Central Library by Michael Graves, a proponent of postmodernist architecture. Image © Michael Graves

Esse processo é muitas vezes de uma dinâmica sútil, tal qual um conjunto de regras adaptativas aparentemente simples as quais são seguidas por cada um de seus elementos. Por que as pessoas caminhando por um parque se movem ao longo de uma linha, e não por outras? Por que uma loja tem vários clientes e outras, tão boas quanto, falham? Podemos descobrir e documentar os padrões sócio-geométricos que as pessoas seguem como fazem os cálculos humanos simples que todos nós fazemos: cabeça na direção do seu destino, evitar obstruções, parar somente se ver algo interessante, e assim por diante. Se entendermos esses padrões, podemos alocar nossa pavimentação de forma mais eficaz, ou instalar nossa loja em um local mais promissor.

Outros padrões de organização complexa podem ser documentados e colocados em prática em nossos projetos. Os habitantes humanos mesmo das cidades mais diversificadas são, e continuam a ser, parte de um todo e emergente complexo. Seus comportamentos e interações complexas não devem ser reduzidos para a cidade, atuando como uma máquina rude e ainda assim gigante, pois isso danificaria (e danifica) seriamente os sistemas vivos. Portanto, os elementos de um ecossistema também têm uma história, assim como outros sistemas naturais. Esta é a natureza da complexidade - que tem uma integridade inerente ou qualidade de sistemas completos para tal. Os elementos que estamos considerando possuem o que o físico David Bohm chamou de "ordem implícita" - eles têm uma relação muito mais profunda dentro de um sistema completo que antecede a nossa observação.

Estamos diante de um problema de percepção, portanto. A razão pela qual a maior parte das pessoas pensa em complexidade como sendo mais parecida com "complicação" - um conjunto confuso de peças independentes - é porque somos muito bons em ver fragmentos particulares do mundo. Esta visão tem suas vantagens evolutivas - podemos ver apenas uma parte do que acontece em um determinado ponto e em um determinado momento, e omitir todas as interações que anteriormente uniram os pedaços. Embora essa capacidade deu aos primeiros seres humanos uma vantagem na tomada rápida de decisões, isso nos prejudica quando se confrontam os sistemas complexos que agora somos capazes de construir.

Tendemos a esquecer que essa forma de olhar o mundo e suas interações complexas é apenas uma abstração, útil para alguns propósitos, mas não para projetar. Isto porque, ao projetar, estamos trabalhando com sistemas complexos de ordens implícitas. A Terra e os sistemas vivos manifestam intencionalidade de projeto (no sentido de organizar a sua complexidade) e inteligência intrínseca. Quando tratamos esses sistemas como problemas de simplicidade, não conseguimos entender os reais sistemas complexos que estamos criando, perturbando, e muitas vezes destruindo - um bairro, uma cidade, uma ecologia, a economia humana, ou um planeta vivo. E assim, hoje, encontramo-nos com muitos problemas.

Michael Mehaffy é urbanista e pensador crítico da complexidade e do ambiente construído. Atualmente, ele é Sir David Anderson Fellow na Universidade de Strathclyde, em Glasgow, associado na Universidade Estadual do Arizona, associado de pesquisa do Centro de Estrutura Ambiental do centro de pesquisa Chris Alexander fundado em 1967; e consultor estratégico em projetos internacionais , atualmente na Europa, América do Norte e América do Sul.

Nikos A. Salingaros é matemático e polímata conhecido por seu trabalho sobre a teoria urbana, teoria da arquitetura, teoria da complexidade, e filosofia do design. Salingaros publicou pesquisas em Álgebra, Física da Matemática, Campos Electromagnéticos, e da Fusão Termonuclear antes de voltar sua atenção para Arquitetura e Urbanismo. Ele ainda é professor de Matemática na University of Texas em San Antonio e também nas faculdades de arquitetura em universidades Itália, México, e Holanda.

Imagem da Rocinha no Rio de Janeiro, Templo Wat Chaiwatthanaram na Tailândia, e imagens da Calçada dos Gigantes na Irlanda do Norte (por Stefano Viola e Horia Bogdan) via shutterstock.com

Este artigo, por Michael Mehaffy e Nikos Salingaros, foi publicado originalmente em Metropolis Mag, como "Science for Designers: The Meaning of Complexity".

Sobre este autor
Cita: Michael Mehaffy & Nikos Salingaros . "Projetistas não entendem de ciência (e isso é perigoso)" [Designers Don't Get Science (And That's A Dangerous Thing)] 21 Jul 2013. ArchDaily Brasil. (Trad. Costa, Isabela) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-128927/projetistas-nao-entendem-de-ciencia-e-isso-e-perigoso> ISSN 0719-8906

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