Da utopia à realidade: os desafios da prática urbana no Brasil

Da utopia à realidade: os desafios da prática urbana no Brasil

A busca pela cidade ideal sempre permeou a história da humanidade constituindo uma utopia perseguida por governantes, artistas, filósofos e, na história mais recente, por nós, urbanistas. Desde o século XIX foram propostos – e, por vezes construídos, - diversos modelos de cidades ideais, passando das cidades-jardim de Howard, às cidades mecanizadas, às radiais, às caminhantes do grupo Archigram, às nômades como a Nova Babilônia de Constant Nieuwenhuis, às modernistas, entre outras.

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Walking City para o século XXI, “a very large structure” de Manuel Dominguez, resultado de sua tese na ETSA em Madri, inspirada no grupo Archigram. Imagem cortesia de Poliedro

Em meio ao constante realinhamento de ideologias e necessidades, tal qual padece o espaço urbano, esses modelos utópicos surgem como ensaios experimentais. São reflexões críticas que se tornam uma importante ferramenta para entendermos as cidades e sua contextualização histórica. 

Nesse sentido, não precisaríamos ir muito além para analisarmos na prática tal conceito. O desenho de Brasília, nossa utopia mais próxima, materializa claramente o ideal modernista de cidade que se postulava na década de 50. Pelas mãos de Lúcio Costa, Brasília nasceu segundo os preceitos defendidos na Carta de Atenas que, ao marcar a história da construção urbana no Brasil, marca também a carreira profissional do urbanista. Por meio da enorme planta feita à mão na escala 1:25.000 e das 24 folhas datilografadas em tamanho ofício, ele imprime seu ideal de arquitetura no qual o arquiteto e urbanista deve ser, antes de tudo, um pensador.

Não à toa, a figura de Lúcio Costa materializa um modelo estruturado desde o final da Primeira Guerra Mundial que rompe a visão palaciana da cidade, assim como o historiador Giulio Carlo Argan [1] - entusiasta de Brasília quanto exemplo visionário – afirma quando diz que em tal modelo o arquiteto deixava de ser um profissional cindido entre as belas-artes e a engenharia para se tornar um urbanista, isto é, um intelectual capaz de pensar a sociedade como um todo [2].

Nessa sintetização teórica do papel do arquiteto e urbanista feita por Argan, e colocada em prática na posição de Lúcio Costa em Brasília, é possível perceber a grande complexidade que envolve assumir o desenho urbano. Não somente a enorme construção que preencheu o cerrado, mas mesmo os pequenos croquis que nunca saíram do papel são dotados de ideias e ideais que, estrategicamente, procuram convergir para a qualificação do espaço urbano. Utópicas ou materializadas, intricadas ou simplistas, as propostas urbanas demostram, portanto, uma árdua tarefa inserida no gesto de desenhar o palco onde se desenvolve a sociedade, carregando uma notória responsabilidade social.

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Brasília vista de cima. Imagem © Joana França

Por esse ângulo, Argan afirma que é no campo urbano onde se distingue entre os “oportunistas que se põem a serviço da especulação imobiliária ajudando a piorar as condições urbanas e os que são conscientes de sua função social”. Já não se trata, portanto, da distinção entre empíricos e teóricos, entre artistas e engenheiros, e sim de uma distinção de ordem moral.

Na sua essência, o desenho urbano assume, então, um grande poder capaz de voltar-se como ferramenta de criação de uma cidade democrática, inclusiva e respeitosa. Nele são estabelecidos parâmetros que conduzirão a forma como a cidade deverá ser utilizada e ocupada. Na prática, principalmente se tratando da realidade brasileira, esse poder encontra muitas dificuldades. Nos entraves de implementação de um projeto urbano de qualidade, na árdua intermediação dos diversos interesses, entre muitos outros. Nesse sentido, a visão romântica do urbanista aos poucos dá lugar a uma série de desafios de ordem moral, física, financeira e projetual. Surgem nesse contexto agentes e fatores que constantemente delimitam essa função na cidade contemporânea. 

Postas tais dificuldades, antes de mais nada, é necessário refletir sobre a constatação de que o próprio urbanismo parece ter desaparecido como ciência. Dentro da cultura do imediatismo, as noções urbanas básicas são substituídas por soluções emergenciais que respondem apenas às necessidades imediatas do cidadão. Na maioria dos casos, tais soluções se resumem aos problemas viários que comprometem a circulação motorizada. Neste contexto, especialistas em tráfego e controladores de semáforos parecem ter assumido as vezes de urbanistas no constante apagar-fogos da cidade contemporânea. Tal imediatismo é também reflexo da enorme dificuldade que se tem, principalmente por parte dos governantes, em entender a importância do planejamento a longo prazo – e claro, sua aplicação. Uma objeção em aceitar que um projeto urbano não é criado, e muito menos implementado, da noite para o dia e, portanto, não deve ceder aos impulsos políticos que mudam constantemente de gestão para gestão.  

Além disso, no Brasil, vivemos uma realidade em que existem poucas oportunidades de se fazer “cidade” e essa ausência de confronto com a experiência, dentre outros fatores, obviamente, acaba refletindo em uma dificuldade também no teor projetual. Dado essa inexperiência, muitas vezes surgem planos inadequados e formalistas que precisam ser revisitados à medida em que apresentam uma visão homogeneizada da sociedade em questão. Nesse sentido esbarramos também no desafio de criar projetos urbanos que de fato são efetivos e respondem ao desejo dos cidadãos justamente por esse distanciamento que há entre a realidade cotidiana e o desenho. 

Retoma-se a responsabilidade social que envolve um projeto urbanístico, tal como citou Argan, reafirmando, portanto, que o desenho da cidade não deve ser tratado como um esquema cartográfico, mas sim, como uma construção atenta às múltiplas subjetividades que compõe o espaço urbano. Flávio Villaça, indispensável citação quando se fala de projeto urbano no Brasil, comenta no seu livro Reflexões sobre as cidades brasileiras (2002), que a postura ideológica de que é preciso medir para conhecer - pois os diagnósticos clássicos eram principalmente medições - deve ser deixada de lado, adotando-se a de que é preciso conhecer para medir. Ou seja, se faz necessário escutar o que a população tem a dizer facilitando processos de cooperação e compatibilização na consequente aceitação da adaptabilidade. Villaça afirma ainda que “ampliar a participação popular é ampliar as potencialidades na resolução de problemas e planejamento compartilhado para além da lógica tecnicista, o que traz, além de soluções mais inteligentes, mais legitimidade às decisões” [3].

Para tanto, parece igualmente importante criarmos também mecanismos que, de fato, aproximem a população da construção do desenho urbano, revendo as formas de apresenta-lo – que se dá muitas vezes por meio de uma linguagem técnica de difícil compreensão, em um ambiente institucional que não favorece o compartilhamento de ideias. Além disso, outro fator essencial para o êxito dessa cooperação é educar a população para que sua participação, quando acontece, não seja limitada a queixas relacionadas a problemas individuais, como o calçamento em frente à sua casa, e volte-se para proposições de benefício comum. 

Entretanto, em meio a tantas dificuldades (muitas mais além dessas apresentadas aqui) que nos colocam – nós, urbanistas – numa espécie de encruzilhada no intento de intermediar entre governantes, desenho e população, há ainda aqueles que se sobressaem em uma combinação de fatores exitosa. Existem “utopias” que conseguem ser viabilizadas e sair do papel, tal como a própria Brasília que, apesar das críticas, revelou notórias nuances do urbanismo moderno que servem de exemplo até hoje. Nesse caso, vale abrir um parêntese para explicitar que talvez, naquele momento, não se falasse ainda muito sobre participação popular no desenho, tampouco sobre as subjetividades do espaço urbano, mas de qualquer forma, entendendo que a realidade era outra, ressalta-se a índole do desenho de Lúcio Costa que procurou evitar discriminações sociais e estabelecer um sistema de vida condigno [4].

A nossa capital, porém, não nos deixa apenas um legado como desenho urbano, mas também como exemplo no processo de escolha de um projeto urbano. Como bem sabemos, o seu desenho foi escolhido por meio um concurso público nacional, contrariando a vontade de alguns importantes grupos em convidar figuras internacionais – como Le Corbusier – para designar tal missão. Esse meio pelo qual Brasília nasceu tem se revelado, na realidade brasileira, um importante aliado do urbanista até hoje. Livre da iniciativa dos mercados e dos particulares, o formato de concurso público, além de “democratizar” as oportunidades aos arquitetos e urbanistas, possibilita também o surgimento de projetos mais criativos e bem estruturados.

Dessa forma, desde Brasília, alguns concursos públicos nacionais foram criados com a intenção de requalificar grandes porções urbanas. Entre os exemplos mais contemporâneos, poderíamos citar aqui o concurso para a Requalificação Urbanística do Centro Histórico de São José/SC, que ocorreu em 2014, o Concurso de Ideias de Arquitetura para Revitalização da Praça Feira-Mar, no município de Antonina/PR em 2016 ou o Concurso Público do Masterplan da Orla do Lago Paranoá ocorrido em 2018 que mantem a “tradição” de Brasília intervindo, por meio de outro concurso público, na capital do país. Esses projetos apresentam desenhos contemporâneos que procuram fortalecer o uso do espaço público com a priorização do pedestre. Vale ressaltar ainda que, na maioria dos concursos urbanos, são realizadas audiências públicas as quais – apesar de pecarem pelo formato, conforme citado anteriormente – devem ser valorizadas como tentativa de fazer a população ser ouvida pelos participantes.

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Primeiro lugar no concurso para o Masterplan da Orla do Lago Paranoá, por Atelier77. Cortesia de Atelier77

Infelizmente, a organização dos concursos é apenas a primeira etapa para sua execução. Apesar da boa intenção, por trás deles há ainda um longo e tortuoso caminho até a materialização do projeto em si. Um percurso marcando por inúmeros desafios como ajustes orçamentários, mudança de gestão, possíveis alterações e críticas advindas principalmente de setores privados que sentem ameaçados seus privilégios, entre outros. Nesse sentindo, diferentemente de Brasília que foi construída no espantoso período de quatro anos, os projetos citados anteriormente ainda não se concretizaram.

Entretanto, enquanto tais projetos não saem do papel e soluções imediatistas que priorizam apenas parte da população são aplicadas aos montes, grupos têm se reunido para aplicar um “urbanismo pelas suas próprias mãos”. Ancorados nesse descaso urbano, algumas atitudes individualizadas têm vindo à tona e representam uma forma potente de demostrar os anseios renegados dos cidadãos. Nesse sentido, surge, portanto, um “urbanismo tático” composto principalmente por estratégias – às vezes temporárias – em que a população assume as rédeas do desenho urbano. Tais usos e ocupações, assim como Adriana Sansão afirma, são vistos como ferramentas de potencialização revelando novas possibilidades dos espaços através de uma auto-observação do cotidiano citadino. 

Essas intervenções, mesmo que temporárias, diferem-se das soluções imediatistas justamente por ocuparem “brechas do planejamento enquanto se espera pela implantação dos planos, permitindo a pré-transformação do espaço, e uma forma de participação, possibilitando colocar em prática um planejamento de base, motivado pela atitude do ‘faça você mesmo’” [5]. 

Há inúmeros projetos de urbanismo colaborativo que têm sido aplicados no país ao longo dos últimos anos que devem ser valorizados como iniciativa e como resultado. Tais atitudes representam uma forma de manifestação diante da inexistência de projetos urbanos de qualidade aplicados conforme a necessidade coletiva. Ações que acabam por assumir, portanto, um papel que seria do Estado e que foi negado por diversos fatores como os citados anteriormente.

Muitos arquitetos (no formato de coletivos, principalmente), têm reconhecido nesses movimentos uma possibilidade de colocar em prática noções do urbanismo contemporâneo, requalificando praças, terrenos baldios, ocupando culturalmente ruas e vagas de estacionamento, criando intervenções que valorizam o pedestre em detrimento do automóvel. Nesse sentido instauram-se micropolíticas que partem de grupos informais, mas que acabam sendo – muitas vezes – tão potentes quanto grandes projetos urbanos. 

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Intervenção “Deu praia em São Léo”. São Leopoldo, RS. Cortesia de COURB Brasil

As vertentes do urbanismo são muitas, e cada vez mais surgem novas estratégias e meios para possibilitar o exercício dessa profissão. Os concursos públicos de projetos e novos meios de urbanismo tático representam apenas dois caminhos além dos outros que existem para se colocar em prática o ofício no urbanista nas cidades brasileiras. 

De qualquer forma, seja um caminho difícil ou fácil, institucional ou prático, nesse jogo de tensões, de desejos, de fracassos e desafios, trabalhar com a cidade continua sendo fascinante. Essa cidade que nos deixa inquietos porque se faz difícil de perceber, de interpretar e de remediar. Por ela somos teimosamente levados a lutar, mesmo com entraves e dificuldades, pelo puro prazer de sermos coerentes com o que acreditamos, insistindo em sonhar utopias de uma cidade igualitária. 

Assim seguiremos nos impondo para que os governos assumam a responsabilidade pela construção de uma cidade democrática, ao mesmo tempo em que nos manteremos atentos a toda e qualquer brecha para exercitar o nobre ofício do urbanismo. Seja no desenho, na construção, na intervenção, imensos planos utópicos ou uma pequena intervenção na esquina de casa, continuaremos buscando incessantemente mecanismos de melhoria das cidades. Porque ver concretizado um desenho urbano de qualidade é lembrar que, mesmo minimamente, podemos modificar a vida dos cidadãos nos reconectando com o papel social da nossa profissão.

Referências
1. Guilherme Wisnik. Apresentação ao livro O Concurso de Brasília, de Milton Braga. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
2. Giulio Carlo Argan. A época do funcionalismo em Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
3. Flávio Villaça. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Nobel, 2012.
4. Oscar Niemeyer em Depoimentos Individuais no livro O Concurso de Brasília de Milton Braga. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
5. Adriana Sansão. Intervenções temporárias, marcas permanentes: apropriações, arte e festa na cidade contemporânea. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: FAPERJ, 2013.

Camilla Ghisleni é Arquiteta e Urbanista, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Urbanismo, Cultura e História da Cidade pela mesma universidade. É sócia-fundadora do escritório Bloco B Arquitetura e colabora com o ArchDaily Brasil desde 2014.

Publicado originalmente em 13 de novembro de 2019.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Da utopia à realidade: os desafios da prática urbana no Brasil" 22 Nov 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/928300/da-utopia-a-realidade-os-desafios-da-pratica-urbana-no-brasil> ISSN 0719-8906

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