Arquitetura e a Poética da Representação / Dalibor Vesely

Arquitetura e a Poética da Representação / Dalibor Vesely

«Nós estamos realmente, meu querido amigo,
engajados numa bem difícil investigação;
para o tema de aparecer e parecer, mas não ser,
e de dizer coisas, mas não coisas verdadeiras –
tudo isso é agora e sempre foi causa de muita perplexidade.
Veja, Theaetetus,
é extremamente difícil entender
como um homem deve falar ou pensar
que a falsidade realmente existe
e ao dizer isso não estar envolvido em contradição.
»
—Platão, O Sofista 237 A

O entendimento corrente da representação arquitetônica é ambíguo e confuso. Não há clara noção sobre o que a arquitetura deve representar ou se na verdade ela deve representar nada mais que ela mesma. No entanto, há também uma forte crença que a arquitetura não pode estar confinada inteiramente à sua existência imanente ou alguma forma de presença absoluta. É inevitável que os edifícios têm sua aparência e sua fisionomia. Nossa reação natural espontânea é articular a experiência tematicamente e, então, fisionomicamente, mesmo em situações nas quais pareceríamos estar preocupados com o caráter conceitual do visível. Isso tem sido especialmente evidente no interesse recente em arquitetura “autônoma” e “auto-referencial”. Aqui, o significado pretendido foi guepardizado pelas antecipações a priori e nosso pré-entendimento de situações particulares. Tal pré-entendimento assegura que nós podemos experimentar o conteúdo de uma galeria de arte, por exemplo, com um razoável grau de consistência mesmo num edifício que tenha sido projetado ou pareça como uma fábrica. Isso é um interessante lembrete que a experiência arquitetônica não é gerada no contexto de edifícios em quanto objetos, mas é sempre situacional.

As dificuldades que enfrentamos em relação à representação e significado, e que são muito frequentemente referidas de maneira sumária como uma crise de representação, não deve ser caracterizada como uma falta de representação ou significado, mas como um deslocamento e confusão. Deslocamento aponta a um dilema entre a monotonia e esterilidade no domínio do edifício, e um superabundância e complexidade no domínio da situação[1]. Deslocamento faz surgir uma questão de apropriação, que sempre foi integral ao pensamento arquitetônico, na maior parte sob a liderança do “decor”. Confusão é parcialmente condicionada pelo deslocamento, porém ela é primordialmente um resultado do pensamento moderno com sua ênfase no tangibilidade e certeza do conhecimento. As consequências culturais do pensamento moderno podem ser vistas na transformação da representação simbólica em representação instrumental.

As representações simbólica e instrumental mantêm-se frequentemente em conflito. Em quanto a primeira é reconciliatória e serve como um veículo de entendimento participatório e significado de integral abrangência, a última é agressiva e serve como um instrumento de autonomia, dominação e controle.

No pensamento instrumental, o problema de representação tende a ser reduzido à relação identificável entre a representação e aquilo que é representado. Isso inevitavelmente leva a uma duplicação da realidade e, como uma consequência, a uma tautologia na qual a representação se torna sem sentido. A crença que o edifício ante nós está representando por se referir a algo não presente desconsidera o simples fato de que a única maneira possível em que nós podemos experimentar a referência é através da situação da qual não só o edifício mas também nós mesmos somos parte. Gadamer é especialmente sensitivo a esse problema quando diz: “É um prejuízo objetivista de assombrosa ingenuidade para a nossa primeira pergunta ser ‘o que essa imagem representa?’. Claro, essa é uma parte do nosso entendimento sobre uma imagem. Enquanto somos capazes de reconhecer o que é representado, esse reconhecimento é um momento da nossa percepção sobre isso.” Na representação simbólica, “o simbólico não simplesmente aponta a um significado, mas ao contrário, permite ao significado apresentar-se a si mesmo”. Em outras palavras, “o que é representado é ele mesmo, apresentado na única maneira disponível para isso”.[2]

No nosso entendimento corrente da representação, somos mais ou menos inconscientes de tais distinções e suas consequências. Isso é confirmado pelo disseminada crença entre arquitetos que a instrumentalidade pode ser reconciliada com o simbolismo, que um balanço entre elas pode ser estabelecido, ou que a instrumentalidade pode simplesmente produzir sua própria forma de representação simbólica. Como uma consequência, não temos tocado aquele que ainda é um domínio da experiência que contem um residuum de autêntica representação. Esse é o domínio ao qual nos referimos quando usamos a palavra “caráter”. A significância e significado profundo de caráter são aparentes apenas indiretamente, por exemplo, em nosso interesse por uma apropriada relação entre o propósito de um edifício e sua aparência, ou em nosso cuidado na correta escolha dos materiais e estruturas com relação à natureza integral de um edifício ou espaço particular. O que a “presença de representação” em caráter realmente significa é obscurecida e parcialmente perdida na versão introvertida e altamente personificada de caráter disponível para nós hoje. Contudo, não podemos ignorar o fato de que o primeiro, se não o único, vínculo ainda está preservado com a mais autêntica tradição da representação. É a essa tradição, que emerge vigorosamente no século XVIII, quando ele se torna pela primeira vez o conceito dominante no pensamento arquitetônico, que o caráter explicitamente pertence. O papel dominante do caráter foi categoricamente enfatizado por Germain Boffrand quando escreveu que “um homem que não conhece os diferentes caracteres, e que é incapaz de sentir suas presenças em seus edifícios não é um arquiteto”.[3] A noção do século XVIII de caráter foi derivada principalmente da retórica contemporânea e dos tratados sobre pintura.[4] O renovado interesse na expressão e fisionomia individuais foi provavelmente um dos principais motivos por trás do estudo do caráter, que por mais de um milênio vem sendo tratado como um problema secundário. A introdução do caráter no pensamento arquitetônico não foi sem dificuldades.

Uma noção que emergiu de um vasto campo cultural abrangendo arquitetura, retórica, poesia e pintura foi carregado com uma gama de significados que a arquitetura por si mesma não poderia prontamente absorver. A simplificação do modo anterior de representação (Barroco) foi uma primeira consequência. A estetização do caráter foi uma segunda. Isso é claro na declaração de Boffrand, que pode até ser tomada para uma definição de caráter: “A arquitetura, embora seu objeto pareça ser somente o uso daquilo que é material, é capaz de diferentes gêneros, que servem para animar suas soluções básicas por meio dos diferentes caracteres que ela pode expressar. Um edifício expressa através da sua composição, como num palco, quer a cena seja pastoral ou cômica, quer seja um templo ou um palácio... É o mesmo na poesia: aqui também há diferentes gêneros, e o estilo de um não contradiz o estilo do outro. Horácio nos deu excelentes princípios para isso em seu Ars Poetica.”[5] A ambição de reduzir as tradicionais metafísica e poética da arquitetura à estética do caráter criou uma temporária ilusão de ordem, porém na longa distância provou ser uma base de relativismo, arbitrariedade e confusão. A estetização geral do caráter o fez vulnerável às operações da taxonomia nas quais se tornou possível isolar manifestações individuais de caráter do contexto de tradição e das normas culturalmente estabelecidas. Isso já era evidente para Jacques François Blondel, quem escreveu: “Afinal importa pouco se nossos monumentos aparentam uma arquitetura prévia, antiga, gótica ou moderna, propiciando que eles tenham um efeito satisfatório e um caráter adequado a cada gênero de edifício.”[6]

O conteúdo simbólico de caráter, que foi obscurecido em fins do século XVIII pela autonomia estética de caracteres específicos –tableaux–, ainda era explícito naquelas noções anteriores –convenance e bienséance. Ambos os termos são inerentes a uma tradição que se originou no clássico decorum e do qual eles são simples equivalentes posteriores. Em um dos seus primeiros textos, Jacques François Blondel menciona essa correspondência: “Conveniência (convenance) deve ser considerada como o aspecto mais essencial do edifício; por meio dela o arquiteto assegura a dignidade e o caráter do edifício. O que queremos dizer aqui com convenance é chamado por Vitruvius bienséance (decor).”[7]

A diferença entre convenance e bienséance não é tão importante para nosso argumento quanto a distância que as separa de caráter.[8] Numa leitura desatenta dos textos do século XVIII, caráter, convenance e bienséance muito frequentemente aparecem como sinônimos sem diferença evidente alguma entre eles. Entretanto, há uma diferença entre eles, e é uma fundamental. Em caráter podemos ver bastante claramente uma tendência por se mover em direção à superfície de um edifício, de um interior ou um jardim, em direção à experiência das aparências, enquanto em convenance e bienséance há uma tendência por se mover nas profundezas da realidade arquitetônica, em direção a uma ordem ainda entendida em termos de ethos.

O salto em direção ao ethos traz a arquitetura ao reino de uma cultura humanística, da qual ela era até o século XVII uma parte indivisível. A evidência de proximidade entre arquitetura e cultura humanística pode ser vista na ênfase no ethos da representação, porém mais ainda na ênfase no entendimento comunicativo entre áreas individuais do conhecimento e habilidades (arquitetura, pintura, poesia, retórica, matemáticas, música, etc.). O problema da representação não pode ser discutido sob essas condições com a mesma facilidade como foi possível no caso de caráter e, em grau limitado, no caso de convenance e bienséance. A noção de decor, historicamente o velho equivalente de bienséance, era em tal grau complementada por contribuições de fontes não-arquitetônicas (poética e retórica em especial)[9] que o tratamento de decor que encontramos em muitos dos tratados arquitetônicos deveriam ser vistos como transmitindo apenas um fragmento do seu pleno significado. Isso já valia na primeira discussão sobre decor em Vitruvius.

O relato de Vitruvius sobre decor, a única parte do seu texto que refere explicitamente ao conteúdo representativo da arquitetura, permanece um componente isolado. Decor é definido, promissoramente, como uma “ensamblagem infalível de uma obra composta em acordo com precedente (auctoritas) de detalhes aprovados”[10], e é baseado em convenção (statio), costume (consuetudo) e circunstâncias naturais (natura).[11] A relação entre decor e os outros princípios arquitetônicos mencionados no texto (ordinatio, dispositivo, eurythmia, symmetria, distributivo) é obscura, se é que pode ser realmente estabelecida. É característico que até onde tais relações são discutidas mais explicitamente, o significado qualitativo de decor é subordinado ao seu equivalente quantitativo ou à outra categoria (mais frequentemente à simetria, eurritmia, distribuição).[12]

A inadequação da definição Vitruviana torna-se aparente quando comparada com o contemporâneo significado filosófico e retórico de decorum. A comparação é legitimada porque sabemos que foi de tais fontes que ele tomou emprestado muito dos seus termos teoréticos.[13] O texto que sumariza mais lucidamente o olhar filosófico contemporâneo de decorum (propriedade) contem a seguinte formulação: “O que em Latim chama-se decorum (propriedade), em Grego chama-se prepon. Tal é sua natureza essencial que ela é inseparável da virtude moral, logo o que é próprio é moralmente correto, e o que é moralmente correto é próprio. A natureza da diferença entre moralidade e propriedade pode ser mais facilmente sentida do que expressada. Ao que quer que propriedade possa ser, ela se manifesta somente quando há retidão moral preexistente”.[14]

Com a transição de decor e decorum à prepon, chegamos bem perto da essência da cultura clássica grega assim como da essência da representação. A tensão entre o significado ético e estético de representação que vimos em caráter e decor, não existe em prepon. Somente o que é bom pode ser próprio e, nesse sentido, “o moralmente bom não é nada mais que uma harmônica realização da natureza humana, que se torna parte do belo, manifesto no particular como prepon”.[15] Em sentido primordial, prepon pertence ao domínio das aparências e significa simplesmente “ser visto claramente, ser conspícuo”. Em seu sentido plenamente articulado, significa uma participação harmônica na ordem da realidade e a expressão exterior dessa ordem.[16]

A expressão exterior não se refere à mera imitação ou representação da ordem que já nos é familiar. Ela implica mais bem que a ordem é representada de tal maneira que se torna conspícua e de fato presente em sensual abundância. É óbvio que esse tipo de representação não é diferente de mimesis. Prepon (apropriação) por si mesmo não é uma representação, mas é uma condição decisiva e critério de autenticidade e verdade da representação. É nesse sentido que prepon pertence ao domínio da representação e mimesis. Esse significado particular de prepon foi preservado em grande medida na tradição do decorum da poética e retórica, mas foi praticamente perdido no decor Vitruviano. Não é difícil demonstrar que muitas das possibilidades da representação entre a era Clássica e o fim do Barroco foram desenvolvidas ao redor de princípios de decorum mais que de decor. Muito pouco poderia ter sido construído sobre a noção mesma de decor. E isso nos traz também à inconfortável mas inevitável conclusão de que a doutrina Vitruviana do decor é mais a de um obstáculo que uma ajuda a qualquer entendimento genuíno de representação.

O segundo e mais formidável obstáculo é a distorcida e parcial apresentação de mimesis na tradição Platônica. Isso é um obstáculo que ainda não pudemos superar. A relação entre prepon e representação mimética revela quão próxima a representação arquitetônica é da mimesis. Ao mesmo tempo, nós não pensamos como regra sobre a arquitetura como sendo uma arte mimética. Isso tem parcialmente a ver com a bem estabelecida tradição na qual a mimesis arquitetônica foi reduzida à imitação de precedentes reificados (cabanas primitivas, Templo Salomônico, edifícios exemplares, etc.) ou à noções generalizadas tais como “imitação da natureza”. Mimesis não é a mesma coisa que imitação. No pensamento Clássico, mimesis era vista como uma forma particular de poiesis. A afinidade entre a arquitetura e as artes, e o papel da poiesis-mimesis como suas potenciais bases comuns é questionada de modo intelectualmente estimulante no Symposium de Platão:

Você concordará que há mais de um tipo de poesia no verdadeiro sentido da palavra –o que quer dizer, chamar algo à existência que não estava lá antes, assim todo tipo de criação artística é poesia e todo artista é um poeta.
Verdade.
Mas mesmo assim nós não os chamamos todos poetas, chamamos? Damos vários nomes para as várias artes, e somente chamamos aquela arte particular que lida com a música e o metro pelo nome que deveria ser dado a todas elas. E é a única arte que chamamos poesia, enquanto que aqueles que a praticam são conhecidos como poetas.
”[17]

A natureza ambígua de poiesis, claramente aparente nesse texto, reflete uma ambiguidade mais profunda, característica da idade na qual a cultura oral tradicional se tornou literária e pela primeira vez também filosófica. Algumas das noções tradicionais, tais como poiesis e mimesis, por exemplo, se tornaram o tema de novas interpretações filosóficas, que produziram invaloráveis insights, mas também algumas conclusões problemáticas e unilaterais. Uma particularmente infeliz foi a distinção entre artes miméticas e não-miméticas, em parte porque foi formulada de maneira polêmica e foi portanto unilateral, e em parte porque teve a mais fatal influência no último entendimento de mimesis e representação em geral. Essas são algumas das razões de por que escolhi como referência seminal a Poética de Aristóteles, cuja interpretação de mimesis é menos parcial e, mais importante, ainda baseada numa tradição pré-filosófica.

O fato de que a arquitetura não é explicitamente discutida no texto não é significante e não deve nos perturbar. O papel da mimesis e praxis humana, a formação do mithos poético e a natureza da representação são discutidos no texto, e eles constituem uma corroboração suficiente da minha tese. No entendimento de representação baseado em prepon, como vimos, a arquitetura –exceto por ser uma arte (techné) em seu próprio direito– é profundamente imbuída no ethos da vida e é também intimamente vinculada às outras artes, especialmente com a pintura e a poesia.[18] Ambas, pintura e poesia, são por acaso explicitamente discutidas no texto, o qual, como Aristóteles diz claramente no início, não diz respeito a artes individuais mas à própria poiesis (poietikes autes).[19] Poiesis, que encontra sua realização na mimesis, está também por trás da bem conhecida definição de Aristóteles de obra de arte como “mimesis da praxis”. “E é primordialmente porque uma encenação é a representação (mimesis) de uma ação (praxis) que ela, também por essa razão, representa indivíduos fazendo algo ou experimentando algo (prattontes)”.[20] O que é praxis? Falando de modo geral, é viver e agir em acordo com princípios éticos. Para um entendimento mais específico, é melhor ver a praxis como uma situação, onde os indivíduos estão não só fazendo ou experimentando algo, mas que também inclui coisas que contribuem à realização da vida humana.

As situações representam a maneira mais completa de entender a condição da nossa experiência do mundo circundante e das qualidades humanas do mundo. As situações também dotam a experiência de durabilidade em relação à qual outras experiência podem adquirir significado e podem formar uma memória e uma história. A dimensão temporal faz o processo de diferenciação e estabilização das situações mais compreensível. Quanto mais profundamente adentramos a historia, mais as situações compartilham seus precedentes comuns, até alcançarmos o nível do mito, que é a sua fundação última (compreensível). Mito é a dimensão da cultura que abre o caminho a uma unidade da nossa experiência e a uma unidade do nosso mundo. Em sua essência, mito é uma interpretação de símbolos primários que são espontaneamente formados e que preservam a memória dos nossos primeiros encontros com a condição cósmica da nossa existência. A persistência de símbolos primários, especialmente no campo da arquitetura, contribui decisivamente à formação de símbolos secundários e finalmente à formação de situações paradigmáticas. A natureza das situações paradigmáticas é similar à natureza do fenômeno descrito em diferentes terminologias como instituições, estruturas profundas ou arquétipos.

O papel da estrutura paradigmática de uma situação espacial é comparável com o papel do mythos poético num poema. Ambos têm o poder de organizar eventos e elementos individuais da praxis numa síntese e lhes dar um significado mais alto (mais universal). A formação do mythos poético ou paradigma representa somente a metade do ciclo criativo do qual a interpretação inovadora do mythos poético ou paradigma é a segunda metade. Isso é bastante claramente o significado da seguinte declaração da Poética: “O poeta deve ser o feitor não só de versos mas de mythos já que ele é um poeta em virtude da sua mimesis, e o que ele imita é a praxis.”[21]

A posição proeminente dada ao mythos poético ilustra quão importante é o conteúdo da representação no processo criativo e em que medida então o mythos poético “é o primeiro princípio e como ele era a alma da tragédia. Caráter vem como segundo. É quase o mesmo também na pintura”.[22] Não é também o mesmo na arquitetura? Se não é, como poderiam arquitetura e pintura ter alguma vez se encontrado?

Nos espaços maneiristas e barrocos, por exemplo, a relação entre pintura e arquitetura é baseada em tal medida no conteúdo, decor e significado global que o critério formal, tal como perspectiva, ilusões de óptica e composições globais contribuem pouco ao nosso entendimento. Qual é então a base na qual a arquitetura, a arte e a vida prática podem se encontrar de uma maneira que constituam uma unidade significante? Em nossa discussão anterior sobre a natureza das situações, enfatizamos seu papel sintético e sua capacidade de estruturar nossa experiência, porém as situações agem também como receptáculos de experiência e daqueles eventos que sedimentam um significado em si, um significado não só como sobreviventes ou resíduos, mas como o convite a uma sequência de futuras experiências. Esse aspecto receptivo das situações é sobretudo pré-reflexivo e sinestésico. Não há clara distinção entre o fenômeno visual, auditivo ou tátil, e isso constitui uma importante condição para a vida das metáforas. É sobretudo devido à estrutura metafórica das situações e mais especificamente devido à natureza mimética da metáfora, que os paradigmas são formados; paradigmas que exercem não só um papel sintético mas um receptivo. A unidade do espaço barroco, para escolher um exemplo, é estabelecida pela estrutura metafórica do espaço, que tem a capacidade de reunir consigo diferentes artes e ao mesmo tempo encontrar todas as condições importantes da vida prática: decorum e ethos.

O fato de que a síntese de uma situação é alcançada sobretudo através da metaforicidade da linguagem não deve ser enfatizada. O que deve ser enfatizado é o papel da metáfora em gestos significantes, rituais, dramaturgia e sobretudo na imaginação espacial na escultura, pintura ou literatura como contribuição complementar ao papel sintético da linguagem. A natureza da relação que existe entre linguagem, metáfora e situação espacial pode ser melhor ilustrada no desenvolvimento da dramaturgia antiga.

A linguagem da dramaturgia tem sua origem no canto do chorus, e chorus por sua vez emergiu da unidade ritual de evento e lugar. A palavra chorus, que se refere ao grupo de dançarinos e atores, mas também à pista de dança, tem uma etimologia comum; ambos, chorus e chora, referem-se à mesma situação simbólica de tornar-se, criação e ressurreição. A dimensão de lugar (espaço) na dança mimética torna-se mais aparente se recordamos que a dança mimética não se refere somente à dança dos dançarinos, mas também à dança das estrelas, que representa as regularidades e proporções matemáticas da ordem celestial.

É também devido à metaforicidade da linguagem que é possível relacionar a experiência de simples movimentos e rituais com a experiência de ritmos, regularidades e conceitos. A linguagem tornou-se o meio no qual paradigmas mais abstratos do processo criativo (poiesis) poderiam ser formados. Os paradigmas conceituais tornaram-se posteriormente uma fonte de tensão e conflito com o mythos poético tradicional. O papel poético do mythos foi pela primeira vez desafiado no período da cultura da filosofia, e especialmente durante a ilustração grega do século V a.C. O passo que teve um último efeito foi a filosofia da poiesis de Platão formulada em resposta a essa crise e em completa consciência da especificidade do conflito entre poiesis e filosofia –em outras palavras, em consciência “de que há desde outrora uma querela entre filosofia e poesia”.[23] Nessa situação, a mais decisiva foi a própria contribuição de Platão à transformação do mito poético tradicional num paradigma sofisticado que tinha o poder de preservar não só a verdade da poesia mas também a verdade do mito tradicional no encontro com a filosofia. A confiança com a qual ele se dirige desde sua nova posição aos poetas tradicionais não era totalmente injustificada:

“Respeitáveis visitantes, somos nós mesmos autores de uma tragédia, e é o melhor e mais refinado que sabemos como fazer. De fato, nosso completo sistema político foi construído como a dramatização de uma vida nobre e perfeita; isso é o que nós consideramos em verdade a mais real das tragédias. Assim vós sois poetas, e somos nós também poetas no mesmo estilo, artistas rivais e atores rivais, e isso no mais refinado de todos os dramas, aquele que somente pode ser realmente produzido por um código de verdadeira lei –ou, pelo menos, esse é o nosso destino.”[24]

Essa passagem representa o clímax dos argumentos em um dos seus últimos diálogos. Ela mostra como o conflito entre poesia e filosofia é estabelecido e como ele pode ser resolvido dentro do contexto do sistema político (politeia), a situação espacial mais completa que conhecemos. Qual é, em respeito a isso, a diferença entre o paradigma situacional e o mythos poético? Em termos de conteúdo e meios da representação, há uma óbvia diferença relacionada às características específicas de cada arte particular. Porém em termos de suas naturezas, a diferença é negligenciável em tal medida que nós podemos justificavelmente falar de mythos poético como a alma de todas as artes criativas, incluindo a arquitetura.

A conclusão ilustra também que a arquitetura assim como qualquer outra arte é uma representação da praxis humana e não uma representação da natureza ou ideias. A praxis está sempre situada entre ideias e natureza, e serve como um veículo para sua unidade. Não foi até muito depois que o paradigma poético foi substituído pela idea conceitual, e como uma consequência a imitação de ideias foi complementada pela imitação da natureza (idealismo, naturalismo). Tal dicotomia foi característica do helenismo, maneirismo e século XVIII, porém não era um ponto crítico antes do fim do Barroco. A natureza do paradigma poético tornou-se tema de uma nova e crítica interpretação na tentativa de formular um equivalente racional da poética tradicional. Essa iniciativa mais bem autodestrutiva foi descrita mais lucidamente na obra de A. G. Baumgarten numa série de simples definições como segue: “Por poema queremos dizer um discurso sensato perfeito; por poética, o corpo de regras ao qual o poema se conforma; por poética filosófica, a ciência da poética”.[25] A natureza da nova ciência da poética é definida na última seção do texto como uma ciência da percepção. “Coisas sabidas são sabidas pela faculdade superior como o objeto da lógica; coisas percebidas são sabidas pela faculdade inferior como o objeto da ciência da percepção ou estética.”[26] A palavra estética, que é usada aqui pela primeira vez como referência a uma disciplina do conhecimento, pertence, como eu argumentei em outra ocasião, ao domínio da representação instrumental.[27] No domínio da representação instrumental, a arte não é somente sujeita ao critério da ciência, mas como uma consequência, ela é também separada da ética, e esta, como já vimos, se tornou a principal fonte da “crise de representação”. Enquanto a primeira confrontação entre poesia e filosofia resultou numa reconciliação, a segunda confrontação, a confrontação entre poesia e ciência, resultou numa subordinação, na qual a poesia se tornou uma forma inferior de conhecimento (Gnosiologia inferior). No entanto, essa não é a última palavra e certamente não é o fim da estória. O paradigma poético da arte está ainda presente nas profundezas da nossa cultura. Isso é bem ilustrado por suas manifestações em tais movimentos como romanticismo, simbolismo ou surrealismo, por exemplo, onde “cada obra de arte ainda parece uma coisa tal como era antes, à medida que sua existência ilumina e testemunha a ordem como um todo. Talvez essa ordem não é uma que possamos harmonizar com nossas próprias concepções de ordem, mas aquela que uma vez uniu as coisas familiares de um mundo familiar”.[28] É encorajador ver que a presença do paradigma poético é reconhecida não só pelos humanistas e artistas, mas também por cientistas contemporâneos. W. Heisenberg refere-se a ela quando fala sobre “aquela” que é só um nome diferente para o papel unificador da práxis. “No último recurso, até a ciência deve confiar na linguagem ordinária, já que é a única linguagem na qual podemos estar seguros de tocar o fenômeno... a linguagem de imagens e semelhanças é provavelmente a única maneira de alcançar ‘aquela’ de domínios mais gerais. Se a harmonia na sociedade jaz numa interpretação comum ‘daquela’, o princípio unitário por trás do fenômeno, então a linguagem da poesia pode ser mais importante aqui do que a linguagem da ciência.”[29]

Notas
[1] Há uma íntima relação com o dilema entre o asceticismo da produção e a abundância do consumo, um dilema já discutido por W. Sombart, M. Weber, e mais recentemente por J. Baudrillard.
[2] H. G. Gadamer, The Relevance of the Beautiful, Cambridge University Press, 1986, pp. 38, 34, 35.
[3] G. Boffrand, Livre d’Architecture, Paris, 1745, p.26.
[4] Caráter era conhecido pelos gregos especialmente em relação ao ethos. Eles desempenhou um importante papel na “Retórica” e na “Poética” de Aristóteles, foi desenvolvido mais explicitamente em “Characters” de Theophrastus, e teve grande influência no desenvolvimento da retórica de Cícero e Quintillian e da poética de Horácio. Em 1688, Jean de Bruyère publicou seu “Les Charactères de Theophraste, traduits de Grec, avec les Charactères ou les moeurs de ce siècle”, seguido por uma importante segunda edição de Le Brun, “Conferences sur l’expression generale et particulière”, publicada em 1698 (originalmente uma conferência realizada em 1669).
[5] G. Boffrand, op. cit., p. 16.
[6] J. F. Blondel, Cours d’Architecture, Paris 1771-78, Vol. II, p. 318.
[7] J. F. Blondel, L’Architecture Française, Paris 1752-56, Vol. I.22, note a.
[8] Para mais recentes discussões sobre convenance e bienséance, ver P. E. Knabe, Schlüsselbegriffe des kunsttheoretischen Denkens in Frankreich, Düsseldorf 1972; A. Röver, Bienséance. Die äesthetische Situation im Ancien Régime, Hildesheim 1977; W. Szambien, Symmetrie, Goût, Charactère, Paris, 1986.
[9] De especial importância foi a tradição de ut pictura poesis, ver R. W. Lee, Ut Pictura Poesis – the humanista theory of painting, New York 1967, e P. E. Knabe. op. cit. pp. 463-471.
[10] Vitruvius, De Architectura, 1.2.5.
[11] Vitruvius, op. cit., 1.2.5-7
[12] No Livro VI.2.5, Vitruvius fala sobre o ajuste da simetria aos requerimentos do decor.
[13] J. J. Politt, The Ancient View of Greek Art, Yale U. P., 1974, p. 343.
[14] Cícero, Orator, 72 e 74.
[15] M. Pohlenz, “To Prepon. Ein Beitrag zur Geschichte des Griechischen Geistes”, em: Nachrichten von der Gesellschaft der Wissenschaften zu Göttingen, 1933, p. 92.
[16] Plato Greater Hippias, 294e.
[17] Platão, Symposium, 205-206.
[18] Ver a discussão de fenômeno de ut pictura poesis, nota 9.
[19] Aristóteles, Poetics, 1447a; ver também E. Grassi, Die Theorie des Schönen in der Antike, Köln 1962, p. 118.
[20] Aristóteles, Poetics, 1450b.
[21] Aristóteles, Poetics, 1451b 10.
[22] Aristóteles, Poetics, 1450b 21.
[23] Platão, República, 607b.
[24] Platão, Laws 817b.
[25] A. G. Baumgarten, Meditationes philosophicae de nonnullis ad poema pertinentibus, Halle 1735, para. 9.
[26] Ibid. para. 116.
[27] Architecture and the conflict of representation, A. A. Files No. 8, 1985.
[28] H. G. Gadamer, op. cit., p. 103.
[29] W. Heisenberg, Across the Frontiers, New York 1974, pp. 120-121.

Referência:
Dalibor Vesely, The poetics of representation, Daidalos, Architektur Kunst Kultur n. 25, 1987.

Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Arquitetura e a Poética da Representação / Dalibor Vesely" 08 Mai 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/601521/arquitetura-e-a-poetica-da-representacao-slash-dalibor-vesely> ISSN 0719-8906

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