Paisagens efêmeras: um domingo na paulista

Na análise de um projeto arquitetônico é comum que nos debrucemos sobre questões como quais foram as demandas e contexto histórico daquele projeto, como foi seu processo de elaboração e representação, de que forma foi construído. Tendemos a estudá-lo como um processo finalizado. Entretanto, no momento em que a obra é construída ela se abre à cidade e a terceiros, se torna vulnerável a falhas, imperfeições, requalificações e apropriações não previstas a priori. As consequências derivam então de conflitos, relações sociais e políticas que atuam na cidade formando uma paisagem fluida e mutável. 

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Para entender os processos de apropriação da cidade sobre a obra, ou seja, a pós ocupação do espaço, é necessário levar em conta o cotidiano que atua sobre ele. Em seu livro Tentativa de esgotamento de um local parisiense, Georges Perec descreve uma esquina de Paris em busca do seu esgotamento com o propósito de revelar seu cotidiano. Segundo ele:

O que está realmente acontecendo, o que estamos experienciando, o resto, todo o resto, onde está? Como devemos levar em conta, questionar, descrever o que acontece todos os dias e se repete todos os dias: o banal, o cotidiano, o óbvio, o comum, o ordinário, o infra-ordinário, o som de fundo, o habitual?

(…) Como falar dessas ‘coisas comuns’, como localizá-las, esvaziá-las, arrancá-las da escória em que permanecem atoladas, como dar-lhes um significado, uma língua, deixá-las finalmente falar do que é, do que somos. – Georges Perec, An Attempt at Exhausting a Place in Paris, 1989 

Essas dinâmicas constituem diariamente na cidade uma paisagem temporária que difere da paisagem física e concreta, as quais são, geralmente, planejadas. O registro é, portanto, uma forma de entender o espaço ocupado e os agentes que constituem essa paisagem formada por dinâmicas sociais e efêmeras. Entende-se por registro um processo de mapeamento, identificação de padrões e de realidade observada para o desenho — o que permite uma seleção precisa de que elementos mostrar e pela sua capacidade de dissecar inúmeras partes de uma mesma cena. Qual paisagem se forma no cotidiano das relações sociais para além do espaço material? O que leva a formação dessa paisagem?

Em um movimento recente, a cidade de São Paulo abriu algumas de suas vias destinadas a carros para o uso de pedestres, atividade que ocorre principalmente aos domingos. Assim foi com a Avenida Paulista, aberta desde junho de 2015 a partir de decreto da gestão de Fernando Haddad. Desde então, todos domingos das 10h às 18h a avenida é fechada para automóveis e ocupada por pessoas, que realizam lá suas inúmeras atividades de lazer. O espaço, projetado para fluidez e circulação de automóveis, com seus canteiros, travessias de pedestre, organização de faixas e faróis, é inteiro ocupado por um uso inédito, não previsto a priori no projeto original e nas subsequentes reformas da avenida. Assim, todos elementos físicos da via se tornam potenciais suportes para a forma com que as pessoas se apropriam do lugar, onde canteiros podem se tornar bancos, grades podem ser expositores e faixas possíveis formas de organizar o fluxo de pessoas.

Para analisar de que forma a avenida é ocupada aos domingos, é necessário entender que existem questões preexistentes à decisão da abertura que mostram uma vocação da avenida como espaço público de lazer. Embora a avenida nasça com caráter estritamente residencial, ocupada pela elite que buscava afastamento do centro, com o rápido crescimento urbano em direção ao espigão central o traço domiciliar da Paulista começa a se transformar e nos primeiros anos da década de sessenta já estão outorgados o funcionamento de lojas e edifícios comerciais assim como prédios institucionais e de serviços. Essas mudanças foram seguidas por reformas na avenida e novos projetos de edifícios que incentivavam a apropriação do espaço pelo pedestre por meio de térreos comerciais, canteiros e sinalizações. Quando Nadir Mezerani elaborou o projeto Nova Paulista em 1967, o qual propunha o rebaixamento da circulação de automóveis para liberação do chão da avenida para passeio, apresentou também uma proposta que tinha como partido entregar a área destinada a circulação de carros ao pedestre.

As aberturas teste da avenida realizadas a partir do final de junho de 2015 foram possíveis após uma série de negociações entre a Prefeitura de São Paulo, chefiada então por Fernando Haddad, o Ministério Público e a associação da região da qual fazem parte comerciantes, empresários e moradores do entorno. Houve uma forte oposição do ministério público em relação a abertura, especialmente semanal, alegando questões de segurança, possíveis repercussões negativas no comercio, dificuldade no acesso aos hospitais da região e piora no trânsito local. Apesar disso, por volta de junho de 2016 a abertura foi oficializada pelo programa “Ruas Abertas” e atualmente a avenida é quase integralmente dedicada ao pedestre aos domingos.

Com a avenida aberta, asfalto, calçada e alguns edifícios que abrem seus térreos ao público se tornam, então, o novo espaço do pedestre, cercado por construções de caráter privado e objetos que fecham as vias transversais, delimitando o espaço público temporário. No momento que as pessoas ocupam e utilizam o asfalto como lugar de lazer, os usos, programas e apropriações que surgirão são indeterminados.

A análise da paisagem formada passa então por algumas etapas: entendimento de seus limites dessa, as formas de usar o espaço de lazer, os objetos trazidos para que esses usos sejam efetivados e a relação que surge entre as dinâmicas sociais identificadas com as preexistências da avenida. 

Por volta das 10h da manhã nos domingos, alguns carros ainda passam pela Paulista, enquanto as pessoas já começam a andar de bicicleta e a correr no asfalto. O pedestre ocupa definitivamente a via quando os guardas de trânsito posicionam cones, fitas e cavaletes fechando as vias transversais. São esses dispositivos de fechamento, normalmente utilizados para organizar o trânsito, que conformam essa paisagem dedicando o espaço exclusivamente para as pessoas. Além desses dispositivos, outros objetos são utilizados como apoio à abertura: guarda sóis e placas de PARE organizam o fluxo, e carroças adaptadas levam as bicicletas extras de aluguel para o local. Quando esses objetos são retirados da via, os carros voltam a transitar e o limite da paisagem se desfaz. 

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Dispositivos de fechamento e organização . Image © Laura Peters

No asfalto, dentro desse novo limite, alguns usos podem ser identificados e classificados em duas categorias principais: atividades mais individuais que não promovem aglomeração em torno delas, e outras como shows, aulas e comércios que promovem aglomerações. No primeiro caso busca-se desfrutar o espaço de lazer como espectador. No segundo caso, há na maioria das vezes uma intenção ligada a comercialização de bens e serviços, seja pela venda de produtos ou pela realização de eventos. Ainda assim, existem atividades que não se encaixam nessas duas categorias, como aulas de dança que são abertas e não pedem contribuições financeiras ou ainda manifestações, que extrapolam qualquer padrão de ocupação. 

Grande parte dos usos apoiam-se em algum tipo de objeto. Cangas, cadeiras, geradores, caçambas, palcos, uma série de instrumentos ordinários que quando são usados nesse lugar tem a capacidade de alterar a paisagem. O asfalto opera de forma muito semelhante à areia da praia, onde dois chinelos delimitam um gol e um um guarda sol pode criar um espaço mais privado. Existe, tanto na areia como no asfalto, uma idéia de informalidade e efemeridade, onde tudo que se montou para apoiar as atividades deve ser desfeito até o final do dia, o que faz com que a Paulista aberta se assemelhe mais ao modelo da praia como espaço de lazer do que com o modelo de praças em São Paulo. Nota-se também que alguns objetos, principalmente os de apoio ao comércio são frequentemente versões adaptadas para a mobilidade necessária na avenida.

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Dispositivos de apoio . Image © Laura Peters

Os usos geradores de aglomerações possuem a capacidade de alterar a paisagem formada por alguns instantes. Em ocasião de palestra realizada pelo Sesc (Serviço Social do Comercio) em São Paulo, o autor Francesco Careri faz uma analogia afim de entender melhor a organização das cidades.[1]

Segundo ele, a cidade seria como um mar onde os fluxos acontecem, enquanto as ilhas são os momentos de parada desse fluxo. Entendendo que a Paulista, mesmo quando aberta ao pedestre, mantém um fluxo linear de “vai e volta” - onde se veem pessoas à passeio, outras praticando esporte - esses eventos são momentos de parada, ilhas em meio ao fluxo.

A formação dessas ilhas ocorre de forma intrinsicamente ligada a paisagem concreta da avenida.  Por exemplo, a maior parte delas se concentram na região entre Conjunto Nacional e Masp, dissolvendo-se no sentido Vila Mariana, onde estão a maior parte dos comércios e equipamentos culturais, com edifícios abertos ao público como Masp, Conjunto Nacional e Center 3, sendo assim mais ocupada por pedestres no dia-a-dia.[2]

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Mapeamento de eventos. Image © Laura Peters

Analisando mais profundamente essas ilhas, nota-se que outros elementos preexistentes trabalham de forma conjunta com a aglomeração, organizando, delimitando tamanho, criando fundos e palcos, gerando sombras. As faixas de trânsito e outras marcações no piso como faixa de pedestre parecem possuir um papel importante tanto no tamanho da atuação, tanto no caso de uma delimitação precisa da atividade como no posicionamento do público. Nos casos observamos, é possível observar tanto casos em que a aglomeração se limita exatamente ao tamanho da faixa como formas em que o evento se organiza segundo as faixas de tráfego, obedecendo a essas linhas.[3]

Planos, fundo e sombras interagem de forma semelhante com os eventos. No momento em que o agente que promove a aglomeração - a banda, o mágico, o professor - escolhe um lugar na avenida para se instalar, uma série de decisões são tomadas que levam em consideração as condicionantes físicas daquele lugar específico, é uma espécie de ação projetual do indivíduo. 

Quando uma banda escolhe um local como o Conjunto Nacional, por exemplo, faz com que seu show tenha mais visibilidade além de garantir um bom plano de fundo para as fotos que serão tiradas. Quando escolhe um local sombreado, gera conforto para sua audiência. Quando um mágico performa afrente de um limite, faz com que toda sua platéia se concentre afrente dele, onde o show acontece. Quando uma aula de dança ocorre na faixa de pedestre, se reserva e não entra em conflito com o fluxo de vai e vem da via.

É importante ressaltar que para o estudo das aglomerações é necessária uma mudança do registro do nível do olhar – que opera em função de descobrir a paisagem, com suas variantes, perspectivas e planos de fundo (BESSE, 2014) – para um olhar cartográfico que permite um distanciamento do plano do asfalto gerando uma total visualização do evento. Essa operação foi feita aqui por meio de um drone. 

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Foto feita por drone . Image © Laura Peters e Pedro Barros
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Foto feita por drone . Image © Laura Peters e Pedro Barros
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Foto feita por drone . Image © Laura Peters e Pedro Barros
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Foto feita por drone . Image © Laura Peters e Pedro Barros

A paisagem efêmera seria portanto não apenas os movimentos e atividades das pessoas que ocupam o lugar mas sim essa ligação e interdependência se que forma juntamente com as preexistências materiais da Paulista, evidenciada mais claramente pelos eventos. Cada ilha nessa paisagem possui um conjunto de regras a constituem, começando pela escolha do lugar. Cada aglomeração tem suas regras, as quais atuam de forma individual, de modo que não existem determinações gerais aplicáveis a todos os casos posto que essas podem prever outras formas de usos posteriores.

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Análise de evento . Image © Laura Peters
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Análise de evento . Image © Laura Peters

O trabalho se propõe a um exercício de análise e identificação de temas presentes na paisagem. Um exercício de registro de um momento sob um ponto de vista, dentro de um universo de temáticas que poderiam ser adotadas na Paulista Aberta. As formas de usar e as atividades ainda estão em construção e podem se tornar algo diferente a cada domingo, dando a pesquisa um caráter de continuidade indefinida. Uma vez que as possibilidades não se esgotam, não existem regras gerais que podem prever nem definir as formas nas quais a avenida é ou será ocupada.

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Análise de evento . Image © Laura Peters
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Sobreposição de eventos. Image © Laura Peters

Notas
[1] Palestra realizada pelo Sesc no dia 05/07/2016 – parte de uma série de palestras pós-FLIP - Festa Literária Internacional de Paraty.
[2] O trabalho se desenvolveu entre os meses de julho e novembro de 2016, edifícios como a Japan House e o Sesc Paulista ainda não existiam.
[3 ]As observações feitas limitam-se aos registros feitos durante o período do trabalho

Referências bibliográficas
ALLEN, Stan. Practice: Architecture Technique + Representation. Nova Yorque: Routledge, 2009.
AQUINO, Eduardo; SHANSKI, Karen. Complex Order : intrusions in public space. [S.L.]: spmb, 2009.
BESSE, Jean-Marc. Exercício de Paisagem. Rio de Janeiro: UERJ, 2014
MESSU, Dimitri. Two or Three Things I Know about Her…. Oase: Productive Uncertainty. vol.85, out.2011. Disponível em : <http://www.oasejournal.nl/en/Issues/85>. Acesso em: 19 out. 2016
PEREC, Georges. An Attempt at Exhausting a Place in Paris, 1989. Disponível em: <https://iitcoa3rdyr.files.wordpress.com/2014/09/perec_readings.pdf>. Acesso em: 5 dez. 2016.
PETRESCU, Doina. The Indeterminate Mapping of the Common. Field: Architecture and Indeterminacy. vol.1, set.2007. Disponível em : <http://field-journal.org/portfolio-items/field-1-architecture-and-indeterminacy/>. Acesso em: 19 out. 2016
SOUZA, Edison. Arquitetura Avenida Paulista. São Paulo: Amplitude Editora, 2011

Ensaio escrito a partir do Trabalho de Conclusão de Curso realizado na Escola da Cidade em 2016 orientado pelo prof. Eduardo Gurian. Originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #4, publicação da Escola da Cidade dedicada à divulgação de pesquisas de iniciação científica e experimental.

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Sobre este autor
Cita: Laura Peters. "Paisagens efêmeras: um domingo na paulista" 09 Nov 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/951001/paisagens-efemeras-um-domingo-na-paulista> ISSN 0719-8906

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