Memória LGBT nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo

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Largo do Arouche, um dos espaços que se configurou como símbolo da territorialização LGBT na cidade de São Paulo. Imagem: Autoria própria

Caminha-se pela cidade. Território em constante movimento. É complexa e formada por um emaranhado infinito de anseios. Sejam eles para as diferentes construções de um novo lugar, físico ou não; mas também para a desconstrução de outros, que apesar de consolidados, são carregados de concepções de outrora. Neste meio de campo, há uma necessidade inevitável do sujeito na busca por localidades que permitam seu encontro com seus demais, para que possa existir uma possibilidade de expressão das diversidades existentes.

Se hoje conseguimos perceber em alguns nichos das grandes cidades do Brasil, espaços que são desenhados para atender ao público LGBTQI+, sejam eles voltados para o entretenimento ou também para a assistência dessas populações; nas décadas anteriores, isso não era verdade. Os lugares na cidade que foram se caracterizando por suas apropriações eram produzidos à medida que esses grupos encontravam outras formas “marginais”[1] de existência e expressão, sexual ou não. Como era de se esperar, por que não eram destinados propriamente para atendê-los, com sua ocupação marginal que conferia usos divergentes, adquiriram outra roupagem. 

Essas e outras, são inquietações que fizeram parte das reflexões que motivaram o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso, realizado em 2020, pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Escola da Cidade, em São Paulo. Foi resultado de um estudo que buscou entender como se deram as sociabilidades, sobretudo homossexuais, nas duas maiores cidades do país através do Lampião da Esquina, um jornal subversivo publicado entre 1978 e 1981 e, a partir disso, contribuir para a construção da memória LGBT nos espaços urbanos mediante às leituras de reportagens que traziam a cidade como enfoque e por consequência, mergulhar-nos e aproximar-nos dessa atmosfera de lutas por direitos, reivindicação dos espaços e nascimento de uma perspectiva de futuro para essas “minorias”.

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Colagem feita a partir de manchetes retiradas das capas do jornal Lampião da Esquina. Imagem: Autoria própria

São Paulo e Rio de Janeiro foram cidades que presenciaram uma grande efervescência no que diz respeito à cultura homossexual nos finais da década de 1970 e início da década de 1980. Nesse período viu-se nascer uma explosão de lugares que atendiam a esse público, ou que eram por eles apropriados: banheiros, cantos, bares, boates, lugares em obras e em transformação, becos, meia luz, escuridão, medo, desejo, luzes coloridas, música alta, gritaria, corre-corre, esconderijo, discrição, necessidade de pôr a cara à tapa.

Espaços públicos e privados concentravam um nicho que começava a expressar suas vontades de maneira mais aberta e com menos medo, com o abrandamento da ditadura militar e um desejo por parte desta população em poder trocar informações sobre suas identidades. Largo do Arouche, Vieira de Carvalho, Rego Freitas, Praça Dom José Gaspar, Galeria Metrópole e Rua Augusta, em São Paulo, e Cinelândia, Praça Tiradentes, Copacabana e Madureira, no Rio de Janeiro, começaram a serem ocupados pela população LGBT, sobretudo a homossexual e travesti, já nos finais da década de 1960, como exemplificado num trecho de A construção da igualdade, de Edward MacRae:

“Esse novo modelo de relacionamento homossexual parece ter se desenvolvido em São Paulo – assim como em outros grandes centros urbanos –, por volta do final da década de 1960, quando certas áreas do centro da cidade, como a Galeria Metrópole, na Av. São Luís, tornaram-se pontos frequentados, não só pelos homossexuais, mas também por grupos boêmios politizados. Esses boêmios, artistas, intelectuais e estudantes, inconformados com a ditadura militar e frequentemente engajados em diversas modalidades de contestação cultural, procuravam resistir e subverter o regime através do questionamento dos valores conservadores e autoritários que regiam a sociedade. Do encontro dessas duas populações marginalizadas, resultou um processo de influência mútua. Os contestadores culturais encontraram um novo campo onde atuar, percebendo a importância de se dissolver a rigidez das normas que governavam o desempenho dos papéis de homem ou de mulher na sociedade. Entre homossexuais, exerceu-se uma influência mais democratizante nos relacionamentos sexuais e afetivos. Dois importantes resultados desse encontro foram: a consolidação da figura do “’entendido”, o homossexual que buscava relações sexuais igualitárias; e a valorização da androginia, enquanto postura política. ” (MACRAE: 2018, pp. 124)

Estas regiões concentravam espaços privados frequentados também por esses grupos e se os lugares oficialmente homossexuais existem e persistem, havia, para além deles, muitos outros que fugiram bastante à regra em relação ao que haviam sido destinados e passaram a ser ocupados pelos homossexuais, que manifestavam seus afetos às escuras, já que a noite guardava um mistério propício para a sua expressão, que encontrava ali meios de expressar e viver seus desejos. Eram os cinemas, que antes possuíam seu glamour, mas que depois, em outra fase, decadentes, foram ocupados pelos homossexuais; eram os espaços públicos das cidades, que ora estavam em obras como era o caso da “nova Cinelândia”, no Rio de Janeiro, ora foram praças as quais durante o dia exerciam uma função e à noite outra; banheiros públicos, que, entre um xixi e outro, havia uma mamada e outra. Lugares estes que vêm e vão, foram ocupados e desocupados, que antes foram alí e amanhã serão lá. Sujeitos e descobertas mediantes às autoridades da época ou à espera da conclusão de alguma obra.

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Manifestações verbais e espaciais. Colagem feita a partir de manchetes do Jornal Lampião da Esquina. Imagem: Autoria própria

Será que um dia a cidade será pensada inteiramente com o objetivo de atender as diversidades existentes?

O Lampião da Esquina foi um agente que buscou fomentar, através da sua iniciativa, a construção de uma perspectiva de sociedade mais igualitária. Foi uma plataforma fundamental para o desenvolvimento de um panorama social para que a visibilidade não estivesse estritamente voltada para ordem moral dominante.

Essa visão faz-se necessária e reverbera. Em cartaz desde o início do ano de 2021, a exposição no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, sobre a fotógrafa Madalena Schwartz e intitulada Madalena Schwartz: As Metamorfoses – Travestis e transformistas na SP dos anos 70, materializa ao público a presença destas identidades dissidentes nessa cidade que através da curadoria e expografia, organizadas não apenas a partir das fotos mas também pela confecção de um mapa, (que reúne muitos lugares trazidos também pelo meu trabalho) territorializa e visibiliza as identidades e produções invisibilizadas da cidade de São Paulo. 

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Mapa da ocupação homossexual no Rio de Janeiro. Imagem: Autoria própria

Este compromisso institucional enfatiza e marca essa população na cidade 50 anos depois do projeto do Lampião, que uma vez mapeada e difundida, passa a fazer parte de uma memória estabelecida, escrita, que pode ser consultada. Uma memória da cidade, LGBT, física, presente, mas que é fruto de realidades invisibilizadas.

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Mapa da ocupação homossexual no São Paulo. Imagem: Autoria própria

“Deus nos livre do boom gay”, uma frase registrada em uma das edições do jornal Lampião, em um passado tão recente, mas que, muitas vezes, parece distante. Temos vivido tempos sombrios. O governo atual cerceia direitos em inúmeras frentes. A pandemia do coronavírus nos traz uma sensação de encarceramento e impossibilidade de desfrutar a cidade com nossos semelhantes, mas com este trabalho, pude retomar outro momento de nossa história, também de certas formas obscuro, mas que traz consigo uma sensação positiva de um ensejo de liberdade, fortalecimento da comunidade LGBT e uma perspectiva de mudança para contribuir com a construção de uma memória coletiva desta na cidade.

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Afeto e cidade. Imagem: Autoria própria

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O ensaio aqui exposto é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido na Associação Escola da Cidade intitulado “Memória LGBT nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo” com orientação do professor Dr. Pedro Lopes.

Nota
1. PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: A prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense,1987, pp. 64.

Referências bibliográficas

CARRARA, Sérgio; SIMÕES, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu, ed. 28, p. 65-99, janeiro a junho de 2007.

FACCHINI, Regina. Movimento homossexual no Brasil: recompondo um histórico. Cad. AEL, v. 10, n18/19, 2003.

LAMPIÃO da Esquina. Direção de Livia Perez. Brasil: Canal Brasil, 2016. 1 DVD (85 min.).

MACRAE, Edward. A construção da igualdade: política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EDUFBA, 2018.

PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: A prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense,1987. PUCCINELLI, Bruno. “Perfeito para você, no centro de São Paulo”: mercado, conflitos urbanos e homossexualidades na produção da cidade. Campinas, SP: [s.n], 2017.

Todas as edições do material do jornal Lampião da Esquina foram acessadas no site do Grupo Dignidade, que estão disponíveis na íntegra em <https://www.grupodignidade.org.br/projetos/lampiao-da-esquina/>

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Sobre este autor
Cita: Mateus Atalla. "Memória LGBT nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo" 24 Abr 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/979634/memoria-lgbt-nas-cidades-do-rio-de-janeiro-e-sao-paulo> ISSN 0719-8906

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