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A origem do que irei expor a seguir devo à leitura da novela A Invenção de Morel1, de Adolfo Bioy Casares, que por casualidade adquiri numa loja de departamentos da Plaza Cataluña, naquilo que foi minha primeira visita à Barcelona, em outubro de 1992.
Nesta exposição não quero me deter em seu texto, que com certeza me preocupa, me inquieta e inclusive alimenta secretamente meu Projeto de Tese, mas sim em seu prólogo. E não faço isso em desmerecimento ao autor do livro e louvor a Jorge Luis Borges, autor do prólogo, já que entendo que prólogo e texto chegaram a ser uma só realidade, assim como tantas vezes foi o dueto Bioy-Borges, ou como se faziam chamar também Bustos-Domecq.
Quero deter-me nele, primeiro, porque passei muito tempo lendo-o e relendo-o, de puro gosto; tratando de desentranhar cada uma das frases de Borges, crendo que nelas encontraria as pistas para compreender melhor Bioy Casares e sua Invenção. Mas também, como sucede com os relatos de ficção de Borges, porque estava me sentindo cada vez mais envolvido com os personagens que povoavam seu prólogo: Stevenson, Ortega y Gasset, o próprio Bioy Casares, Marcel Proust, Chesterton, Kafka, etc., etc.
Seguindo meu relato, alguns anos depois de meu encontro com A Invenção de Morel, num balneário do Uruguai, enquanto fazia uns croquis de suas ruas e praças, me veio à mente a imagem da novela em questão, imagem que me “esclarecia”, bem entre aspas, um pouco o que estava fazendo, ou seja, desenhando espaços e arquitetura. Essa circunstância derivou, no meu regresso dessas férias, numa publicação conjunta de meus desenhos entrelaçados com parte do relato da novela.
Tudo isso motivou, em parte, meu regresso a Barcelona, em 1996, a realizar uma tese sobre os croquis dos arquitetos.
Já me encontrando, outra vez, pelas avenidas, em 1997, segui relendo o prólogo de A Invenção de Morel, agora num novo exemplar comprado numa livraria do ensanche, e, naturalmente, reincidi sobre os mesmos personagens: Stevenson, Ortega y Gasset, etc., etc. Deste último, tive, nesse ano, abundantes notícias em dois cursos que assistia simultaneamente no programa de doutorado. Nos dois cursos nos foi apresentado o livro A Desumanização da Arte2, com a defasagem de um ou dois meses. Depois da primeira apresentação e de ficar muito impressionado, apressei-me a comprar o livro e o consumi ipso facto. Posso dizer que busquei com afinco, e não sem ingenuidade, os parágrafos que Borges citava em seu prólogo. Foi em vão, não apareceu por nenhuma parte nem a página 96, nem tampouco as seguintes. Chegada a segunda apresentação de A Desumanização da Arte escutei com tranquilidade, de estudante que tem os ouvidos atentos ao que expõe o professor, como se ia desmoronando todo o arcabouço que haviam construído na primeira. Conto e relembro isso, porque compreendi que devia ser mais rigoroso com a leitura do meu prólogo, tanto como tinha sido o segundo professor com “sua” leitura de A Desumanização da Arte. Não tive que reler muito, já que com o passar do tempo me encontrei com Ideas Sobre el Teatro y la Novela3 do mesmo Ortega y Gasset, que foi publicado junto com A Desumanização da Arte em 1925; aí estava a referência de Borges e a página 96. Uma vez adquirido este último achado, submergi, outra vez, em sua leitura. Muito depois me dei conta de que a conclui sem haver me detido com profundidade na primeira de suas notas de pé de página. Nela, se fazia referência ao que Pío Baroja respondia, em outro prólogo, o de La nave de los locos, ao texto de Ortega y Gasset, que, por sua vez, era resposta às notas publicadas pelo primeiro sobre a novela Las figuras de cera.
Até aqui minha história de prólogos, e de como cheguei a eles. O assunto é que mais uma vez, como tantas outras, se armam essas triangulações de personagens em torno a um tema, que, neste caso, não é outro que o da criação literária, e que bem poderia ser o da criação da arte em geral, e portanto, porque não, da arquitetura. Desses prólogos, tenho retido, e atesourado, a voz Invenção, que, não é preciso dizer, tenho seguido, como Teseu ao fio de Ariadna, por muitos outros autores que confirmaram minhas suspeitas e minhas inquietações. Motivou-me, esse estudo de prólogos, o desejo de construir uma possível explicação daquilo que produziu a associação de meus croquis, num balneário do Uruguai, e de A Invenção de Morel.
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No ano de 1984, o historiador e crítico de arquitetura William Curtis (G.B. 1947) publica o livro Le Corbusier, Ideias e Formas. Nele, realiza uma apologia do arquiteto suíço-francês Charles Edouard Jeanneret, Le Corbusier. Um dos temas centrais do livro é a condição sempre presente da história e da tradição em sua obra. É também a presença de conteúdos semânticos que referem à cultura e à realidade, manifestação complexa, finalmente, da vida. A introdução a esse texto, William Curtis chamou de Notas sobre a invenção. Nela, descrevia um dos mecanismos criativos, utilizado pro Le Corbusier, mais eficaz: o croqui. Disse na página 11 de seu livro:
“As invenções de Le Corbusier vinham às vezes por saltos analógicos de pensamento entre fenômenos díspares, como quando captou a relevância das chaminés de ventilação para o espaço da Assembléia de Chandigarh, ou a pertinência de uma carapaça de caranguejo para a cobertura de Ronchamp. No momento adequado, as imagens emergiam à superfície, onde podiam ser capturadas, condensadas e exteriorizadas como croquis.”4
Num texto anterior, The Modern architecture since 1900, onde novamente é Le Corbusier o protagonista, William Curtis se refere à capacidade desse arquiteto para sintetizar conteúdos da tradição com temas e emergências da modernidade, ou formas da antiguidade que reapareciam portando novos conteúdos; a isso ele chamava alquimia ou química intelectual. Em síntese, todo o discurso tendia a enfatizar que a história não devia ser compreendida como a sucessão linear de acontecimentos, mas como uma complexa rede, onde os personagens e suas obras eram os encarregados de realizar seu traçado. É nesse ir e vir, por essa rede, onde situa a Le Corbusier. Seu mérito radicaria em saber se movimentar por ela, no momento e condutos oportunos. É na afortunada conexão realizada nessa trama (química intelectual), onde veríamos emergir aquele fulgor que dá conta da invenção. E, portanto, teríamos no croqui um testemunho e uma primeira manifestação “concreta” desse acontecimento.
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Mas voltemos a nossos três personagens da literatura. E partamos pelo princípio, ou seja, pelo prólogo de Jorge Luis Borges. Nele, o que está mais patente é, por um lado, a vontade de demonstrar que sim é possível inventar uma aventura capaz de causar interesse, o que para Ortega era algo impossível para este século. Em segundo lugar, está a defesa do gênero fantástico, para contra-atacar denunciando os vícios da novela psicológica.
A possibilidade do invento, ou da invenção, passa pelo argumento esgrimido na defesa do fantástico. Com isso, Borges raciocina no rigor próprio e característico deste gênero, que podemos resumir numa só palavra: trama. A trama é, efetivamente, aquilo que dá sentido à aventura, é uma rede constituída por um conjunto de fatos, que aparentemente se encontram desconectados, que vai impulsionando a história, para conduzi-la a seu desfecho, que em definitivo é onde a reconhecemos como um todo. Borges postula que de existir uma supremacia desse século em relação aos anteriores é devido, justamente, ao aperfeiçoamento da trama; manifestação da criação. A trama que dá conta de si mesma, de sua coerência no universo que foi traçado, universo fechado onde encontra sua própria legalidade, e onde deve forçadamente render contas para justificar sua existência. Aí está, para Borges, seu rigor intrínseco, e, obviamente, seu invento.
Porém esta argumentação e defesa é somente a retomada de um debate que, como vimos, se iniciou nos anos vinte, numa viagem de carro pela costa de Málaga. Assim é ao menos como conta Pío Baroja em seu “Prólogo casi doctrinal sobre la novela” (Prólogo quase doutrinal sobre a novela), mas, “que o leitor simples pode saltar impunemente”. Esse debate se materializará como texto escrito, primeiro nas notas que o próprio Baroja expôs como motivo da aparição de Las figuras de cera (As figuras de cera), que, com certeza, é um titulo que não deve ter caído muito bem à Ortega y Gasset, devido ao caráter “popular” e massivo dos museus onde encontramos essas figuras5. Pois bem, Ortega, como vimos, replica a essas notas, primeiro através de sucessivos artigos no jornal El Sol, e logo na Revista de Occidente com a compilação dos mesmos. Ao que Baroja responde novamente no Prólogo casi doctrinal. Os argumentos do debate são os seguintes:
Para Ortega y Gasset, em “Ideas sobre el teatro y la novela”, são:
- - Vive-se, em 1924, uma decadência do gênero novela.
- - Na novela, não se trata de definir, mas sim de descobrir as almas em seu atuar.
- - A novela é um gênero moroso; lento e extenso.
- - Representantes do mais alto nível da novela são Dostoievsky e Proust.
- - A novela deve ter poucos personagens e estes devem estar muito perfilados.
- - A novela deve ser hermética, de horizontes limitados.
- - A novela é um gênero espesso. É denso, concentra os acontecimentos num curto transcurso de tempo.
- - O novelista não deve aspirar inventar uma fábula nova, senão que deve concentrar suas forças em alcançar a perfeição e a técnica.
Para Baroja, em troca, os argumentos são muito opostos, disse no Prólogo casi doctrinal:
- - A novela, em 1924, tem uma longa vida pela frente.
- - Existem muitos tipos de novela, como também existem suas respectivas técnicas para concretizá-la.
- - A novela deve ser imanente e hermética. Deve encontrar a finalidade em si mesma (uma finalidade sem fim).
- - Só existe a “possibilidade” da novela como arte pura (a novela desumanizada), não sua concretização.
- - Existe a invenção na novela, tudo depende do criador e não do contexto cultural em que este se move.
- - A novela deve ser um gênero permeável. Aberto a múltiplos horizontes.
- - Os personagens da novela não necessariamente devem ter um claro tipo psicológico. Podem ser tão contraditórios, como os que existem na “vida real”.
- - A novela deve estar povoada de personagens.
- - Na novela é possível amplificar, e não estreitar horizontes. Nela, o horizonte deve ser amplo, com muitas figuras e muita liberdade.
- - O ofício do novelista não usa “metro”. Não há cânone visível na novela
- - As armas (criativas) do novelista estão em seu fundo sentimental. É a fonte de onde emanam os recursos criativos do escritor. Frente a ele, a técnica da novela, ainda não visível, tem pouco a dizer.
- - Na novela apenas há a arte de construir. Não há regras. Algumas classes de novela têm sua armação, mas muitas outras são caracterizadas, justamente, por não ter.
- - A novela, em geral, “é como a corrente da História: não tem nem princípio nem fim; começa e acaba onde se queira. Há quem sim põem limites a essa corrente, a outros nos cansa e nos incomoda. Há os partidários do limitado e do concreto, mas também os entusiastas do indefinido e do vago”.
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Nessa parte do discurso corresponde amarrar os cabos que temos ido deixando soltos. Partindo dos comentários das linhas anteriores, podíamos pensar numa similitude de posicionamentos entre Baroja e o inglês William Curtis. No primeiro, há uma vontade de compreensão e de formulação da realidade em “liberdade”. A comparação que estabelece entre o que deve ser a novela e seu parcial entendimento da história assim o demonstra. Desde o lado de Curtis, sua tese da história como uma trama, nega, portanto, a sucessão mecânica e linear dos fatos, vem a reforça a ideia de desmontar os esquemas, de remover os limites, de pensar, em definitivo, a acumulação de tradições com horizontes mais amplos, deixando filtrar condicionantes e variáveis desde âmbitos não previstos, que alterem e distorçam as convenções. Para Curtis, em seu The modern architecture since 1900, as origens da modernidade se encontravam dissolvidas e veladas num acúmulo de fatos, os quais poderiam ser destacados, mas sempre no contraste com os acontecimentos restantes, simultaneamente. Isso resulta na demolição de velhos mitos, e que acaba por abordar muitos outros, que em épocas mais próximas a nossa querem emergir. Creio que Curtis estaria bastante de acordo com que “a história não tem princípio nem fim; começa e acaba onde se queira”.
Ao final de seu prólogo, Baroja, fala assim a seus personagens:
“–Queridos filhos espirituais: entrareis, senão no reino dos céus, em minha pequena cabana; todos passareis adiante, os bons e os maus, os imaginados e os sonhados; os de trapo e os de fraque, os bem construídos e os deformes, os bonecos e as figuras de cera. Os mais humildes terão seu lugar ao lado dos mais arrogantes. Nós riremos dos retóricos e das pessoas de moda, dos aristocratas e dos democratas, dos requintados e dos parnasianos, dos jovens sociólogos e dos que fazem caligrafia literária. Seremos anti-almaquegotistas e anti-snobs (antirrastracueros). Saltaremos por cima das três unidade clássicas a la torera; o autor tomará a palavra quando lhe pareça oportuna ou inoportunamente; cantaremos umas vezes o Tantun ergo e outras o Ça ira; faremos todas as extravagancias e nos permitiremos todas as liberdades.”
A história de William Curtis está construída, também, com muitos personagens e com suas variadas obras. A liberdade se faz presente alí graças à ação de deixar abertas algumas linhas argumentativas, e à constante apresentação de múltiplas origens. Há, portanto, nesse autor uma mente aberta que não faz diferença entre razões de primeira ou de segunda classe; as de trapo ou de fraque, segundo Baroja. Porem há também aqui uma maneira mais global de coincidência; esta ocorre na trama. A história de Curtis e as novelas de Baroja reclamam muitos personagens e se esses autores não advogam por uma ausência de estrutura, sim o fazem por uma estrutura plural e aberta, de múltiplas linhas troncais, como é uma teia de aranha; uma boa imagem da trama. A trama representa muito bem o centro de interesse na Novela de Baroja, como também o representa na História de Curtis.
Muito pelo contrário, para Ortega y Gasset a trama não reveste maior importância. Como ele bem indica, a trama não é mais que o fio do colar de pérolas ou os arames do guarda-chuva. Disse no final de Ideas sobre el teatro y la novela:
“O interesse próprio ao mecanismo externo da trama fica hoje, por força, reduzido ao mínimo. Tanto melhor para centrar a novela no interesse superior que pode emanar da mecânica interna dos personagens. Não na invenção de ‘ações’, mas na invenção de almas vejo o melhor porvir do gênero novelesco.”
Portanto, não é a relação entre os personagens, o que interessa a Ortega y Gasset, mas os personagens mesmos.
Borges, entretanto, quando defende a novela de aventuras, defende a ação, o motivo que aglutina os personagens e os dispõe frente a nós de uma determinada maneira. Disse no prólogo a A Invenção de Morel:
“A novela de aventuras, por outro lado, não se propõe como uma transcrição da realidade: é um objeto artificial que não sofre nenhuma parte injustificada. O temor de incorrer na mera variedade sucessiva do Asno de ouro, das sete viagens de Simbad ou do Quixote, o impõe um rigoroso argumento.”
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“Penetrar no processo de projeto com a ajuda dos desenhos é apreciar como as formas velhas podiam se agitar dentro de combinações novas, e ver como e por que se produziam as rupturas no vocabulário; é também notar como se condensam muitos níveis de significado através de uma prodigiosa abstração.”6
Assim sintetizava William Curtis o papel do desenho no modo de operar de Le Corbusier. Nessa citação notamos como o desenho assume um papel de instrumento que investiga na história, que a desvela operativamente. É o desenho que submerge na trama que a mesma história propõe, para constatar, como dissemos no início, que lhe cabe um papel de conector de realidades, pertencentes à complexa rede do patrimônio arquitetônico e cultural.
© Da tradução: Igor Fracalossi
Referência: HIDALGO HERMOSILLA, Germán. Invención: novela y arquitectura. Cataluña: Universidad Politécnica de Cataluña, 1998.
- Esta obra, de Bioy Casares (Buenos Aires, 1914), publicada em 1940, veio para terminar a etapa do Bioy principiante na literatura para convertê-lo num contribuinte indiscutível, pelo menos no gênero fantástico. ↩
- A Desumanização da Arte (La Deshumanización del arte) foi publicado no jornal El Sol, nos dias 1, 16, 23 de janeiro; e 1 de fevereiro de 1925. ↩
- Esse ensaio apareceu pela primeira vez em El Sol, nos dias 10, 12 e 31 de dezembro de 1924, e 1, 2, 8, 11 de janeiro de 1925. Nota do tradutor: esse ensaio parece nunca haver sido traduzido ao português ou pelo menos não encontrei vestígios de sua existência. ↩
- William Curtis, Le Corbusier Ideas y Formas, Ed. Blume 1986. Tradução castelhana do original publicado em inglês, em 1989. ↩
- Ortega y Gasset expõe a fascinação que exercem os museus de cera sobre as “massas” no ensaio A Desumanização da Arte ↩
- William Curtis, Le Corbusier, ideas y formas, Ed. Blume, Madrid 1984, pp. 11 e 12. ↩