Brasília, leitores e leituras da cidade

Brasília, leitores e leituras da cidade

Brasília é sempre objeto de interesse de arquitetos de todo o mundo. A prova disto é a quantidade volumosa de publicações feitas sobre a nova capital do Brasil ao longo dessas quase seis décadas de inauguração.

Sobre a cidade de Brasília, ficam as perguntas[1]: Quem falou sobre a cidade? Quem criticou sua construção? Como os brasileiros interpretaram a ideia de uma nova capital? O levantamento de seus debatedores possui o objetivo de compreender melhor o ‘Estado da Arte’ das interpretações sobre a arquitetura no Brasil. Em um horizonte futuro, este tipo de olhar historiográfico versa levantar perguntas e a elaboração de um olhar crítico para as formas mais usuais de leitura sobre a arquitetura moderna no Brasil.

Os livros e os leitores

Este ensaio está estruturado a partir de cinco pontos de discussão da historiografia de Brasília. Esses pontos, denominados aqui de ‘cenas’, compreendem períodos comuns sobre a cidade – ou seja, publicações que apresentam leituras e narrativas semelhantes. Ainda que existam trabalhos na mesma ‘cena’ que apresentam algumas distinções, é certo que este agrupamento propõe um olhar para uma genealogia da nossa historiografia e dos debates sobre a cidade de Juscelino Kubitschek.

Cena I. O ponto de inflexão

Cortesia de Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Um livro chamado Two Brazilian Capitals, publicado no ano de 1973, tinha o objetivo de apresentar uma narrativa sobre a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília. A autora deste trabalho, uma historiadora norte americana chamada Norma Evenson, trabalha, quando analisamos as partes que se referem à cidade de Brasília, com temas que se tornariam correntes em publicações posteriores sobre a cidade. Avalia, por exemplo, os outros projetos que concorreram com o projeto vencedor de Lucio Costa – detalhando as especificidades de propostas como a da equipe de Rino Levi e dos irmãos Roberto. Também coloca em destaque os edifícios projetados por Niemeyer e a proliferação de cidades satélites ao redor da cidade planejada.

Em várias passagens fica claro que, diferentemente dos livros publicados nos anos anteriores, o livro de Evenson se apresentava como um texto de um historiador – feito com pesquisa em campo e amplo levantamento documental. É uma inflexão nos debates sobre a cidade e indica que uma possibilidade é analisar retrospectivamente os trabalhos que culminaram nessa publicação. Olhar para os livros anteriores sobre Brasília permite, portanto, conhecer uma genealogia de formação de ‘debates’ sobre a cidade.

Cena II. Os debatedores e a apologia

Cortesia de Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Após o concurso do Plano Piloto e a divulgação das obras de Brasília o país parece ter se interessado nesta obra síntese do governo JK.

O ano de 1957 marca o início da construção da cidade e, até pelo menos os primeiros anos de 1960, livros que abordam a cidade de Brasília como um objeto ‘futuro’ – ou seja, uma promessa de transformação e catalisação de uma outra realidade brasileira. São publicações apologéticas e, não raras vezes, diretamente ligadas ao então presidente Juscelino Kubitschek. Buscavam apresentar aos brasileiros e aos leitores estrangeiros que Brasília era uma ideia proveitosa para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Publicações ‘oficiais’, ou seja, que tinham vínculo direto com a máquina pública federal fazem parte deste grupo de leitores de Brasília, bem como autores sem vínculo oficial com Juscelino mas com grande intenção de divulgar o que era, para eles, um grande acontecimento na história do Brasil. Dentre as presentes no primeiro grupo podemos mencionar a revista Brasília, a coleção Brasília, os livros e publicações feitas com objetivos diplomáticos e um trabalho de Roland Corbisier vinculado ao ISEB. Já no segundo grupo estão os livros de Moisés Gicovate, Peixoto da Silveira e Osvaldo Orico.

Cena III. Os narradores em primeira pessoa

Cortesia de Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Um desdobramento desses livros seriam as publicações escritas em ‘primeira pessoa’, ou seja, de pessoas que participaram da construção de Brasília e que optaram pela redação de um livro de ‘relatos’. Essa categoria de publicação de mostra a força de Brasília entre a população, que a associa não somente a um evento nacional, mas a um acontecimento importante em suas vidas privadas.

Em um primeiro plano estariam debatedores vinculados à política ou a Novacap. Estão presentes publicações realizadas por Juscelino Kubitschek, Plinio Salgado, Oscar Niemeyer, Eduardo Kneese de Mello e Ernesto Silva.

Cortesia de Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Mais interessantes são, no entanto, os livros de narradores anônimos, ou seja, pessoas que decidiram pela publicação de suas experiências na construção e consolidação dessa cidade que era um ‘sonho’ para os brasileiros. Esses são leitores de Brasília a partir de um olhar afetivo, distante da burocracia estatal ou de desejos pessoais de convencimento coletivo. São também a prova de que a cidade de JK mobilizou muitas pessoas – que compraram a ideia e que acabaram fazendo parte dessa epopeia da construção da capital.

Cena IV. Os primeiros ensaios

Cortesia de Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Os trabalhos feitos até meados dos anos 1960 não possuíam perfil de publicações que pretendiam interpretar Brasília ou elaborar uma versão histórica de seu acontecimento. Eram livros e publicações muitas vezes panfletárias, que defendiam cegamente a capital, ou textos repletos de afetividades. Um olhar mais panorâmico não apareceu de repente.

Seria somente após a inauguração da cidade que surgiriam os primeiros livros ensaísticos. Escritos por personalidades como Henrique Mindlin e Gilberto Freyre, tomariam posições distintas com relação à cidade de Brasília. Mindlin insere, de maneira pioneira, Brasília dentro de uma genealogia da arquitetura moderna brasileira, pontuando que a cidade seria um desdobramento das experiências modernas no Rio de Janeiro – insistindo na ideia de abrasileiramento de nossa arquitetura. Freyre, em oposição, falará de Brasília como um acontecimento distante da diversidade cultural do Brasil. A cidade seria, para ele, um objeto de arquitetos, que não valorizava as virtualidades do povo brasileiro.

Um trabalho de 1965 também representa a primeira publicação sobre as edificações de Brasília em formato de livro. Willy Staubly faz um compilado de projetos com textos em alemão e inglês. Brasília havia sido publicada em muitas revistas ao longo dos anos 1950 e 1960, mas a ideia de um volume apenas para os projetos – destacando não apenas os edifícios monumentais, mas também alguns pouco conhecidos – é uma operação com dosagem de ineditismo.

Cena V. A Brasília ‘real’

Cortesia de Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Em uma outra etapa, aparecem publicações que abordam a Brasília construída, ou seja, a cidade que se consolidaria alguns anos após sua inauguração. Ultrapassando as promessas de JK surgem livros que falam das cidades satélites, de problemas urbanos, das condições de vida e de trabalho em uma cidade planejada.

Nessa abordagem é destaque o livro de Olimpio Ferraz, crítico à transferência da cidade nos idos dos anos 1960. Entretanto, são os livros de José Pastore, de 1969, e David Epstein, finalizado em 1973, que marcam abordagens à cidade que se efetivava. José Pastore fará uma pesquisa com os habitantes do plano de Lucio Costa e das cidades satélites – procurando compreender o comportamento do homem no espaço planejado. David Epstein analisará criticamente, do ponto de vista econômico, as possibilidades transformadoras de um empreendimento como Brasília.

Estudos e debates sobre os problemas enfrentados por Brasília marcarão a virada dos anos 1960 para os anos 1970. Fato é que a Brasília utópica dos anos 1950 se transfigura, já no início dos anos 70, em uma cidade ‘real’, ou seja, com problemas de habitação, circulação e áreas verdes coletivas.

Um Brasil ‘moderno’

Brasília, de um lado, representou o sonho de um Brasil moderno. A arquitetura de Niemeyer, com suas formas curvas e futurísticas, representam o Brasil que não era, mas que seria. No imaginário popular a cidade crava uma perspectiva de futuro e do que significava ser um país desenvolvido e distante de um passado colonizado. De outra forma, também aparece como a promessa ‘não cumprida’ de modernidade – principalmente quando avaliamos a existência de cidades satélites e a quantidade de pesquisadores que se dedicaram a escrever livros que criticavam a cidade e suas periferias.

Para os arquitetos, vale lembrar como a arquitetura é um ofício de alta carga simbólica e imagética. Brasília é o maior símbolo do Brasil de JK e da transição dos anos 1950 para os anos 1960, presente no imaginário não apenas de arquitetos mas de muitos brasileiros humildes que acompanhavam os acontecimentos no centro do país.

Notas
[1] Este texto é baseado em dissertação de mestrado elaborada na Universidade de São Paulo sob a orientação do Prof. Carlos Alberto Ferreira Martins que buscou, nessa perspectiva, destrinchar os debates e as narrativas existentes sobre a cidade de Brasília. Foi realizada ampla pesquisa de acervo, realizada na USP e na Universidade do Texas em Austin.

Referências
CORBISER, Roland. Brasília e o desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960.
EPSTEIN, David. Brasília, plan and reality. Los Angeles: University of California Press, 1973.
EVENSON, Norma. Two Brasilian capitals. Architecture and urbanismo in Rio de Janeiro and Brasília. New Haven and Londres: Yale University Press, 1973.
FERRAZ, Olimpio. Brasília. São Paulo: Editora Fulgor, 1961.
FREYRE, Gilberto. Brasis, Brasil, Brasília. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1960.
GICOVATE, Moisés. Brasília: uma realização em marcha. São Paulo: Melhoramentos, 1959.
KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch Edições, 1975.
MELLO, Eduardo Kneese. Brasília: Histórias e Estórias. São Paulo: Demais Editoração, 1992.
MINDLIN, Henrique. Brazilian architecture, Barroque across the seas. International architecture in the tropics. Brasília: dream or reality?. Londres: Lethaby Lectures, 1961.
NIEMEYER, Oscar. Minha experiência em Brasília. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
ORICO, Osvaldo. Brasil, capital Brasília. Rio de Janeiro: Serviço gráfico do IBGE, 1960.
PASTORE, José. Brasília: a cidade e o homem. Uma investigação sociológica sobre os processos de migração, adaptação e planejamento urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
SALGADO, Plinio. Treze anos em Brasília. São Paulo: Horizonte, 1973.SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realidade. Brasília, CDL, 1999.SILVEIRA, Peixoto da. A nova capital: Por que, para onde e como mudar a capital federal. Rio de Janeiro: Pongetti, 1959.
STAUBLI, Willy. Brasília. Nova York: Universe Books, 1965.

Luiz Gustavo Sobral Fernandes é arquiteto e doutorando pela Escola Técnica Superior d’Arquitectura de Barcelona. É sócio do Arquitetura Meridional, escritório de arquitetura sediado em São Paulo.

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Sobre este autor
Cita: Luiz Gustavo Sobral Fernandes. "Brasília, leitores e leituras da cidade " 15 Set 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/924667/brasilia-leitores-e-leituras-da-cidade> ISSN 0719-8906

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