A venda casada é um dos grandes problemas relativos ao direito do consumidor e costuma ser proibida na maioria das economias de mercado. Ela acontece quando o vendedor condiciona a comercialização de um produto ou serviço à compra de outro. No Brasil, o código de Defesa do Consumidor, no artigo, 39, inciso 1.º,condena expressamente tal artifício. Por sua vez, a Lei 12.529/2011, a qual estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência, em seu art. 36, inciso XVIII, estabelece que a venda casada constitui uma infração da ordem econômica.
Em uma pesquisa rápida pela internet é possível encontrar alguns exemplos familiares. Um dos mais citados é a proibição do consumo de pipocas ou outros alimentos não adquiridos no espaço do cinema. A prática recorrente de vender lanches atrelados a brinquedos e brindes também estaria em desacordo com os direitos dos consumidores, bem como a famosa consumação mínima exigida em vários bares e restaurantes. É possível ainda observar essa infração quando a concessionária vende um veículo e induz a contratação de um seguro do próprio estabelecimento ou do conveniado.
Todavia, é curioso que o caso mais recorrente, possivelmente o de valor mais expressivo e mais danoso ao consumidor e a toda sociedade, nunca seja lembrado. A exigência de número mínimo de vagas de garagem, presente na maioria dos planos diretores das cidades do Brasil, constitui uma das mais escandalosas vendas casadas que já deve ter existido na história do capitalismo. A única diferença para outros casos corriqueiros é que as vagas de garagem costumam ser uma exigência legal, enquanto pipocas ou brindes são artimanhas de empresas.
A norma não é uma jabuticaba brasileira. Conforme relata Donald Shoup no seu livro “O alto custo do estacionamento grátis” (sem tradução para o português), ainda em 1923, no estado de Ohio, na tentativa de tentar diminuir a pressão por vagas em vias públicas, passou-se a exigir que todo novo apartamento deveria disponibilizar um número mínimo de vagas de garagem a seus moradores.
Em 1939, Fresno, na Califórnia, foi a primeira cidade a expandir essa obrigatoriedade para além das moradias, quando passou a exigir vagas para hospitais e hotéis. Daí em diante, essa exigência foi ampliada para qualquer nova construção, como lojas e escritórios. Nas décadas seguintes, a obrigatoriedade se espalhou por outros centros urbanos e pelo resto do mundo.
A prática abusiva e a infração à ordem econômica são por demais evidentes. O consumidor ao comprar um apartamento para morar é obrigado a também adquirir um outro produto bem diferente, no caso, um espaço para guarda de veículos motorizados.
Assim, numa canetada, desconsideram-se todas as particularidades e preferências dos indivíduos. O cidadão prefere andar a pé, de metrô ou de bicicleta? Não importa, ele também será obrigado a adquirir a vaga para depósito de um bem que não lhe interessa. Não tem idade ou condições de dirigir? Não tem problema, talvez um dia a pessoa venha a obter carteira ou, quem sabe, seus descendentes ou um novo inquilino venha a utilizá-la. Faltam recursos para adquirir o imóvel encarecido por conta das vagas de garagem? Paciência! Alguns devem sacrificar seu direito à moradia para garantir o espaço sacrossanto ao bem inanimado.
E esse sacrifício não é mera figura de retórica. Em algumas cidades europeias, onde a oferta de garagem em apartamentos não é obrigatória, os cidadãos podem ter que desembolsar horrores caso queiram deixar seus bens motorizados guardados em segurança. Relatório publicado no Journal of the American Association constatou que essas normas encarecem de 6% a 16% nos custos de construção. Pesquisa do Victoria Transport Policy Institute encontrou aumento no preço de imóveis populares de 12% quando se oferta uma vaga de garagem e de 25% quando são oferecidas 2 vagas. No Brasil, as avaliações são de que uma vaga de garagem custe até 15% do valor do imóvel e pode encarecer as moradias em até 20%.
Para ficar mais claro o completo absurdo da regra, vale a pena imaginar outros cenários. Seria razoável que o estado, com o propósito de incentivar a música, a arte ou o esporte, obrigasse todas as residências a terem um ateliê artístico, um quarto acústico para instrumentos musicais ou um espaço para prática desportiva? É bem possível que tal medida tivesse um efeito positivo na formação de novos Nelsons Freires, Portinaris ou César Cielos. Talvez, até teríamos novas Raissas Leais e mais medalhas para comemorar nas Olímpiadas (ainda que o potencial no aprimoramento de muitas dessas atividades geralmente ocorra em espaços de uso coletivo).
Mas, infelizmente, esse provável ganho social seria em prejuízo de quem não tem interesse em desenvolver tais atividades, ou, ainda pior, de quem não tem recursos para comprar o imóvel encarecido por conta das benfeitorias exigidas. Só que, no caso das vagas de garagem, as consequências negativas são mais graves, pois, além de não haver ganhos sociais e de tornar o acesso à moradia mais custoso, a medida é um convite para que progressivamente cada vez mais pessoas queiram utilizar o carro como meio de transporte, agravando os problemas de poluição do ar, ruídos excessivos, tragédias no trânsito, congestionamentos, impermeabilização do solo ou acúmulos de resíduos.
Esse estímulo à aquisição de automóveis ocorre por vários motivos. Em primeiro lugar, as vagas de estacionamento contribuem para o espraiamento urbano. Estudo da evolução do espaço destinado a automóveis, em edifícios na cidade de São Paulo, constatou que, entre 1985 e 2010, o espaço de vagas de garagem, em edificações residenciais, chegou a ocupar entre 22,5% e 29,5% da área total construída e entre 41,5% e 53,8% do correspondente à área total privativa. Ou seja, em vários casos, o equivalente à metade dos espaços residenciais foi destinado à guarda de veículos ou promessa de guarda, já que muitas destas vagas ficam vazias. Tudo isso resulta em expansão da mancha urbana (ainda mais quando existem restrições à verticalização) e das distâncias a serem percorridas, o que prejudica deslocamentos não motorizados e aumenta a atratividade do automóvel.
Outro efeito correlato é a perda de densidade urbana. Pesquisa realizada em 12 cidades dos EUA identificou que um aumento de 10% no uso dos automóveis estava associado a um aumento de 2,5 m² na área de estacionamento por pessoa e a uma diminuição na densidade urbana de 1.700 pessoas/km². Ocorre que, quando os habitantes estão muito espalhados pelo território, isso traz implicações desastrosas para os custos do transporte coletivo, pois o índice de passageiros por quilômetro despenca, o que também acaba por favorecer ainda mais o uso dos automóveis.
Por fim, a exigência de vaga de garagem é um baita incentivo para que as pessoas adquiram um novo veículo. Estimativas apontam que uma vaga de garagem tende a ter um custo pelo menos igual ao de um carro básico zero quilômetro, de forma que, quando se vende o combo apartamento + depósito de veículo, o comprador já absorveu algo em torno de 50% dos custos relacionados à aquisição e guarda do automóvel. Para piorar, esse custo pode ser bem mais elevado, caso as garagens sejam subterrâneas ou em pavimentos superiores.
Portanto, é urgente que as cidades comecem a rever essa norma anacrônica. Enquanto proibir o consumo de pipoca alheia ao estabelecimento cinematográfico gera apenas pequenos incômodos, a obrigação de que todos comprem apartamento com garagem resulta numa cidade disfuncional, poluída, espraiada, excessivamente motorizada, com habitações mais caras, onerando especialmente os mais pobres e deixando milhares fora do mercado formal de moradia.
Via Caos Planejado.