Arquiteturas populares em sertões da Bahia: perspectivas sociais, econômicas e políticas

Arquiteturas populares em sertões da Bahia: perspectivas sociais, econômicas e políticas

Diversas casas com fachadas de platibanda são observadas em espaços urbanos e rurais de sertões da Bahia. Muitas delas apresentam-se revestidas com módulos de porcelanato, gradis de ferro, além de portas e janelas metálicas. Esta recorrência pode ser entendida como um fato cultural: as construções aqui discutidas foram observadas em cidades, distritos e povoados localizados nos municípios de Monte Santo, Uauá e Curaçá no ano de 2019.

Estas fachadas trazem em si composições gráficas, produzidas por aqueles que as constróem em diálogo com os moradores das próprias casas. São diagramadas, por pedreiros e ou moradores-construtores¹, informações visuais impressas sobre os revestimentos cerâmicos, assentados sobre o plano. Ainda na composição do plano frontal, são fixadas grades que também desenham as aberturas de grande parte de residências e estabelecimentos estudados.

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Casa em Curaçá (distrito-sede do município homônimo), Bahia. Image © Pedro Levorin
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Casa em Mandassaia, município de Monte Santo, Bahia. Image © Pedro Levorin

Estas casas parecem retomar um fazer específico, presentes em fachadas de platibandas de casas remanescentes. São edificações mais antigas, que aparecem em menor quantidade entre as diversas tipologias existentes. No lugar de materiais industrializados, são observadas composições plásticas moldadas ao longo das extensões. Em alto relevo, integram as superfícies dessas fachadas com formas geométricas, orgânicas, além de molduras nas aberturas das janelas, portas e nos limites do plano frontal. É possível observar o dado manual do trabalho que origina as formas e composições. Além do trabalho em relevo, tais casas são caiadas nas mais diversas cores.

Entre as décadas de 1970 e 1990, a fotógrafa soteropolitana Anna Mariani registrou centenas de exemplares desta tipologia específica, em diversos interiores de estados nordestinos. Suas diversas viagens "em direção ao Sertão", como pontua a fotógrafa, deu origem ao livro Pinturas e Platibandas (2010). A publicação reúne diversas construções caracterizadas por uma expressiva diversidade plástica e tonal. Este mesmo tipo de construção foi objeto de um extenso estudo produzido pela arquiteta pernambucana Bethania Brendle, entre os anos de 1994 e 1996, em seu estado.

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Casa em Caratacá, município de Uauá, Bahia. Image © Pedro Levorin
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Casa Barro Vermelho, município de Curaçá, Bahia. Image © Pedro Levorin
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Casa em Poço de Fora, município de Curaçá, Bahia. Image © Pedro Levorin

No texto em que Mariani comenta seu trabalho, publicado na reedição de 2010, também aponta características de casas que não foram fotografadas, mas que eram vistas cada vez com mais frequência nos interiores visitados, conforme os anos se passavam. Segundo a fotógrafa, portas e janelas industrializadas, venezianas, pinturas com látex vieram a integrar a produção deste tipo de arquitetura popular. As fachadas de platibandas davam o lugar que antes era ocupado por elementos produzidos manualmente para peças e materiais que traziam a rigidez industrial:

Os novos padrões introduzidos pelo progresso necessário são assimilados e utilizados enquanto persistem aspectos absorvidos de estilos tradicionais, ao sabor da vontade dos mestres-pedreiros e dos moradores. (...) As fachadas mostradas no livro possuem semelhanças e, ao mesmo tempo, são profundamente singulares. Não defendo que sejam modelos para novas construções nem que este padrão deva ser mantido para sempre, posto que vivemos numa era de transformações nunca vistas e cabe às populações a decisão de manter a tradição ou atender a novos anseios e propostas oferecidas a cada dia. — Anna Mariani, 2010, p. 231

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Casa em Poço de Fora, município de Curaçá, Bahia. Image © Pedro Levorin
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Casa em Patamuté, município de Curaçá, Bahia. Image © Pedro Levorin

Mariani observa que instâncias técnicas e materiais do construir eram pouco a pouco alteradas, elaborando novos tipos de expressividade nos lugares que percorreu. Gustavo Piqueira, em seu livro Desvios (2018), publicou uma série de fachadas de platibandas e muros compostos de revestimentos cerâmicos, portões e janelas de ferro, em sertões do Piauí. Assim como as platibandas retratadas por Mariani, que não eram uma exclusividade de um único estado nordestino, o fenômeno das fachadas compostas de materiais industrializados pode ser visto em outros espaços que não apenas os municípios aqui citados.²

As edificações produzidas recentemente trazem consigo a permanência da platibanda como prática popular na atividade da construção, que conserva uma intencionalidade plástica e visual. A fachada funciona enquanto corpo ativo, que passa a elaborar em si: 1) a atividade de uma indústria; 2) uma série de programas sociais que transformaram a possibilidade de consumo de classes populares; 3) a transformação do trabalho realizado sobre a fachada por parte de quem constrói. Em suma, negociam com diversos setores e instâncias simbólicas para acontecer. A fachada, portanto, é a elaboração material e imagética de um processo histórico; uma permanência que incorpora transformações de um tempo, explicitando-as.

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Casa em Riacho da Onça, município de Monte Santo, Bahia. Image © Pedro Levorin

No início da década de 2000, o setor da construção civil passava por uma situação de retração de investimentos federais, com um contingenciamento de 85%. José Carlos de Oliveira Lima, Presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos de Cimento (Sinaprocim), sinalizou suas expectativas em relação às promessas colocadas por Luís Inácio Lula da Silva, então candidato à presidência da República, que propunha desenvolver o segmento através do investimento de 5,3 bilhões de reais para a construção e reformas de moradias. Segundo Oliveira Lima, o orçamento ainda seria inferior ao valor necessário para solucionar o déficit habitacional no Brasil, que expôs uma posição de dúvida do sindicato em relação ao desenvolvimento do setor, frente ao que propunha Lula antes de se eleger.

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Casa em Itapicuru, município de Monte Santo, Bahia. Image © Pedro Levorin

Subvertendo as expectativas, anos antes do grande investimento destinado ao Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, os números indicavam prosperidade nas atividades da indústria da construção civil. Em 2008, a venda anual de materiais de construção totalizava 101,8 bilhões de reais, segundo o relatório da Associação Brasileira de Materiais de Construção (ABRAMAT), publicado em 2009. Dois anos antes do lançamento do grande programa de habitação social, em março de 2007, em discurso durante a abertura da 15ª edição da Feira Internacional da Construção (Feicon) em São Paulo, Lula narrou os caminhos da indústria da construção civil, que já representava uma base substanciosa da economia nacional da primeira década do milênio: 

Os produtos e lançamentos aqui reunidos reafirmam as dimensões de uma indústria que contribui com 60% do investimento brasileiro; uma indústria que impulsiona oito cadeias produtivas; emprega mais de um milhão e trezentas mil pessoas e deve crescer – já ouvi aqui 9%, 12% –, nos meus números está por volta de 6% este ano – eu prefiro ser pessimista –, depois de já ter registrado uma expansão de 4,5% em 2006. — Lula, 2007

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Casa em Monte Santo (distrito-sede do município homônimo), Bahia. Image © Pedro Levorin

No ano de 2003, Lula já anunciava que o setor da construção civil seria um dos principais alicerces do crescimento econômico nacional. Em seu discurso, na XI Feicon, o recém eleito presidente apresentou a articulação que o nicho teria: geraria empregos e impulsionaria uma cadeia de produção, de forma ampliar este espaço do mercado nacional aberto ao consumo popular. Dentro de sua fala, a construção dentro de novos padrões de materiais significaria a antítese do crescimento da miséria no país.

Numa reunião em que eu estive com mais de dois mil prefeitos, anunciei a liberação, pela Caixa Econômica Federal, de 1 bilhão e 400 milhões de reais para o setor da construção civil. O Ministério das Cidades está discutindo não apenas com a Caixa, mas com todos os setores que podem ajudar a financiar, como retomar a construção de casas no nosso país. E vocês sabem que a construção pode dinamizar os setores que produzem para as habitações brasileiras, e isso requer disposição política, isso requer vontade. O que nós não poderemos mais ficar assistindo é ao crescimento espraiado da miséria no nosso país. (…) se continuarmos a permitir que as favelas cresçam neste país, menos cerâmicas, menos azulejos, menos torneiras, menos produtos as pessoas vão poder comprar. Então, cabe ao Estado brasileiro, em parceria com os governos estaduais e municipais, ser o indutor para que a construção civil tenha, efetivamente, o espaço que precisa para gerar os empregos que nós queremos e precisamos. — Lula, 2003

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Casa em Itapicuru, município de Monte Santo, Bahia. Image © Pedro Levorin

A pobreza, no entanto, historicamente não pode ser encarada como uma realidade homogênea no extenso território nacional. Caio Prado Jr. retoma que país é marcado por sintomas históricos relacionados ao povoamento e interferências no espaço decorrentes dos processos de invasão, dominação, exploração e escravidão, vinculados a produção interna tanto no período colonial como nos que seguiram (SINGER, 2012). André Singer (2012) retoma que encontrava-se localizada nas regiões Norte e Nordeste grande parte do que se entende como subproletariado. Este grande grupo social vivia com baixíssimo padrão de consumo e sem oportunidades de ingresso formal no mercado nacional. Em 1976, segundo Paul Singer, tal fração social compunha 48% da população economicamente ativa (PEA), e que seguiu sem grandes mudanças em suas proporções, como apontou Celso Furtado antes da virada do milênio (SINGER, 2012). Essa grande massa foi entendida como fator principal do que Prado Jr. nomeou como “grande contradição brasileira”, pois significava potencialmente um grande mercado interno consumidor, mas não era apta economicamente a desenvolver tal performance por sua condição de miséria (SINGER, 2012).

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Casa em Pedra Vermelha, município de Monte Santo, Bahia. Image © Pedro Levorin

Estes fatores alinhavam-se dentro da principal bandeira petista, que almejava o crescimento econômico nacional por meio da redução da pobreza. Dessa forma, para além da expansão de um setor industrial e todo impacto estrutural que teria esta medida, foi necessário tornar apto enquanto consumidores o grande número de pessoas que viviam em situação de pobreza. Medidas de desenvolvimento regional, como a implantação de cisternas na região do semiárido brasileiro, a distribuição de renda por meio do Bolsa Família, e a ampliação do crédito foram responsáveis por transformar as possibilidades desta parte da população (SINGER, 2012). Combinadas, tais ações aqueceram setores específicos do mercado, como foi o caso da indústria da construção civil, além de terem promovido mudanças nas perspectivas socioeconômicas de populações especificamente localizadas em interiores de estados nordestinos. A ampliação do crédito consignado, em 2005, gerou a “circulação de dezenas de milhões de reais”, quando o crédito marcava um crescimento de 80% desde o começo do mandato de Lula (SINGER, 2012). 

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Casa em Curaçá (distrito-sede do município homônimo), Bahia. Image © Pedro Levorin

Não à toa, a ABRAMAT foi fundada em 2004. O órgão se autodefine “referência institucional na defesa dos interesses e da visão de um setor que, por sua profunda inserção na vida do país, reflete e expressa o próprio ritmo do progresso nacional” (ABRAMAT)

Hoje, a associação possui um grande banco de dados técnicos articulados com setores acadêmicos ligados a esta cadeia produtiva. O investimento no setor e a possibilidade da absorção cotidiana das mercadorias por classes baixas para a atividade da construção popular e periférica passaram a ser uma realidade cotidiana e crescente. Não só pelas periferias dos centros urbanos, mas também por outras periferias regionais do país. As mudanças dentro das atividades de construção acompanharam a proporção dos investimentos federais nos setores industriais, espraiadas pelo território nacional. O Instituto de Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) passou a notar características físicas mais específicas de residências a partir do ano de 2010. O órgão informa que passou a contar com inovações em seu conteúdo temático, ampliando as características avaliadas pelo Censo Demográfico. Passaram a ser registradas informações específicas relativas à habitação e aos bens da população. Nesta edição da pesquisa, constou uma nova categoria de dados: “Tipo de material da parede externa”. As variáveis eram: alvenaria com revestimento; alvenaria sem revestimento; taipa revestida; taipa não revestida; e outros.

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Casa em Lagoa de Cima, município de Monte Santo, Bahia. Image © Pedro Levorin

Torna-se, assim, notável a apropriação dos produtos industrializados que vieram a ser introduzidos na construção popular. As transformações em espaços urbanos passaram a não ser exclusivas dos grandes eixos econômicos do Sudeste e das capitais dos estados, onde existem maiores concentrações de fluxos econômicos. E nesse sentido, estes fatos podem ser lidos por meio da materialidade e da imagem das residências das fachadas de platibanda. Pode-se perceber a articulação que possui a casa em relação a diversas esferas sociais, políticas e econômicas. Desse modo, a casa torna-se uma das principais ferramentas do projeto político petista. Pode ser lida como um objeto histórico que não é estanque, que continua acontecendo e variando ao longo do tempo. Concilia forças rigorosas: a ortogonalidade modular de um projeto industrial e de desenvolvimento nacional junto de expressividades visuais e materiais específicas. É na fachada que se estabelece a mediação entre o privado, individual, e o público, coletivo. A fachada é a superfície que possibilita e produz concretamente a relação entre estes dois âmbitos fundamentais de espaços urbanos.É, portanto, peça que dialoga com a realidade de maneira porosa, pelo que a constitui e pelos sentidos que passa a produzir enquanto matéria e imagem em determinado um espaço.

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Notas
1. Termo sugerido pela arquiteta pernambucana Bethania Brendle (1996), pesquisadora do tema.
2. A produção deste tipologia arquitetônica se relaciona com questões históricas estruturais, pois aparecem comumente no cenário da construção autogerida em diversos estados nordestinos, e até mesmo em outras regiões do país.

Referência Bibliográficas
ABRAMAT. “Cenário Macroeconômico 2009-2016”. 2009. Disponível em: <http://www.abramat.org.br/datafiles/publicacoes/cenario-macro2009-2016.pdf>. Acesso em 10 out. 2020.
BRENDLE, Maria de Betânia Uchôa Cavalcanti. Arquitetura popular de Pernambuco e suas fachadas de platibanda. São Paulo: Projeto Design. 1996, pp. 92-5.
LIMA, José Carlos de Oliveira. Governo Lula e a construção civil. Sinaprocim (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos de Cimento), 2001. Disponível em: <http://www.sinaprocim.org.br/imprensa/artigo_26.htm>. Acesso em 20 ago. 2020.
MARIANI, Anna. Pinturas e Platibandas. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2010.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
PIQUEIRA, Gustavo. Desvios. 1ª Edição: São Paulo, WMF Martins Fontes, 2018.

Este artigo decorre do Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvido na Associação Escola da Cidade intitulado “Incorporações: Imagem e materialidade de arquiteturas populares contemporâneas em sertões da Bahia” com orientação da professora Dra. Marianna Boghosian Al Assal, em 2020. Disponível aqui.

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Sobre este autor
Cita: Pedro Levorin. "Arquiteturas populares em sertões da Bahia: perspectivas sociais, econômicas e políticas" 03 Out 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/968393/arquiteturas-populares-em-sertoes-da-bahia-perspectivas-sociais-economicas-e-politicas> ISSN 0719-8906

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