Três banheiros, três danças: experimentações do corpo na arquitetura

Este artigo é um excerto originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #7 da Associação Escola da Cidade. Trata-se de uma publicação proveniente do trabalho final de graduação “Três banheiros, três danças”, de autoria de Manuella Ferreira Leboreiro, realizado na Escola da Cidade em 2018, sob a orientação do professor Yuri Fomim Quevedo. Este ensiaio também integrou a seleção de trabalhos expostos no CCSP como parte da 12ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.

São 12:11 do dia 7 de novembro (de 2018). Um "S" na porta indica a quem supostamente se destina esse banheiro. Estou em um banheiro localizado em um predinho que o Vilanova Artigas, arquiteto modernista brasileiro, projetou na década de 1950 no bairro de Santa Cecília. É a segunda vez que entro nele e para mim ainda é um espaço que vai se revelando. De primeira, o que chamou muito a atenção foi o azul quase roxo causado pela luz negra que faz com que todos os tons do banheiro tendam para essa cor. Traz um sentimento de muita serenidade durante o dia.

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O pé direito é muito alto e, apesar do banheiro não ser muito grande, dá uma sensação de espaço muito amplo. Os detalhes do banheiro e a decoração variam a paleta de cores de forma restrita. O azul, rosa e amarelo prevalecem e o branco serve como plano de fundo e sustenta a claridade desse espaço. O que caracterizam as paredes são os azulejos que medem 15cm x 15cm, tamanho facilmente decifrável para um olhar já treinado. São em sua maioria brancos com algumas exceções azuis, que criam uma faixa que coincide com a escala humana que habita esse banheiro, localizada a 1,50m do chão e percorre por toda a extensão das paredes. Os azulejos sinalizam os 1,80m das paredes do banheiro, quadrado. Diferente dos demais banheiros, o piso é de ardósia, um material muito usado em áreas externas das casas de tempos atrás e que raramente se vê em um banheiro. O piso dá uma sensação de que é um outro lugar, e me traz lembranças de quando criança ficava sentada por horas nesse piso frio do quintal de casa, pensando ainda muito nova, sozinha e com o corpo encolhido, em questões existenciais bem duras para uma criança. A frieza e sua cor escura colaboram com esse sentimento melancólico e ao mesmo tempo sereno. Mas o corpo está bem.

© Manuella Ferreira Leboreiro

Há uma planta. A espada de São Jorge se exibe, pedindo por atenção. Preenche o espaço e se sobrepõe à frieza imposta, trazendo vida, calor, aconchego. Chama por olhares para se mostrar exuberante. Está localizada justamente no meio do banheiro, encostada na quina entre a parede e o vidro do box, separando-os. A privada é branca e tem um formato diferente, olhando de frente parece um vaso de plantas e se complementa esteticamente com a planta. O chuveiro, do outro lado do vidro, é prata e brilha quando reflete a luz negra. O piso ainda molhado do box, insinua que pela manhã o banheiro já tinha sido palco de sua dança cotidiana ordinária. 

Ouve-se com clareza gritos de crianças e me atento que somos vizinhos de uma escola infantil. O sentimento de melancolia agora conflitua com as vozes estridentes das crianças, às vezes parece de desespero, outras vezes que são apenas vozes de diversão. Os objetos que compõem o banheiro estão dispostos de forma despretensiosamente calculada e pensada. São objetos peculiares. Há um bonequinho pelado encaixado pelas pernas no topo do vidro do box e, ao seu lado, um desenho de uma coleção de três que se espalham pelo banheiro. São desenhos de mulheres de calcinha e soutien que têm o rosto tampado e trazem boas lembranças por serem desenhos de uma amiga da faculdade. Ao mesmo tempo, logo ao lado da privada, há uma foto de uma mulher real, com os seios à mostra e o rosto destampado, oposto às dos desenhos. O sorriso amarelo escancara o incômodo da foto, o desconforto de estar naquela posição. Fico sabendo que vem de um sebo de Paris e que a foto é de uma revista erótica de alguns anos atrás. Um quadrinho acima da privada, apoiado em duas torneiras hidráulicas amarelas, chama muito a atenção. O desenho é inocente, infantil. É uma pintura em tela de um por do sol e suas cores se complementam com a paleta do amarelo e azul do banheiro. As demais imagens, que retratam prédios e cidades, indicam o gosto evidente pela arquitetura de quem neste banheiro habita. 

O cheiro de produtos químicos do banheiro é forte, e evidencia que foi limpo recentemente. Mas o cheiro do sabonete também é presente e o conflito é inevitável. Ambos os cheiros já fazem parte de minhas narinas e esse conflito também. A iluminação é presente durante o dia e apesar da única janela estar ao alto, encostada no teto, uma boa quantidade de luz entra. A janela é grande, com caixilho de metal branca e vidro craquelado. Mas pela sua posição no alto da parede, a iluminação é predominante na parte de cima do banheiro, acima da faixa azul dos azulejos, fazendo com que se veja um degrade de luz até o chão e, por ser cinza escuro, intensifica o obscurantismo da parte de baixo do banheiro. 

© Manuella Ferreira Leboreiro

Apesar de muitos detalhes comporem as paredes do banheiro, é um espaço minimalista. É um banheiro que não possui um móvel e o único instrumento de apoio é uma estante metálica pequena, de três andares, que comporta alguns objetos de cuidados pessoais. Na parte de baixo há um rolo de papel higiênico pela metade, que parece ter um uso específico, que não de limpar a bunda. Há também uma nécessaire meio aberta e uma touca. Na primeira estante, estão os objetos de uso mais constante: desodorante, sabonete líquido, escova de dente e pasta, perfume, produtos de barbear, e desentupidor de nariz. Na estante do meio estão perfumes, estoque de desodorantes, shampoo entre "Crônicas para jovens" de Clarice Lispector, "Relatos de viagem ao oriente" de Le Corbusier e "Poesias" de Ana Cristina Cesar. Me chamaram muita atenção que esses livros estivessem ali, como que esperando por alguém que sabiamente possa passar seu tempo lendo textos curtos para que a ida ao banheiro não seja tão monótona e a coreografia possa encontrar outros movimentos que saem do padrão cotidiano. 

© Manuella Ferreira Leboreiro

São 14:33 e já de saída do banheiro, lavo minhas mãos e percebo o quão pequena é a pia. Se compõe perfeitamente com um espelho redondo localizado um pouco acima e com o lustre de onde sobressai uma lâmpada muito maior que as que utilizamos comumente, em forma de esfera. Desligo a luz e logo antes, com um último recado, me despeço do banheiro com uma foto que insinua um contexto urbano ao lado do interruptor. Penso que pode ser um recado.

© Manuella Ferreira Leboreiro

A investigação do corpo no banheiro revela características muito próprias do espaço. A observação começa tímida, com cautela. Um espaço ainda pouco visitado vai deixando de ser estrangeiro à medida que o corpo repousa seu olhar sobre ele. A percepção do espaço em questão se dá a partir de seus aspectos formais tais como a disposição dos elementos, que tipo de funcionalidade estes propõem e que tipo de relação é dada entre eles, que resulta em ações funcionais, cotidianas. Mas não só os aspectos formais orientam a maneira como os movimentos são construídos. As sensações que este espaço provoca também influenciam nas ações que dele originam, caracterizados pela observação a partir da visão, do tato e do olfato, que revela além de composições estéticas, materialidades, texturas, temperaturas, luminosidade e odores. A relação que se faz de ambas as percepções, tanto formais quanto sensoriais, propõe movimentos que ora se complementam e ora se contrapõem.

© Manuella Ferreira Leboreiro

Em um primeiro momento, o espaço se revela sereno e o corpo começa a se desacelerar dos movimentos de uma rotina ordinária que antes realizava com certa intensidade em espaços outros. Se presentifica no banheiro e observa quais funções podem acontecer. Revelá-las requer que a observação aponte os objetos que estão presentes, pois determinam as movimentações que deles são geradas e o agente que as executa. A diversidade de objetos leva a crer que o espaço é mais que um objeto espacial que procura por atuações específicas, ou exercer funções sociais de higiene. 

© Manuella Ferreira Leboreiro

Cronologicamente, à medida que o espaço se torna menos estrangeiro, a luz começa a alterar sua poética serena. O banheiro deixa de ter seu sentido funcional e se transforma. Surge uma sala de banho, sala no sentido da palavra, de estar, dependência destinada ao convívio, ao repouso, à leitura. O ambiente passa a ser tomado pela luz azul, intensa, frenética. O banheiro se transforma em um palco de ações que buscam pela demora, pela exaltação, pela experimentação. A experiência no espaço instiga meu corpo a explorar tais ações e usar dos objetos presentes, minha ferramenta de movimentações. 

© Manuella Ferreira Leboreiro

Sabe-se que roteiros de movimentos cotidianos realizados nesse espaço pertencem a um repertório estranho ao meu, que evidencia um corpo com características físicas diferentes. Desde muito cedo em nossas vidas o banheiro é um lugar que já determina certas coreografias ensaiadas. Essas coreografias se referenciam por um desenho funcional, determinado muitas vezes por manuais de arquitetura e normas que são transmitidas como ensinamentos na faculdade de arquitetura em forma de desenho. São desenhos que se caracterizam por especificar corpos únicos que habitam espaços com desenhos enrijecidos. No banheiro, a série de normas de ergonomia faz com que os elementos estejam localizados muitas vezes com uma mesma configuração prezando pela máxima eficiência no mínimo espaço para que os movimentos desenvolvam uma lógica funcional. No entanto, corpos que ocupam esses espaços não são únicos. Apresentam suas particularidades que levam a coreografias diversas, que extrapolam o desenho de normas e manuais. 

© Manuella Ferreira Leboreiro

Meu corpo explora então formas diferentes de atuar pautadas pela curiosidade de desvendar como funcionam os objetos na relação com esse outro corpo estranho. A semelhança de medidas faz com que a presença no espaço seja confortável: o nível do espelho apropriado, a distância dos objetos ao alcance das mãos. 

O corpo experimenta e aprende outras maneiras de se movimentar. É nele onde aonde a dança flui, onde os movimentos começam a serem propostos e executados em sua melhor condição. Enquanto matéria física, serve de instrumento para que a dança possa acontecer. No entanto, não pode ser reduzida a apenas um corpo que produz movimentos simplesmente motores já que a ação de dançar propõe mais. Segundo Helena Katz (2005) a “verdadeira dança” é a junção das movimentações com o que elas produzem, a qualia, qualidade da experiência advinda da percepção sensivelmente reproduzido pelo corpo que escapa à realidade e a tentativas de explicações racionais (GREINER, 2010).

© Manuella Ferreira Leboreiro

O corpo transforma então as movimentações em fluidez. O próprio repertório de danças cotidianas induz que a ação seja estendida a outras partes do corpo. A dança só pode ser apreciada quando é uma ação. E enquanto ação é capaz de propor seu próprio espaço, sua própria atmosfera, que descarta cenários. É capaz de possibilitar encontros, novas relações, novos contatos com o outro e com o espaço no qual está sendo definido. E esse espaço, quando definido, pode durar poucos minutos, enquanto uma apresentação, mas reverbera enquanto novas proposições. A dança e o espaço transformam o corpo em questão.

Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. 
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. 
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013.
GREINER, Christine; AMORIM, Claudia (orgs.). Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2010.
KATZ, Helena. Um, Dois, Três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FLD editorial, 2005.
NEUFERT, Ernst. Arte de projetar em arquitetura: princípios, normas e prescrições sobre construção, instalações, distribuição e programa de necessidades, dimensões de edifícios, locais e utensílios. São Paulo: Gustavo Gili, 1976.
VALÉRY, Paul. Philosophie de la Danse. In: Oeuvres I. Paris: Librairie Gallimard, 1957.
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Manuella Leboreiro é arquiteta e urbanista graduada pela Escola da Cidade em 2018 cujo interesse de pesquisa explora a relação do corpo com a arquitetura por meio de movimentações de dança e performance. E-mail: manuleboreiro@gmail.com.

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Sobre este autor
Cita: Manuella Ferreira Leboreiro. "Três banheiros, três danças: experimentações do corpo na arquitetura" 26 Mai 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/940146/tres-banheiros-tres-dancas-experimentacoes-do-corpo-na-arquitetura> ISSN 0719-8906

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