Outras cidades impossíveis: uma perspectiva da criança sobre a pandemia

Cidades desertas, comércios fechados, voos cancelados. Praças vazias, ruas sem ninguém circulando... o que parecia impossível aconteceu. Se para nós está difícil de se acostumar a essa nova rotina, para as crianças, então, o baque foi ainda maior. De um dia para o outro, elas foram privadas da escola, da convivência com os amigos, dos passeios pela cidade, dos parques, das praças. Foram encerradas dentro de casa.

Em 22 de março, saiu uma matéria no jornal espanhol, El Confidencial, chamada “O Desaparecimento de 7 Milhões de Crianças”. Com esse título um tanto dramático, o filosofo César Rendueles alertava para os problemas sociais, psicológicos e de desenvolvimento que essas crianças estavam sofrendo ao ficarem confinadas em apartamentos sem luz do sol, ar livre e natureza. No texto, ele diz que “estamos acostumados a esperar que as crianças sejam invisíveis, que não atrapalhem, que não façam barulho”, e afirma que a maneira como lidamos com a crise é extremamente “adultocêntrica”: as crianças desapareceram completamente do espaço público e “são agora assunto exclusivamente de suas famílias”.              

Ilustração: Heath Robinson, “Baby Swing”, 1939. Domínio Público

O que essas crianças estão sentindo e o que têm a falar sobre o que estão vivendo? Conversei com algumas, do Brasil e de outros países, para tentar entender como elas estavam enxergando esse momento inédito em suas vidas. 

“Eu aprendo novas coisas com a minha família, meus pais estão me ensinando muito. ” - Guillerme, 10 anos, falando do que mais gosta da quarentena.

Posso dizer com tranquilidade: todas as crianças com quem conversei estão gostando de ficar mais tempo com a família. A mãe, o pai, os irmãos mais velhos, de repente todos estão em casa. Lorena, de 7 anos, disse que das coisas que mais gosta da quarentena é cozinhar com seu pai. Já Leonor, que tem 3 anos e vive no Chile, diz que o que mais gosta é “desenhar, dormir, brincar com meu irmão e com meus pais”. Os momentos em família esticaram e elas podem aproveitá-los melhor, sem correria, no tempo delas.

Quando perguntadas sobre a escola, a maioria diz sentir falta profundamente. Para Alice, 5, esse é o mais difícil da quarentena. Perguntada especificamente do que ela mais sente falta na escola, ela diz: “de tudo! ”. Mas muitas deixam claro: não sentem falta de lição, não. O que elas valorizam são as pessoas e as relações que estabeleceram com os amigos e os professores. “O que mais sinto falta, com certeza, é dos meus amigos, quero conversar e dar muita risada com eles”, diz Araceli, de 13 anos. 

Ilustração: Heath Robinson, “Pets’ Playground”, 1939. Domínio Público

“Sinto falta da rua, porque atravessamos a rua e vamos na praça. ” - Leonor, 3 anos, respondendo do que mais sente falta na quarentena. 

Quando o assunto é cidade, vemos dois grupos se formarem. De um lado, os que não sentem tanta falta assim, afinal a cidade já não era representativa no dia a dia deles antes da pandemia. Tatyana, de 12 anos, por exemplo, diz “não sinto falta de nada na cidade, porque não saio muito de casa mesmo”. Mas um segundo grupo, maior, sente falta das coisas que só a cidade pode proporcionar no seu cotidiano. Leo, de 3 anos, vivendo em Barcelona, diz sentir “falta da praia e de castelos de areia molhada”. Os trajetos cotidianos são os que ficam mais gravados na mente dos pequenos. Guillerme, de 10 anos, vive em Madrid e sente “falta de um parque que eu passava toda vez que eu ia para escola”. Já Junior, 9, quer voltar a andar de bicicleta e Marina, 5, diz “eu sempre quero ir naquele parquinho”.

“Eu queria que tivesse um monte de flores, e queria ficar passeando na rua um pouco sozinha. ” - Marina, 5 anos, questionada sobre o que gostaria que mudasse na cidade após a quarentena.

Também perguntei para as crianças o que elas gostariam que mudasse na cidade depois da pandemia. Leo, de 3 anos, tem uma ideia bem especial da vivacidade urbana e responde: “quero mais chaminés nas casas, e mais caminhões de obra nas ruas”. Araceli, moradora do Jardim Damasceno, na Brasilândia, zona norte de São Paulo, região que foi uma das mais atingidas pela pandemia, está preocupada com a saúde e gostaria de mais postos de saúde e hospitais. Alice gostaria que a cidade tivesse mais calçadas e Guilherme pensa que mais parques e “lugares para brincar seria uma boa”. Já Marina deseja que a cidade “tivesse um monte de flores”, e queria ficar “passeando na rua um pouco sozinha”, demonstrando uma vontade de mais autonomia para circular na cidade. E completa: “depois eu volto rapidinho para casa”. 

“Quero mais chaminés nas casas, mais caminhões de obra nas ruas. ” - Leo, 3 anos, falando da sua cidade ideal. 

Falar com as crianças e os desejos delas para as cidades me lembrou o caso de Amsterdã que nos anos 1970 era o paraíso dos carros. Calçadas estreitas, ruas abarrotadas de automóveis, poluição. Por toda cidade o pedestre não tinha vez. Em 1971, mais de 3 mil pessoas morreram atropeladas.

Foi então que as crianças do bairro de Pijp começaram uma campanha para o fechamento de vias para carros e abertura de ruas para brincar. No início, encontraram muita resistência, como mostra um documentário feito para a TV local na época. Em uma cena marcante, vemos um adulto sendo interpelado pelas crianças para que apoie o abaixo assinado que estavam fazendo, e respondendo aos gritos, indignado: “Tirar os carros da rua? IMPOSSIVEL! Isso é IMPOSSÍVEL!".

Mas as crianças não desistiram. Com ajuda da escola e das famílias, fizeram passeatas, foram à prefeitura, debateram, construíram barricadas, até conseguirem mudar a maneira como aquela comunidade entendia o espaço público. Deixaram claro para todos que elas também precisavam de espaço, para viver, para se movimentar, para brincar, para se desenvolver, e que tinham o direito de estar na cidade. Hoje, Amsterdam é exemplo de mobilidade urbana, de espaço público, de convivência. Mas não foi sempre assim, houve um momento em que isso era simplesmente impossível.

Ilustração: Heath Robinson, da série “Uma casa ideal”, 1933. Domínio Público

A cidade mais impossível de todas é essa em que vivíamos antes da quarentena. Eu falo de São Paulo, mas poderia estar falando de qualquer cidade no mundo que cresceu desordenadamente, que é desigual e violenta. Um lugar sem respiro, sem espaço para as pessoas, sem respeito pelas crianças, sem ar puro, sem segurança, sem transporte, sem trabalho. Sem cooperação. Porém, nesse momento de crise, nesse pequeno espaço de tempo, vimos um número crescente de pessoas optando pela mobilidade ativa. Vimos diminuição da poluição sonora e do ar, diminuição de carga horária de trabalho, de deslocamento diário, vimos adultos passando mais tempo com a família e com seus filhos. Vimos o surgimento de um sentimento de responsabilidade e organização, tanto de prefeituras quanto de comunidades e vizinhos. Coisas que antes eram impensáveis encontraram espaço e se estabeleceram em questão de dias.

Temos uma oportunidade de nos perguntar para qual cidade queremos voltar depois da pandemia. Vamos ouvir a todos, vamos ouvir nossas crianças e vamos imaginar outras cidades impossíveis, bem melhores do que as atuais.

Ursula Troncoso é arquiteta e urbanista, fez pós-graduação na Universidade Politécnica da Catalunha, estudou Mobilidade e Primeira Infância (CECIP-RJ), e Espaços de Aprendizagem Outdoor para Primeira Infância, North Carolina State University. É coordenadora de Educação Urbana do Instituto A Cidade Precisa de Você e desenvolve o projeto Cidade para Crianças, que discute território e cidade com os pequenos. Colaborou para diversas iniciativas como urbanista especialista para políticas públicas e participação infantil e é consultora da Fundação Bernard van Leer, organização que advoga por cidades amigas das crianças.

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Sobre este autor
Cita: Ursula Troncoso. "Outras cidades impossíveis: uma perspectiva da criança sobre a pandemia" 31 Mai 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/940660/outras-cidades-impossiveis-uma-perspectiva-da-crianca-sobre-a-pandemia> ISSN 0719-8906

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