A eterna arquitetura efêmera do Shikinen Sengu: o templo japonês reconstruído a cada 20 anos

Parte da concepção de arquitetura – como se entende desde a modernidade – passa necessariamente pela permanência. A construção tectônica pretende-se durável, e muitas são as reflexões articuladas a partir dessa durabilidade. O que significa, então, associar a arquitetura com a efemeridade? E quando a própria ideia de permanência está atrelada ao transitório? A cerimônia do Shikinen Sengu, no Japão, pode ajudar a responder a essas perguntas.

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Dentro do pensamento arquitetônico hegemônico, o monumento talvez seja o primeiro exemplo de permanência na cidade. Representação de algo que se julga digno de memória, o monumento é símbolo dessa intenção de perenidade, mas não é o único. Sedes governamentais, tribunais, templos, propõem-se estáveis para reforçar ideais sólidos, atemporais. Evocam conceitos imateriais, e a arquitetura passa a atuar como uma espécie de invólucro ou forma para esses conceitos. O ponto interessante do Shikinen Sengu é a dissociação entre solidez construtiva e os conceitos a ela atrelados.

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A madeira que irá ser utilizada na próxima reconstrução do santuário é levada pela cidade de Ise até ao Naiku e ao Geku. Imagem de Tawashi2006, via Wikimedia Commons. Licença CC BY 2.1 jp

A cidade japonesa de Ise é localizada na província de Mie, e abriga o Jingu (templo), cuja reconstrução ocorre periodicamente desde o ano 690, durante o governo da imperatriz Jito. A cerimônia, comumente chamada apenas Sengu, consiste na reconstrução do Jingu a cada 20 anos. O Jingu é um complexo de templos, sendo os principais Naiku (templo interior) e Geku (templo exterior). O primeiro é dedicado a Amaterasu Omikami, deusa do sol, enquanto o segundo homenageia Toyouke Omikami, deusa da agricultura, abrigo e indústria.

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Geku. Imagem © Nakagita Yoshiaki

Ambos são erigidos no estilo Yuitsu shinmei-zukuri, que reúne algumas características formais para os templos, mas que são inspirados nos armazéns que guardavam os grãos da colheita de arroz na antiguidade japonesa. O Jingu possui estrutura em madeira de cipreste, piso elevado e cobertura de sapê. Como o templo é construído em madeira, a exposição às intempéries e o contato dos pilares com o solo desgastam os edifícios ao longo dos anos, fazendo-se necessária a construção de novos edifícios regularmente. A reconstrução é  acompanhada de celebrações e eventos que envolvem toda a comunidade da região, e também são uma forma de manter as tradições, métodos construtivos e técnicas de carpintaria vivos.

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Vista aérea do Naiku (antigo e novo). Imagem © Teruo Honda

O período de 20 anos entre cerimônias é preenchido com etapas da reconstrução: desde a coleta  e preparo da madeira até a fabricação das partes do templo. O processo de preparo da madeira que estrutura o Jingu leva 8 anos. A madeira é proveniente em parte de uma floresta do próprio Jingu – que possui um terreno de reflorestamento com um plano de 200 anos para atingir a autossuficiência de matéria prima para o Sengu –, e em parte de outras cidades. As toras são transportadas ao longo do rio, e a cura é feita com submersão das peças em água por dois anos, e secagem por mais um ano.

O preparo exige não só o tempo “lento” necessário para que o material esteja em seu melhor desempenho, como mão-de-obra especializada em sua fabricação e montagem. Assim, as técnicas são passadas ao longo de gerações da comunidade envolvida, mantendo viva uma técnica construtiva ancestral, cujo vitalidade teria se perdido não fosse pela necessidade de construção do novo templo.

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Ise Jingu. Imagem © Bernhard Scheid

Junto às celebrações de preparo da madeira, ocorre uma cerimônia de coleta, limpeza e empilhamento de seixos do rio da cidade para forrar o terreno do Jingu novo. O transporte dos elementos dos templos para o terreno são acompanhados de cortejos, mobilizam Ise e as cidades vizinhas, e configuram um ritual com músicas e interações entre os carregadores dos materiais e o público. Uma inversão conceitual se anuncia na descrição geral do Sengu: memória e tradição tornam-se eternos através da ruína e demolição do antigo templo e construção do templo novo.

Naiku e Geku possuem um terreno vazio adjacente, destinado a receber as construções novas. Depois de erigidos, transfere-se os pertences dos antigos templos para os novos, num ritual que culmina com a transferência do espelho de Amaterasu, que consagra o novo Naiku. O templo antigo é desmontado, e as partes aproveitáveis são utilizadas nos torii (pórticos de entrada do Jingu), transportadas para outros templos do complexo, ou de outras prefeituras, para que se faça a manutenção de suas construções.

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Terreno vazio para a construção do Geku. Imagem © G Witteveen

Essa constante obra, na visão dos envolvidos, é o que faz o Jingu perdurar ao longo dos séculos, tornando-o eterno. Existem dois aspectos bonitos nessa abordagem. O primeiro é que a permanência não está ligada à arquitetura como obra única, mas à arquitetura como ideia. O que importa não é esse ou aquele edifício específico, mas o modelo do templo, o Yuitsu shinmei-zukuri. A arquitetura é o meio pelo qual as músicas, os costumes, as técnicas sobrevivem.

O segundo é que a própria degradação dos materiais do Jingu evoca o ciclo de vida e morte de tudo que é vivo (e inanimado também, por que não?) na Terra. Além da reabsorção dos materiais após a desmontagem ou demolição – já que se trata de matéria orgânica –, conceitualmente, entende-se que tudo no mundo é transitório e eventualmente deixará de existir. O transitório é passageiro, mas não exclui a noção de ciclos, e estes podem ser entendidos como eternos, afinal, é a perpétua repetição da ordem da vida. A degradação e reconstrução do Jingu refletem o ciclo infindável do tempo, das estações do ano, dos dias, da vida e da morte.

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Ise Jingu. Imagem © UME-Ameixa

A imagem das ruínas pode trazer uma sensação ambígua ao observador. Por um lado, transmite a melancolia derradeira do transitório, do que se foi para não voltar. Por outro, as ruínas causam certa admiração, e não raro são apreciadas como belas. O Sengu tira a imponência da ruína ocidental, sem negá-la. O Jingu antigo não é abandonado, passa a fazer parte de outros edifícios e, de certa forma, se renova também.

Afora todas as minúcias culturais fascinantes do Shikinen Sengu, o intrigante é a ideia de uma arquitetura “perecível”, e que ganha valor (e eternidade) exatamente por esse aspecto. Uma das questões contemporâneas recorrentes diz respeito aos meios de retomar a ideia de viver e morrer de maneira mais confortável e respeitosa nos tempos atuais. A sabedoria indígena ensina sobre os ciclos da Terra, sobre a eternidade e sobre a comunhão entre humanos e não-humanos. O Shikinen Sengu junta-se ao rol de exemplos que têm muito a ensinar.

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Sobre este autor
Cita: Helena Tourinho. "A eterna arquitetura efêmera do Shikinen Sengu: o templo japonês reconstruído a cada 20 anos" 17 Jul 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1002893/a-eterna-arquitetura-efemera-do-shikinen-sengu-o-templo-japones-reconstruido-a-cada-20-anos> ISSN 0719-8906

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