O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina

Em um terreno de 350 hectares, 24 superquadras organizam as dez mil unidades habitacionais do conjunto Ciudad Kennedy, em Bogotá. A sua construção, entre 1961 e 1963, abarca um projeto de cidade que está inserido em uma trama social, política e ideológica que envolve a Colômbia em particular, mas que é compartilhada por toda a América Latina em alguma medida durante o período da Guerra Fria.

O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina  - Imagem 2 de 8O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina  - Imagem 3 de 8O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina  - Imagem 4 de 8O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina  - Imagem 5 de 8O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina  - Mais Imagens+ 3

O contexto histórico de criação da Ciudad Kennedy é marcado pelas intenções estadunidenses de consolidação do Capitalismo por meio da lógica desenvolvimentista que imputaram sobre o território latino-americano. Este desejo encontrava respaldo nos governos liberais-conservadores que se alternavam no comando do governo colombiano. Estes, por sua vez, procuravam se manter no poder através da repressão aos oposicionistas e, principalmente, através da criação de políticas sociais para redução dos conflitos de classe que tomavam lugar nas cidades colombianas. Entre elas, o combate ao déficit habitacional que crescia com o aumento do êxodo rural. 

Bogotá, a capital e a maior cidade a partir de certo período se torna assim palco de grandes planos de urbanização criados por nomes conhecidos, como Le Corbusier, José Luis Sert e Paul Wiener. A conjuntura política do período foi fator chave para as importações de ideários e práticas urbanísticas elaborados por arquitetos europeus. 

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Le Corbusier, Josep Lluis Sert, Paul Lester Wiener, Carlos Arbeláez e Francisco Pizano em Bogotá, publicada na revista Cromos, Bogotá, 9 de setembro de 1950. Archdaily. Imagem © Revista Cronos

Localizada sobre as Cordilheiras dos Andes, a cidade era considerada de difícil acesso, e mesmo obtendo primazia urbana pela Constituição de 1886, apresentou adensamento considerável somente após 1951 (OSPINA, 2012). Os planos para a cidade, no geral, de 1920 a 1940, se pautaram por iniciativas privadas de pequena escala, quase individual, de agenciamento de esforços de urbanização. 

Estes esforços não eram o suficiente para estabelecer os moldes modernos à capital e, como as informações corriam entre as cidades latino-americanas, sabia-se que a modernização das capitais era premente. Primeiramente sob um molde academicista – ou seja, eclético ou advindo das beaux arts europeias (PINHEIRO, 2009) – e, depois, sobre os moldes modernos do CIAM, sendo a visita de Le Corbusier à América Latina, inclusive à Bogotá, uma evidência substancial da influência que os ciclos de pensamentos europeus e estadunidenses tiveram na produção destas cidades.

Durante o período de hegemonia dos governos liberais, de 1930 a 1946, o país perpassou por um breve momento de bem-estar social, em que os presidentes visavam modernizar as bases do Estado e inserir a Colômbia em um modelo moderno de burocracia. Neste ínterim, no final dos anos 1930, a relação com os EUA, estabelecida desde 1920, se intensifica a ponto de a Colômbia ser tida como “país modelo de cooperação” (NIÑO apud. OSPINA, 2012, p.47).  

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Avenida Séptima no centro de Bogotá na década de 1930, com pedestres e bondes elétricos predominando entre os meios de transporte. Foto © Allen Morrison

Findando a influência liberal, o país passou por um período de austeridades do gasto público que levou a população ao desemprego. Com isso, um dos candidatos mais à esquerda do partido liberal, Jorge Eliécer Gaitán, ganhou grande apreço popular. Gaitán tornou-se a figura política mais importante da primeira metade do século XX na Colômbia após seu assassinato, em 1948, que resultou na revolta popular denominada Bogotazo, em Bogotá. O evento foi de escala tamanha que rumou o caminho do desenvolvimento da cidade, inclusive em seu planejamento urbano.[1]

O Estado colombiano não ofereceu, desde o estabelecimento da República no final do século XIX, as condições básicas para uma efetiva democratização do país (OSPINA, 2012). No entanto, os planejamentos para as cidades não deixaram de ser pensados, o que se mostra com o grande fluxo de ideias vindas de fora fermentadas pelas mentes do país a partir de certo momento.

Ainda, caia sobre o território o pensamento de “cidade latino-americana” dentro de uma utopia moderna e desenvolvimentista, marcando linhas imaginárias de segregação urbana. Este pensamento foi posto em prol do entendimento de território como um vazio urbano em subdesenvolvimento, atrelado à construção genérica, imaginada, de cidade, cultura e povo que é consumido e alimentado pelos Estados Unidos e Europa. 

O ciclo da imaginação social latino-americano vai desde o otimismo modernizador da planificação até sua inversão crítica radical. Ele é produzido a partir de um cruzamento de fatores: a consolidação da sociologia funcionalista e a teoria da modernização, correspondente à visão weberiana [2]. É, ainda, atravessado por duas teorias bases: o contínuo folk-urbano, como um processo civilizatório, e a cultura da pobreza, que procurava provar a existência de uma “cultura” dos migrantes ao introduzir o tradicional como parte do moderno (GORELIK, 2005). A partir disso, é possível dizer que a América Latina é tida como campo de experimentações a partir dos embates de hegemonia cultural sobre o globo entre EUA e Europa antes da Segunda Guerra; e, após, com a hegemonia estadunidense consolidada, a partir da política de boa vizinhança que se entremeia no combate ao comunismo.

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Relação entre a extensão do atual bairro Ciudad Kennedy no contexto da cidade de Bogotá. Autoria própria, a partir da implantação produzida pelo CINVA (1964), imagens do Google Satellite (2022) e bases do Governo da Colômbia (2022)
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Relação entre a extensão do atual bairro Ciudad Kennedy e o perímetro original do projeto. Autoria própria, a partir da implantação produzida pelo CINVA (1964), imagens do Google Satellite (2022) e bases do Governo da Colômbia (2022)

O desenvolvimento de Bogotá e a Ciudad Kennedy

O déficit habitacional era visto não só como um problema de habitação, mas principalmente como um foco de conflitos sociais potencialmente perigoso para o governo colombiano – visto que a Revolução Cubana ecoou nos ideais das guerrilhas assombrando o governo do país. Logo, a solução emergencial do governo era acabar com os conflitos sociais através da diminuição do déficit habitacional nos grandes pólos urbanos.

E para sustentar um projeto dessa envergadura seria necessário um investimento massivo de recursos financeiros no mercado nacional. O então presidente estadunidense John F. Kennedy criou o programa Aliança para o Progresso (APP) com a finalidade de financiar projetos desenvolvimentistas por toda a América Latina. A APP era uma das ferramentas com fins de marcar a presença dos EUA na América Latina e um meio de combater qualquer ameaça de um levante comunista neste território.

O plano para o conjunto habitacional Ciudad Kennedy contava com dez mil unidades, sendo 5.893 casas autoconstruídas. O maior conjunto habitacional da época, até o momento, contava com 960 unidades. Para além das unidades, o plano para a área tinha vastas avenidas arborizadas seguidas de comércios variados, igrejas, estações policiais, cinemas, postos de saúde, postos bancários, instalações administrativas construídas pelo estado e centros de convivência, seguindo os modelos de unidades de vizinhança do urbanismo moderno.

Para entender quais as pretensões que guiavam o projeto é preciso entender quais foram os agentes institucionais que conduziram e incorporaram os bastidores de todo o processo. O primeiro deles, o Instituto de Crédito Territorial (ICT), criado em 1939 pelo governo colombiano, era uma instituição de crédito social dentro do âmbito habitacional com larga experiência na coordenação de diversos projetos de conjuntos habitacionais pela Colômbia nos anos 1940. 

Seu ex-diretor, Rafael Mora-Rubio, esteve à frente de outra importante instituição no processo de planejamento, o CINVA, Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento, no período em que se deu a construção da Ciudad Kennedy. Alinhado a um projeto sócio-técnico já muito trabalhado no ICT, argumentavam que  a “mais importante que o montante de dinheiro investido na produção das casas é o melhoramento integral da vida dessa população” (ARAVECCHIA-BOTAS, 2019, p.74). 

Criado em 1951, o CINVA atuava como um braço da Organização dos Estados Americanos (OEA), ligado à Universidade Nacional da Colômbia. Era composto por especialistas, técnicos e estudantes de diversas áreas do conhecimento, críticos à abordagem exclusivamente técnica no planejamento urbano e habitacional e em defesa do aprofundamento das análises de questões sociais e político-administrativas da região. Defendiam, ainda, a participação popular no processo de planejamento.

Esta é a chave de atuação do programa interdisciplinar de atendimento aos beneficiários desenvolvido pelo ICT para distintas escalas de integração: família, vizinhança e, por último, comunidade, prevendo um grande número de beneficiários de baixa renda. As diretrizes para a seleção previam que os moradores deveriam se enxergar como famílias na vida em sociedade, com ações públicas previsíveis, complacentes aos projetos complementares que, segundo o instituto, ajudariam a consolidar os modos de vida propostos para o conjunto. 

Assim, a concepção de todo o conjunto da Ciudad Kennedy tem como uma das bases a consolidação de uma comunidade entre os moradores. Essa ação, que atinge desde formas de organização familiar até o reconhecimento de comunidade, mostra um pouco do que a Ciudad Kennedy pretendia ser – alinhada ao pensamento acadêmico sociológico acerca das cidades latino-americanas. 

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Construção do conjunto Ciudad Kennedy. USAID, Historical Archive. https://www.dvidshub.net/image/2074863/multi-family-unit-under-construction, PUBLIC DOMAIN

As ideações de América Latina e as convergências à produção da Ciudad Kennedy

A partir das ponderações feitas por Adrián Gorelik (2005) acerca da “cidade latino-americana” como categoria, fica evidente que ela fora produzida a partir da construção cultural e intelectual que pretendia objetivá-la como forma de conhecimento. Este termo advém de uma construção de uma imagem pré-determinada, corporificada nas figuras reproduzidas pelos Estados Unidos e Europa que a partir da cultura das migrações, fragmenta os países latino-americanos e os aglutina, formando uma “colcha de retalhos”. Ou seja, cada território da América Latina perde sua unicidade e passa a ser abarcado por esse modelo abrangente e nada idiossincrático. Disto resulta a articulação deste termo para entendê-lo, no momento histórico, como categoria do pensamento social. Uma figura do imaginário intelectual e político ao redor do continente.

Este entendimento de construção cultural visou oferecer uma alternativa à noção de invenção, que remete a uma tradição da ideia de continente novo e vazio, sem história, na qual a ideia de inovação e progresso abriram caminhos por meio de uma imposição cultural produtiva a implantar a civilização e novas realidades. 

Não obstante, os apelos para “cidade latino-americana” oscilam entre a necessidade política de identidade e o questionamento acadêmico sobre a diferença e ponderação. Este por sua vez, funcionou como gênese do pensamento social latino-americano, entre os anos de 1950 e 1970, fagocitando as figuras, disciplinas e instituições do novo mapa acadêmico e político.

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Panorámica hacia el oriente de Bogotá (1970). Foto © Rudolf Schrimpff

A modernidade que outrora foi pensada como uma atuação histórico-cultural se transformou em técnica de propagação de uma “civilização industrial” como modelo de desenvolvimento, a modernização (GORELIK, 2005). Deste modo, a cidade foi transformada em pólo atrativo para as pautas modernas de vida em regiões que prescinde delas – ou seja, polos com potencial de desenvolvimento – e a América Latina é então tida como região privilegiada para mudança.

A ideia de “território vazio” foi articulada à abordagem da cidade latino-americana como laboratório pelos EUA. Na Colômbia, sob o amparo da grande gama de instituições criadas dentro desta atuação estadunidense, essa conduta resultou na potencialização do campo das ciências sociais e da arquitetura, consolidando um corpo de pensadores, convergentes ou divergentes.

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Cerimônia da Aliança para o Progresso no Projeto Habitação Techo, Bogotá, Colômbia. John F. Kennedy Presidential Library and Museum. https://www.jfklibrary.org/asset-viewer/archives/JFKWHP/1961/Month%2012/Day%2017/JFKWHP-1961-12-17-E?image_identifier=JFKWHP-ST-285-2-61 , Copyright Status Public Domain

Isto surte efeitos diretos nos conceitos de políticas de moradia dos anos 1960 de modo a tecer críticas aos planos desenvolvimentistas. Estes se valeram da construção de conjuntos habitacionais para converter os moldes coloniais em um ambiente propício para a inserção da população no ciclo de produção capitalista mundial, dentro da divisão que serviria aos países hegemônicos.

Nesse sentido, a concepção da Cidade Kennedy, em seu propósito quase civilizatório de ordenação das famílias – e dentro do contexto de aumento populacional de Bogotá por êxodo rural –, vai de encontro ao que a intelectualidade colombiana versa com o conceito da cultura da pobreza.

A ideia que permeia a concepção do conjunto, a partir de seus agentes, é a de configuração de uma comunidade, e uma comunidade que fosse propriamente inserida na cidade, tanto por meio de seu projeto quanto de seu atendimento às famílias. Ou seja, dentro dos moldes modernos, é a constituição da cidade pela habitação de propósitos cívicos. 

Mas, no caso da Cidade Kennedy, isso é respaldado pelo CINVA que, enquanto braço da OEA – instituição com ligação estadunidense – se presta à conformação da habitação social colombiana balizada pelas influências desenvolvimentistas. E é, ainda, financiada pelos Estados Unidos. 

Essa aliança de financiamento estadunidense, então, não é gratuita. Parte de um desígnio intencional de inserir o território latino-americano no que convém à divisão internacional da produção econômica-industrial. E justaposto ao entendimento econômico, há a inserção no campo da experimentação, que se refletem nos planos propostos para Bogotá, partindo do propósito de pôr em prática as novas ideias, verificando se são capazes de afirmar as noções civilizatórias para com a América Latina.

Vê-se, então, que a constituição do conjunto habitacional é permeado de ambiguidades que dizem respeito aos embates de hegemonia e também às próprias vontade dos agentes colombianos presentes. A produção da cidade que advém disso é vista como uma indústria responsável pelo desenvolvimento, e conforma o território dentro desta lógica.

Notas
1. O evento do Bogotazo resultou na destruição de prédios e incêndios no centro histórico. Diz-se que anunciou não só o discurso anticomunista dos EUA (devido à posição do governo de culpar o comunismo pelo caos) mas também que abriu o caminho para o entendimento do planejamento urbano como as vias para a modernização.
2. A definição weberiana de modernidade se caracteriza pelo momento em que “a cidade começa a ser vista como motor da modernização social, em íntima relação com as forças produtivas e com a consolidação dos poderes políticos centralizados.” (GORELIK, 2005, p. 117)

Referências bibliográficas
ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce. Técnica y Política en la producción de la ciudad latinoamericana: ciudad Kennedy, Bogotá (1960-1963). In: Arquitectos, profesionales, expertos y vanguardistas en el cono sur. A&P Continuidad. FAPyD - UNR, 2019. p. 70-81.
ARAVECCHIA-BOTAS, N. & CASTRO, A. Visões e representações da marginalidade no território. Aula ministrada para a pós-graduação Geografia, Cidade e Arquitetura, Associação Escola da Cidade, São Paulo, 2015. Disponível em: <https://youtu.be/AqNW9WLxtlM>
GORELIK, Adrián. A produção da “cidade latino-americana”. Tradução de Fernanda Arêas Peixoto. Tempo Social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 17, n. 1, jun. 2005, p. 111-133.
PINHEIRO, Eloísa Petti. Circulação de ideias e academicismo: os projetos urbanos para as capitais do Cone Sul, entre 1920 e 1940. In: FILGUEIRAS GOMES, Marco A. (Org.) Urbanismo na América do Sul: circulação de ideias e constituição do campo, 1920-1960. Salvador: EDUFBA, 2009. p. 119-148.
SÁNCHEZ OSPINA, Adriana Marcela. Política e Planejamento: Bogotá, trinta anos de práticas urbanísticas, 1926-1958. 2012. Dissertação (Mestrado em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2012. doi:10.11606/D.102.2012.tde-24012013-102457.

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Sobre este autor
Cita: Bruna Bonfim Guimarães e Nara Albiero. "O projeto habitacional Ciudad Kennedy e a ideia de América Latina " 13 Mar 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/978267/o-projeto-habitacional-ciudad-kennedy-e-a-ideia-de-america-latina> ISSN 0719-8906

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