A comida e o espaço público

Quem já frequentou a praia do Rio se Janeiro certamente viu vendedores oferecendo queijo coalho ou camarão grelhados, chá mate e biscoito Globo, lanches clássicos da orla carioca. Em São Paulo, feiras servem caldo de cana e pastel frito, adaptação local de um prato trazido originalmente pelos chineses e popularizado pelos japoneses. Em Minas, o pão de queijo e o pastel, também de queijo. Em Salvador, impossível não mencionar o acarajé (com ou sem pimenta), inclusive declarado como bem cultural imaterial pelo IPHAN. A capital baiana também já conta com um Guia de Comida de Rua próprio, tamanha a diversidade encontrada na cidade.

Nas ruas do Nordeste encontramos a tapioca, que já se espalhou pelo país. Em Porto Alegre, ambulantes vendem heranças dos vizinhos uruguaios como o pancho (pão francês com linguiça) e o churros, assim como o entrevero, sanduíche recheado de restos variados do churrasco. E, em boa parte do Brasil, lanches como espetinhos, cachorro quente (o já tradicional “dogão”) e milho verde procuram os melhores pontos de venda, além do sorveteiro e do pipoqueiro, que cada vez menos podem ser vistos nas calçadas.

A experiência social e urbana brasileira, assim como em muitas cidades do mundo, é marcada pela comida, oferecida por pequenos empreendedores que sustentam suas famílias através dessa atividade. Em grande parte sujeitos à informalidade, os pratos destes ambulantes são pré-preparados nas suas casas e finalizados e servidos nos seus carrinhos. Para o cliente, ambulantes de comida às vezes parecem passe de mágica: caminhando na rua ou na praia, com fome ou com sede, o desejo é imediatamente saciado por um lanche ou uma bebida, normalmente a um preço acessível.

Esse aspecto tradicional da cidade não é recente mas, segundo João Luiz Máximo da Silva, no texto “Comida de rua e transformações urbanas na São Paulo do século XIX“, “no Brasil, a comida de rua sempre esteve presente em nossos centros urbanos desde os primeiros séculos de colonização”. Na época, mulheres escravas e forras eram protagonistas da comida nas ruas com seu tabuleiro de quitanda onde, no Rio de Janeiro, andavam pela cidade e, em São Paulo, tradicionalmente atuavam estacionadas nos locais que pareciam mais lucrativos. Não apenas a comida de rua, mas a maior parte da tradição culinária brasileira foi criada e disseminada por escravos, sendo a feijoada o prato mais emblemático de todos. Nas ruas de São Paulo, o cardápio era variado:

“(…) As vendedeiras de doces, biscoitos de polvilho, bolos de milho socado ou de mandioca puva, pastéis de farinha de milho ou de trigo, saborosos cuscuz de bagre e camarão de água doce, empadas de piquira ou lambari,
peixe frito, pinhão quente, amendoim torrado, pequenos pedaços de quindungo (amendoim torrado e socado com pimenta comari e sal) e pé-de-moleque com farinha de mandioca e amendoim, os quais eram expostos à venda em pequenos tabuleiros de madeira forrados com folha de Flandres com uma vela de sebo acesa.”

Uma versão moderna ou, segundo alguns, “gourmetizada”, destes ambulantes são os chamados food trucks ou, ainda, food bikes, como o Rudá Bike Café de Porto Alegre. Mas, em princípio, realizam a mesma função no ambiente urbano e deveriam ser analisados em conjunto do ponto de vista do espaço público. O relativo baixo custo fixo, a mobilidade e simplicidade dos cardápios possibilita o oferecimento de lanches rápidos e baratos, uma alternativa para muitos que não possuem tempo ou dinheiro para uma refeição em um restaurante. A flexibilidade geográfica destes empreendedores também permite que eventos sejam atendidos em diferentes pontos da cidade: seja o jogo no Allianz Parque, na Arena Corinthians, no Morumbi ou, até pouco tempo atrás, no Pacaembu, ambulantes podem ir de um local para o outro para atender as multidões de diferentes torcedores.

Food trucks no Carnaval de Olinda. Imagem: Diego Galba – Prefeitura de Olinda/Flickr

Como defende o falecido chef e ícone da gastronomia mundial Anthony Bourdain em séries como Parts Unknown, ambulantes não apenas fazem parte mas são o centro da culinária de um lugar, não só perpetuando comidas típicas e locais, como inovando e desenvolvendo esta cultura gradualmente. Esta rede cultural e espontânea também provavelmente agradaria Jane Jacobs, onde pequenos empreendedores não apenas trazem os “olhos da rua” para a própria rua, tornando-a mais segura, como geram a vitalidade urbana que a autora tanto defendia.

Ao redor destes ambulantes, o espaço público se torna o salão do refeitório, não apenas um espaço de passagem. Baixios de viadutos, protegidos do tempo e espaços valiosos esquecidos pelo poder público muitas vezes são ocupados por estes comerciantes que, não apenas oferecendo uma alternativa de alimentação, tornam estes espaços mais seguros. Em cidades como Porto Alegre, essa moda já pegou, e alguns ambulantes inclusive ocupam o espaço informalmente com mesas e cadeiras.

Apesar de serem parte fundamental da cultura e da vida das nossas cidades, desde o seu surgimento eles sofrem com regulamentações para operar. Máximo da Silva relata que “as referências sobre o trabalho das quitandeiras na cidade de São Paulo remontam ao século XVIII, mas foi no século XIX que sua presença nas ruas aumentou, crescendo também as reclamações de outros comerciantes (principalmente os taberneiros) e as posturas e fiscalizações das autoridades municipais, com o intuito de taxar e disciplinar a circulação e horários de funcionamento dos tabuleiros.”

Já Costa destaca que desde a chegada da família real no Brasil se conhece a atuação da Vigilância Sanitária, não necessariamente visando a segurança pública mas a garantia de qualidade de produtos comercializados no mercado internacional. Assim, é junto com o surgimento da comida de rua a tentativa de regulamentá-la. Passados quase duzentos anos, a presença da comida no nosso espaço público vem cada vez mais diminuindo, junto ao aumento das suas restrições pelo poder público.

Hoje pouco se ouve nas ruas a buzina do picoleteiro ou os chamados de vendedores de comida como antigamente. No entanto, em Porto Alegre, junto à inauguração da nova Orla do Guaíba — um amplo espaço público que vem atraindo muitos visitantes aos finais de semana —, vendedores de comida apareceram para servir a população. Uma solução emergente e inteligente, pois não seria viável instalar pontos de venda fixos que, durante a semana, não teriam viabilidade econômica. Alguns destes vendedores eram ambulantes que já atuavam no local anterior à reforma da Orla e foram regularizados com licenças da Prefeitura. Outros não tiveram essa sorte, permanecendo na informalidade enquanto, para o comprador, é quase impossível diferenciar um do outro. Isto levou, alguns meses atrás, à terrível cena da Guarda Municipal imobilizando agressivamente uma senhora que estava vendendo sorvetes no final de semana sem licença.

Ambulantes instalados na Orla do Guaíba, em Porto Alegre, para atender o público dos finais de semana. Imagem: Cesar Lopes – Prefeitura de Porto Alegre/Flickr

Essa realidade percorre as cidades em território nacional. Na semana passada, a Sra. Raimunda, de 65 anos, teve os produtos apreendidos pela fiscalização da Prefeitura de Palmas enquanto vendia bolos, salgados e café. Em entrevista para o G1, ela relatou “Eu tenho alvará, mas não estava com documento porque sempre levava e nunca precisou. A licença é para vendedor ambulante, tem que ficar andando, mas eu não consigo mais”. Tal situação gerou tanta indignação que foi criada uma vaquinha virtual para ajudá-la a recuperar o valor perdido.

Na praia de Florianópolis, mais da metade dos ambulantes, na sua maioria vendendo comida, são irregulares. Em Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro, um comerciante de frutas destruiu as suas frutas ao ser abordado por fiscais do Departamento de Fiscalização de Posturas e Obras Municipal, após ser denunciado por um comerciante local. No Rio, capital, a Prefeitura tenta coibir os ambulantes há anos, com situações recorrentes como a apreensão de goiabas ou de carrinhos de churros pela Guarda Municipal.

Em artigo de Patrick Granja para o site A Nova Democracia, é relatado o caso do ambulante Wilson Amaral que, apesar de morar a 50 quilômetros da capital, vende churros no Centro do Rio:

— Os guardas já levaram a minha barraca duas vezes. Levaram tudo que tinha dentro: a bateria que custou 280 reais, doce de leite, botijão de gás, tudo. Quando eles chegam, eu saio correndo com a barraca. Não tem outro jeito. Da segunda vez, as coisas não sumiram. Deram um laudo de apreensão, mas levei vinte dias pra conseguir tirar a barraca. Com mulher e três crianças pra dar de comer e um monte de contas para pagar, fiquei todo esse tempo sem trabalhar. É muito triste essa situação de ter que ficar que nem bandido. Antes de trabalhar com isso eu já fui garçom, trabalhei em quatro farmácias, mas, pra ficar levando desaforo de patrão, eu prefiro trabalhar aqui.

O discurso normalmente repetido em defesa da regulamentação de vendedores ambulantes é o da vigilância sanitária e da ocupação desordenada do espaço público, como o caso recente de Cuiabá, embora não seja este, atualmente, o principal motivo da tomada de ação do poder público em maioria dos casos. No Rio de Janeiro, por exemplo, a regra de que o vendedor ambulante deve usar avental ou uniforme dificilmente se justifica dado que a atividade é realizada ao ar livre, e a fiscalização é muito mais intensa nas zonas turísticas da cidade. Fiscalizações ocorrem por denúncias de comerciantes concorrentes e, há décadas, em batidas onde fiscais cobram propinas dos ambulantes. A fiscalização também não ataca os problemas relacionados à gestão urbana, pois não focam em sua origem. Se há críticas de que ambulantes ocupam espaço de calçadas ou das vias, é preciso lembrar que a grande escassez do espaço público é na ocupação de mais de 90% da sua área com automóveis individuais, ora em trânsito ora estacionados gratuitamente. Ou seja, nada justifica que um motorista tenha direito superior a um ambulante para estacionar no espaço público com o seu carrinho.

Em relação ao uso dos espaços públicos, ambulantes devem ser regulados quando geram de fato uma ocupação desproporcional e permanente do espaço público, como foi talvez o caso do Largo da Batata em São Paulo e do Largo Glênio Peres em Porto Alegre anterior à remoção dos camelôs, que não apenas comercializavam todo tipo de produto (não apenas comida), como fixaram ponto em uma área significativa e central da cidade, apropriando-se de espaço público e perdendo a sua característica de ambulante propriamente dita.

Ambulantes de comida fazem parte da origem gastronômica brasileira e inegavelmente têm um papel tanto econômico — de sustento para as famílias empreendedoras e o benefício aos clientes atendidos —, como à vitalidade do espaço urbano que, através do pequeno comércio, aumenta a diversidade e humanidade das ações nele realizadas. Assim, ações recentes como as das prefeituras de São Paulo e de Belo Horizonte, buscando regularizar milhares de ambulantes, são bem-vindas. De mesma ou maior importância, ainda, é a aceitação democrática destes empreendedores como parte da vida urbana, permitindo estas atividades que são, muitas vezes, a única alternativa restante de sustento das suas famílias e parte chave da gastronomia brasileira. A comida de rua, ao invés de ser considerada um incômodo, deveria ser vista como um ativo a ser desenvolvido.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Anthony Ling. "A comida e o espaço público " 18 Set 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/924975/a-comida-e-o-espaco-publico> ISSN 0719-8906

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