Assistência técnica como Política Pública Habitacional

Neste relato, Camila Costa Curta nos conta sua experiência com o coletivo Proyecto Habitar (PH) junto a Julian Salvarredy y Clara Mansueto, abordando o problema habitacional na área metropolitana de Buenos Aires e os processos de ensino e aprendizagem em contextos de desigualdade a partir do projeto “'Consultorios de Atención Primaria de Hábitat”. Os Consultorios do grupo PH funcionam com o apoio da Universidad de Buenos Aires e são tidos como um modelo de política pública habitacional a ser replicado.

Aprender a projetar em contextos de desigualdade não cabe dentro do currículo das escolas de arquitetura: somos ensinados a projetar para uma pequena parcela da população brasileira enquanto 85% dos brasileiros constroem sem assistência técnica especializada. 

Para os estudantes que acreditam na necessidade de projetar em cidades reais e anseiam por esse conhecimento, resta a busca individual por experiências alternativas que possam sanar essa deficiência na nossa formação. Nessa busca, encontrei na Universidade de Buenos Aires (UBA) um espaço prático que viabiliza o contato entre estudantes e a arquitetura real.

Nesse relato, apresento minha experiência junto ao coletivo Proyecto Habitar, da Faculdade de Arquitetura, Diseño y Urbanismo da UBA, expondo como contexto a problemática habitacional Argentina com enfoque na Área Metropolitana de Buenos Aires, onde o coletivo atua através dos Consultorios de Atención Primaria de Habitat, implantados em aglomerados urbanos já consolidados como uma ferramenta no ensino da arquitetura - e um possível modelo de política de assistência técnica pública para a população que carece de acesso a profissionais arquitetos e urbanistas.

via Proyecto Habitar

Problema habitacional na Área Metropolitana de Buenos Aires 

As estratégias de ocupação do solo se assemelham no Brasil e na Argentina. A disputa entre classes pelo território urbano ao longo da história dos dois maiores países da américa latina foi marcada pela conformação de aglomerados ilegais e sucessivas expulsões dos que constroem a cidade, mas não tem espaço nela. Esse processo resultou em um território urbano manchado por villas de emergencia e favelas não reconhecidas por mapas oficiais.

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (Organização das Nações Unidas, 1993) define a qualidade habitacional a partir dos seguintes parâmetros: Segurança jurídica da propriedade; Disponibilidade de serviços; Gastos suportáveis, de acordo aos níveis de renda da família; Habitabilidade; Acesso a opções de trabalho; e adequação cultural. O número de famílias que vivem em habitações que não respondem a estes critérios fazem parte do censo que define o déficit habitacional. Em 2016, o déficit habitacional na Argentina chegou a 3,5 milhões, expondo-o como um problema crônico.

O Instituto Nacional de Estadística y Sensos da Argentina (INDEC), qualifica habitações como “deficitarias recuperables” e “deficitários irrecuperables”, diferenciando o déficit habitacional qualitativo e o quantitativo. Entre 1991 e 2010, a porcentagem da população que habitava em unidades classificadas como “irrecuperables” na Argentina diminuiu, enquanto a quantidade de habitações “precárias recuperables” aumentou em valores absolutos. Este dado indicou a necessidade de políticas habitacionais que tenham por objetivo a recuperação do parque existente - incidindo sobre o déficit habitacional qualitativo em detrimento do déficit quantitativo.

Intervir em uma comunidade de modo a qualificá-la provoca mudanças significativas nas dinâmicas sociais já estabelecidas - realocar famílias para um lugar distante ao de origem pode resultar na insatisfação da população realocada e possível abandono/venda das novas residências e retorno às habitações precárias de origem. É por essa razão que o reconhecimento das problemáticas de cada comunidade é importante para a geração de diagnóstico e proposta de soluções, colocando a aproximação e contato com as pessoas como ferramenta necessária para compreender suas dinâmicas e necessidades. A participação torna-se assim uma estratégia projetual imprescindível para a construção de habitações satisfatórias, e é com base em uma metodologia participativa que os Consultórios funcionam, propondo uma política que incida sobre o déficit habitacional qualitativo através do melhoramento de habitações precárias. 

via Proyecto Habitar

Consultorios de Atención Primaria de Hábitat

Os Consultorios de Atención Primaria de Hábitat (CAPH) são “o setor do Sistema Público de atenção ao direito à habitação e à cidade mais próximos da população, que se destina especialmente à resposta a casos de habitações recuperáveis, estabelecidos com equipes interdisciplinares, de base científica e social, e implementados por meio da efetiva e democrática participação comunitária” (Jaime E. y Salvarredy J. 2011).

São três os objetivos que guiam o funcionamento dos Consultorios de Atención Primaria de Habitat:

  • Promover aconselhamento, diagnóstico e contribuições do projeto às famílias em situação de habitação precária.
  • Testar instrumentos de intervenção que possam ser abordados em políticas públicas para alcançar maiores escalas de intervenção.
  • Desenvolver procedimentos que colaborem na construção de um processo de crescente incorporação de problemas sociais no campo acadêmico.

Processo de ensino-aprendizagem

No âmbito de um estágio de formação acadêmica, em 2017 é realizado um escritório de Atenção Primária em Habitat, coordenado por professores do Proyecto Habitar, para o desenvolvimento de melhorias habitacionais no Barrio los Milagros, localizado na AMBA. O bairro, formado por 100 novas residências e um espaço comum, foi construído no âmbito de uma política habitacional de interesse social para a realocação de moradores de dois assentamentos próximos e inaugurada no ano de 2010. 7 anos depois os espaços habitacionais e coletivos apresentaram uma crescente deterioração qualitativa-quantitativa, e as famílias que ali moravam passaram a fazer parte do déficit habitacional.

A metodologia de trabalho utilizada no estágio de formação foi organizada em cinco momentos: Pacto; Consultas; Pesquisas; Retorno coletivo de projetos e escolha de alternativas; Devolução individual de projetos e entrega de pastas. (JAIME, 2012).

Junto aos Consultorios, atuei no projeto de reforma de edificações do Barrio los Milagros, localizado na Área Metropolitana de Buenos Aires e inaugurado no ano 2010. Constituído por 100 casas de mesma tipologia, em 2017 o Barrio los Milagros já apresentava um déficit qualitativo significativo: entre 80% e 100% de habitações possuiam conexão insuficiente a serviços básicos como água, esgoto e gás; 20% a 30% das habitações eram de qualidade construtiva insuficiente; e 10% a 30% de propriedade tinham registro de posse irregular.

Esta análise foi retornada criticamente aos ateliês da faculdade para a construção do programa social. Este não segue o programa de necessidades listado pela família, nem se trata de uma lista de espaços funcionais quantificados em metros quadrados comumente utilizadas nos ateliês da faculdade, mas busca reconhecer e listar possíveis transformações espaciais que envolvam os habitantes e as atividades cotidianas que realizam ou gostariam de realizar, e o modo que devem ser realizadas de modo a favorecer a apropriação coletiva do espaço. Em uma última etapa, propõem-se diferentes projetos que se modificam ao longo dos encontros até convergir em uma proposta final. Uma pasta com um projeto arquitetônico específico para cada caso é detalhado e entregue a cada família. 

Neste processo, a relação entre as edificações e a rua é considerada e repensada, dentro de um conjunto habitacional onde o espaço público não é planejado, mas apenas resultado da configuração tipológica das edificações, estruturando-se como vazios não qualificados. Em um trabalho posterior, os Consultórios alcançam a escala do bairro e propõem a qualificação desses vazios, transformando vias e lotes vazios em espaços de permanência que estimulam a convivência entre os moradores. 

via Proyecto Habitar

Reflexões finais

É comum que habitações de cunho social sejam modificadas ao longo de seu uso por não abrangerem as necessidades de seus habitantes, que usualmente não são consultados quando o projeto original é elaborado. Por ser a propriedade em questão o único espaço ao qual os moradores terão acesso financeiro, é ali que realizam a maior parte de suas atividades, e é ali que provavelmente vão permanecer por um longo tempo de suas vidas. Familiares são agregados, usos que promovem renda a família sugerem a necessidade da criação de novos ambientes de trabalho - dentro de um bairro onde o uso habitacional é dominante - e a expansão de espaços que foram construídos a partir de medidas mínimas precisa ser feita. Essas modificações são hegemonicamente realizadas através da autoconstrução, sem o suporte de profissionais arquitetos ou engenheiros civis, implicando em soluções que em sua maioria não são ideais, com espaços mal dimensionados e construtibilidade deficiente, configurando habitações precárias, com conforto ambiental comprometido e risco de desabamento. 

 

O trabalho dos Consultórios de Atención Primaria de Habitat é justamente auxiliar os moradores com essas ampliações e modificações, de forma a propor habitações mais dignas e saudáveis. 

Notas

[1] Romullo Baratto. "85% dos brasileiros constroem sem o auxílio de arquitetos ou engenheiros" 13 Out 2015. ArchDaily Brasil. Acessado 27 Abr 2018. <https://www.archdaily.com.br/br/775189/85-percent-dos-brasileiros-constroem-sem-o-auxilio-de-arquitetos-ou-engenheiros>

[2] EL DÉFICIT HABITACIONAL EN LA ARGENTINA Estimación para el año 2009 Lic. Ricardo Lazzari

[3] TELAM. Estiman que el deficit habitacional en Argentina ronda las 3.5 millones de viviendas. Disponible en: <
http://www.telam.com.ar/notas/201603/138760-deficit-habitacional-argentina.html> Acceso el 27 Abril 2018

Bibliografia

- GAZZOLI, Rubén. Vivienda Social: Investigaciones, ensayos y entrevistas. Buenos Aires: Nobuko, 2007

- JAIME, Eugenia. Cuaderno de Trabajo nº 1: Rescatando saberes en contexto. Buenos Aires, 2016.

- JAIME Eugenia, MANSUETO Clara en Proyecto Habitar. Ver para resolver: transformar las necesidades en
proyectos. Buenos Aires, 2017. Disponible en: https://issuu.com/proyectohabitar/docs/ver_para_resolver Acceso
en nov 2017

- Proyecto Habitar. Cuaderno de Trabajo nº 2: Lecturas Territoriales en Contextos de Desigualdad. Buenos
Aires, 2016. Disponible en: < https://issuu.com/proyectohabitar/docs/cuaderno_de_trabajo_2 > Acceso en nov
2017

- SALVARREDY, Julian. Cuaderno de Trabajo nº 1: Hacia un sistema público de hábitat. Primeras
aproximaciones al diseño de una política de hábitat integrada. Disponible en <https://issuu.com/proyectohabitar/docs/ph_cuaderno_n___1/4> Acceso en nov 2017

Sobre este autor
Cita: Camila Costa Curta. "Assistência técnica como Política Pública Habitacional" [Consultorios de Atención Primaria de Hábitat: una experiencia político-pedagógica en un conjunto habitacional de interés social en Buenos Aires] 13 Set 2019. ArchDaily Brasil. (Trad. Souza, Eduardo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/924763/assistencia-tecnica-como-politica-publica-habitacional> ISSN 0719-8906

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