Cidades com deficiências são aquelas que apresentam espaços e ambientes que impedem ou dificultam o acesso, a participação e a interação do cidadão, independentemente de qualquer perda ou anormalidade relacionada à sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica. Convido os leitores para que, comigo, mudem o foco da abordagem sobre as deficiências, transferindo para as cidades e os ambientes construídos a incapacidade em atender de maneira digna e eficaz a diversidade das habilidades e capacidades inerentes aos seres humanos.
Todas as pessoas são únicas e nascem com habilidades e capacidades que, desenvolvidas, levam à realização de seus sonhos. Podem ser profissionais, familiares, emocionais, sociais, financeiras, entre outras tantas. Quando os ambientes, serviços, equipamentos, produtos ou instrumentos inexistem ou não podem ser utilizados plenamente em função de suas dimensões (ou por concepção equivocada em seu design), as pessoas são impedidas de desenvolver suas atividades cotidianas no âmbito social, profissional, pessoal ou familiar. A deficiência está “na coisa” propriamente dita, incapaz de ser utilizada.
Ao longo de todos os anos em que trabalhei como arquiteta e urbanista, não conheci ninguém que apresentasse as proporções renascentistas do Homem Vitruviano, cuja ilustração de Leonardo da Vinci, inspirado na obra De Architectura, do arquiteto romano Vitruvius Pollio, inspirou a métrica utilizada na concepção, projetos e planejamento de edifícios, cidades e tudo o que encontra-se à nossa volta que pode viabilizar, dificultar ou impedir a realização das tarefas e ações do nosso cotidiano de vida. O desenho retrata um homem nu com os braços e mãos estendidos, inscrito em um círculo e um quadrado, com todas as proporções perfeitas. O autor buscou relacionar espaços ao corpo, defendendo que os edifícios e seus ambientes deveriam basear-se na simetria e proporções da forma humana. Para ele, a composição dos “recintos dos deuses imortais” apenas seria alcançada a partir da proporção exata ou da semelhança dos membros de uma figura humana bem constituída.
Em meados do século passado, o arquiteto franco-suíço Charles-Édouard Jeanneret-Gris — mais conhecido como Le Corbusier—, deu nova abordagem às pesquisas de Da Vinci e Vitrúvio, buscando encontrar a relação matemática entre as medidas do homem com a natureza por meio de um sistema de medidas em escala humana a partir da proporção áurea e da sequência de Fibonacci.
Conhecido como Modulor, o sistema de proporções foi amplamente utilizado no período pós-guerra ao tornar viável a produção de edifícios e unidades habitacionais em larga escala e com o menor espaço possível, mas, ainda assim, funcionais. As medidas padrão? Um indivíduo homem, imaginário, com 1,75 m. Mais tarde, com 1,83 m de altura.
Tanto num caso como no outro, as medidas utilizadas para a construção de objetos ou espaços para edifícios e cidades foram concebidas a partir de uma figura humana especial capaz de representar todos as pessoas: homem branco, jovem, saudável e europeu. Todos os demais seres humanos não foram retratados pelas normas e legislações vigentes à época. Foi só a partir dos anos 1960 que movimentos sociais oriundos dos países nórdicos e da Inglaterra questionaram as métricas vitruvianas da “figura humana bem constituída”, chamando a atenção para a necessidade de respeito à diversidade das capacidades e habilidades de outros grupos sociais incluindo neles as crianças, as mulheres, os idosos e as pessoas com deficiências funcionais diversas.
Cidades e edifícios foram predominantemente construídos a partir de métricas incompatíveis com a diversidade humana. As mudanças necessárias para a adaptação dos espaços e dos objetos, apesar dos mais de 50 anos do início das discussões, ainda são incipientes quando se trata de políticas públicas. Colocar uma rampa aqui ou consertar uma calçada ali via PEC (Programa Emergencial de Calçadas da cidade de São Paulo, que prevê alteração de pisos etc.) é risível frente à urgência dos impactos negativos causados na vida das pessoas. Numa sociedade democrática, não é possível considerar comum ou normalizar o impacto social, ambiental e econômico dos maus-tratos de cidades, cujos gestores, ainda hoje, são pouco afeitos à importância do planejamento de ações que levem à plena acessibilidade do ambiente construído, no acolhimento e inclusão de seus cidadãos.
Ainda mais inaceitável é saber que barreiras físicas provenientes da ausência do planejamento e gestão dos espaços públicos destinados aos cidadãos, impeça ou dificulte a expressão das potencialidades de grupos sociais. Fragmentados em dezenas de secretarias, órgãos, departamentos e pessoas encontra-se a gestão de todo o mobiliário público e infraestrutura urbanas. Postes, fiações, lixeiras, bancas de jornal, tapumes de obras, gradis, árvores, mesas e cadeiras em calçadas, sinalização horizontal (faixas de pedestre) e vertical (semáforos, nomes de ruas), têm manuais próprios para implantação nas ruas de uma cidade sendo, cada um destes elementos que citei, gerenciado por diferentes áreas. Sem projeto claro, o espaço das ruas é resultado de um amontoado de departamentos. São dezenas de permissionárias e concessionarias municipais, estaduais e federais que atuam isoladamente nas ruas. Como garantir qualidade de atendimento à diversidade de capacidades e habilidades humanas se cada um faz o que lhe é mais conveniente? Onde está a política pública capaz de iniciar o processo de transformação?
Ronaldo Tonini, arquiteto e urbanista especialista em acessibilidade, acredita que, para além das normas e legislação, os profissionais precisam estar atentos aos detalhes de projeto e execução de produtos e ambientes funcionais, práticos, acessíveis e esteticamente adequados aos usuários, com o objetivo de vencer as dificuldades e inseguranças enfrentadas no dia a dia das pessoas com deficiência. Em outras palavras: apenas aplicar as normas no desenvolvimento de propostas de projeto é o correto, mas é preciso ir muito além.
Existe saída: basta discernimento e vontade política para dar início a boas práticas de gestão do problema. Com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades e a acessibilidade para a vida urbana das pessoas com deficiência, a União Europeia criou o Access City Award, que premia cidades com boas práticas de projeto e planejamento voltados à acessibilidade e à inclusão. A vencedora de 2021 é Jönköping, na Suécia que demonstrou uma abordagem abrangente à acessibilidade. Só para se ter uma ideia do alcance da iniciativa, a cidade promoveu alterações significativas nos ambientes construídos e espaços públicos; no transporte e infraestrutura relacionada aos deslocamentos; na informação e comunicação, incluindo as novas tecnologias (TIC), além dos equipamentos e serviços públicos em cultura, educação, saúde, entre outros. Estas ações pretendem ampliar a participação social e econômica com o objetivo de promover o acesso de serviços e produtos acessíveis a um maior número de consumidores antes excluídos do mercado.
Sinto-me desconfortável em escrever uma coluna que, ainda hoje, justifique a necessidade de planejamento e construção de cidades que beneficiem a todos os seus residentes e lembrar as empresas e o poder público que a cidade abriga uma gama de habilidades e capacidades riquíssima, cujo potencial, pouco explorado, pode ampliar empregos, negócios, serviços e gerar renda. Como pode um país alcançar a prosperidade quando pessoas são invisíveis, segregadas ou excluídas?
Texto publicado originalmente na JP News.