Os espaços livres da cidade e a liberdade das crianças: novos caminhos para a infância ao ar livre

A temática da ausência da criança na cidade contemporânea, e a busca por soluções que permitam sua mobilidade com mais autonomia e divertimento, norteou um estudo com cerca de 130 crianças, de 7 a 12 anos, de diferentes classes sociais, moradoras do distrito da Consolação, na cidade de São Paulo. Depois de caminhar, conversar e desenhar com as crianças um percurso ideal entre a praça e a escola, foi desenvolvida uma proposta de intervenção [2], que costura os bairros de Vila Buarque e Higienópolis e pretende trazer os pequenos para brincarem em grupo, ao ar livre, todos os dias.

“Uma cidade que negligencia a presença da criança é um lugar pobre. Seu movimento será incompleto e opressivo. A criança não pode redescobrir a cidade a não ser que a cidade redescubra a criança. [1]” – Aldo Van Eyck, The child, the city and the artist,1962.

A explosão demográfica das cidades pós revolução industrial e os decorrentes projetos de planejamento urbano foram, pouco a pouco, afastando as crianças dos espaços públicos urbanos. Ruas mais largas e velozes, com o surgimento do automóvel; ritmo de vida mais acelerado, com a mulher unindo-se à força de trabalho; e as distâncias entre casa, trabalho e escola muitas vezes aumentada; reduziram a atenção ao pedestre e tornaram as cidades cada vez menos amigáveis para os pequenos.

Se na Europa reconstruída pós-guerra, incompleta na percepção de Van Eyck, a criança tornou-se ausente da vida urbana, na cidade contemporânea o cenário é ainda mais perturbador. Fatores como o aumento da violência urbana, a redução demográfica e consequente aumento de filhos únicos, surgimento de novas tecnologias, crescimento das redes sociais virtuais, e ênfase desenfreada no consumo, contribuíram para uma tendência de isolamento das crianças em espaços fechados e privativos. Nas grandes metrópoles, como São Paulo, a maioria das crianças vive aprisionada nos muros de suas casas, condomínios, escolas, shopping centers e centros de lazer. O seu trânsito na cidade é predominantemente muito rápido, sendo praticamente reduzido ao simples deslocamento e confinado dentro do carro ou do transporte público. O caminhar pelas calçadas e ruas e a permanência em espaços livres da cidade é sempre muito limitado. O resultado é que se consolida na contemporaneidade uma cidade de adultos, na qual estes que têm circulação livre, participam e opinam sobre sua configuração.

Isso é maléfico para a saúde física e social das crianças, porque elas tomam menos banho de sol, desenvolvem menos suas funções motoras, interagem menos socialmente, ficam mais isoladas e limitadas ao lazer dentro de casa associado à tecnologia e, por fim, não desenvolvem nenhum sentimento de pertencimento em relação à cidade. É também ruim para a cidade, pois uma cidade adequada para a criança é uma cidade mais diversa, mais saudável, mais amigável, mais divertida, mais democrática, enfim, é uma cidade boa para todos. Nosso desejo é que as crianças possam brincar ao ar livre cotidianamente. Para isso ser possível, precisamos olhar as ruas e os espaços livres da cidade de uma outra maneira.

Depois de mapear praças e escolas de 3 distritos da cidade, Consolação, Alto de Pinheiros e Campo Limpo, para entender a relação entre esses dois espaços que as crianças frequentam, concentrou-se a análise no distrito central. No recorte de estudo há 24 escolas, entre públicas e privadas, e mais 24 espaços educadores (como escolas de inglês, dança, artes e esportes), que somam cerca de 10 mil crianças e adolescentes, mas essas crianças hoje estão isoladas nos muros de suas casas e escolas. Pensem na oportunidade que essas crianças estão perdendo de se conhecerem, de trocarem experiências, de brincarem juntas! Esse projeto tem a vocação de estimular esse encontro e compartilhamento. É um percurso entre praças e escolas com pontos de brincar no caminho. O encontro do espaço educador e do espaço de brincar para que ambos se transformem em lugares de brincadeira e aprendizado, libertando as crianças dos muros, para que elas usem esses novos espaços para brincarem todos os dias.

Conversa com crianças sobre o que elas podem, não podem e gostariam de fazer. Foto: Juliana Flahr

Antes de iniciar o projeto, foi desenvolvida uma longa pesquisa, que começou com o estudo com crianças estudantes de escolas da região. Conversou-se com cerca de 130 crianças, de 7 a 12 anos, de diferentes classes sociais moradoras do distrito da Consolação. Entre outros aprendizados, os desenhos das crianças idealizando o caminho entre a escola e a praça, e a dinâmica na qual elas sinalizavam o que podiam (com bolinhas verdes), não podiam (com bolinhas vermelhas) e gostariam de fazer (com bolinhas amarelas) em casa, na escola, na praça e na rua, revelaram que crianças que estudam em escola pública, tem uma visão e relação muito diferente com a cidade do que as crianças que estudam em escola privada. As primeiras, que geralmente andam mais a pé, usam o transporte coletivo e frequentam mais as praças, desenham um caminho muito mais relacionado com a realidade da cidade, com toda sua beleza e conflitos. Já aquelas que vivem muito mais “protegidas” e alheias à rotina da metrópole, ilustram um caminho associado à fantasia dos contos de fadas, desenhos animados e jogos de videogame. Nos desenhos dessas crianças aparecem ruas cobertas por balas de menta, frangos voadores, vilões de videogame e cenas paradisíacas, por exemplo. Por outro lado, fica claro que os espaços públicos são a única possibilidade de encontro dessas crianças, tanto do ponto de vista físico como da convergência de sonhos, pois é neles que todas as crianças se enxergam brincando com a tão almejada completa liberdade.

Idealização do caminho praça-escola por crianças que estudam em escola pública
Idealização do caminho praça-escola por crianças que estudam em escola privada

Foi feita também a leitura de todo território, mapeando as escolas e praças, e observando ruas, calçadas, fachadas e coberturas, para escolher o melhor percurso para as crianças transitarem entre as praças e escolas, para criar uma rede amiga da criança, com  estabelecimentos educativos, comerciais e de serviços, e para selecionar os melhores pontos para as novas áreas de brincar. Além disso, analisou-se os manuais de caminhos escolares implementados no mundo todo, por diversos países, para conhecer procedimentos que conferem segurança ao caminho que será percorrido pelas crianças.

Mapa do percurso praça-escola

Toda pesquisa, desde a cartografia com as crianças, até a análise dos manuais de caminhos escolares, mostrou a importância da continuidade e clara sinalização do percurso. Como uma das premissas de projeto era trabalhar com materiais pré-existentes, pois não se pretendia infantilizar a cidade, mas torná-la acessível e atraente para as crianças, usou-se o pavimento mais consagrado de São Paulo, o mapa do estado em ladrilho hidráulico preto e branco, para criar quatro padrões: 1. padrão tradicional: indica passeio do pedestre; 2. piso preto: destaca perigo, as entradas de garagem; 3. piso branco: denota aproximação da faixa de pedestre; 4. padrão livre: sinaliza as novas áreas de brincar. Ao longo desse percurso, foram desenvolvidos pontos de brincar com diferentes escalas, que se apropriam de calçadas, vagas de estacionamentos e muros da cidade. Além do novo pavimento, interferiu-se na topografia e criou-se mobiliários-brinquedos, para não apenas as crianças, mas todos os habitantes da cidade usarem e brincarem.

Desenho do piso das calçadas, para conferir continuidade e clara sinalização

Para definir os novos pontos de brincar, foram criados alguns critérios relacionados aos 4 planos do percurso: calçada, rua, fachada e cobertura.

Calçada: boa condição espacial (largura e continuidade) ou possibilidade de criá-la. Evitar ou proteger de trechos com alto tráfego de pedestres, como proximidade com equipamentos públicos.

Rua: Escolher trecho com menor tráfego e velocidade de automóveis ou possibilidade de redução de velocidade da via. Avaliar a possibilidade de redução das vagas de estacionamento de carros para permitir o alargamento da calçada, ou implantação de parklets de brincar.

Fachada: imprescindível ter proximidade de ponto (s) da rede amiga, permitindo a franca visibilidade do ponto de brincar ou estabelecimentos da rede. Avaliar a existência de recuos, muros e gradis que possam ser potencializados pelo ponto de brincar.   

Cobertura: Existência ou possibilidade de criação de sombra (árvores ou marquises).

Ponto de brincar - grande escala, perspectiva
Ponto de brincar - grande escala, corte e planta baixa
Ponto de brincar - grande escala, perspectiva isométrica
Ponto de brincar - pequena escala, perspectiva
Ponto de brincar - pequena escala, planta baixa
Ponto de brincar - pequena escala, perspectiva isométrica

Dos dez pontos de brincar definidos, escolheu-se três, de escalas diferentes, para desenvolver o projeto arquitetônico-urbanístico de fato. Esses projetos representam uma pequena amostra de como poderiam ser os pontos de brincar não apenas nesse distrito, mas de qualquer outro ponto da cidade, uma vez que nos apropriamos de estruturas que encontramos em todas as partes, como calçadas, vagas de estacionamento, muretas e muros. Cada um deles tem uma escala e um procedimento próprio, para exercitar e exemplificar um leque de situações possíveis.

O objetivo final do projeto é destacar a potência da ligação entre a praça e escola, porque transformar esse espaço de circulação das crianças entre suas casas, a escola e a praça, num caminho mais seguro, um passeio mais agradável e uma experiência cotidiana mais divertida é um ato político, educativo e social.

Político, porque enfatiza a importância da presença da criança na cidade. O novo desenho de piso que liga praças e escolas tem o papel de chamar a atenção de toda sociedade, é como se ele dissesse “Hei, há crianças por aqui e elas podem e querem ocupar esse espaço livre da cidade, que, afinal, também é delas.” Traz a tona o papel de cidade educadora e formadora dos seus habitantes, estimulando a criação de uma rede amiga da criança, que viabiliza o brincar das crianças nas ruas com mais autonomia e segurança.

Educativo, porque evidencia a necessidade de reformar o ensino tradicional, há muito tempo ineficiente e ultrapassado. O Brasil é o 58º colocado, entre 64 países participantes no PISA1 2012.  60% das escolas públicas estão abaixo das metas do IDEB2 2014 nos anos finais do ensino fundamental e as escolas públicas estaduais tem um índice muito abaixo das escolas privadas. A proposta de educação integral, para muitos pensada como solução, tem que ser vista sob a perspectiva do tempo e do espaço. Novas proposta pedagógicas, como as Comunidades de Aprendizagem, ampliam os limites da escola, apropriando-se de ambientes ociosos do bairro, desenvolvendo uma série de atividades fora da escola. Esse projeto almeja evidenciar a importância do brincar e da vivência do espaço público para a formação das crianças em cidadãos conscientes e atuantes, e a rua e a praça são excelentes lugares de aprendizado.

Social, porque permite que as crianças brinquem ao ar livre, o que é fundamental para sua saúde e desenvolvimento, estimula o encontro cotidiano da comunidade e permite o convívio de crianças de diferentes níveis sócio econômicos nas ruas e pontos de brincar da cidade. O cotidiano infantil é um espelho da sociedade, cada grupo vive segregado em seu ambiente. A rua e a praça são espaços democráticos e representam praticamente a única possibilidade dessas crianças se mesclarem.

Notas
[1] Tradução livre da autora de “A city which overlooks the child’s presence is a poor place. Its movement will be incomplete and oppressive. The child cannot rediscover the city unless the city rediscovers the child”.
[2] Esse Trabalho de Conclusão de Curso foi realizado em grupo, na disciplina Estúdio Vertical da Escola da Cidade. A orientadora do TCC foi Ana Carolina Tonetti e de EV foram Martin Corullon (orientador), André Vainer e Silvio Oksman (co-orientadores). Os alunos que colaboraram para a pesquisa foram Joana Andrade, Felipe do Amaral e Juliana Flahr e na autoria do projeto foram Juliana Flahr e Mateus Loschi.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Luciana Teixeira de. Singularidade e igualdade nos espaços públicos. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto: Imprensa Oficial de Minas Gerais. Ano 1, n. 1. P.
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Relógio d’augua, 2005.
BRETTAS, Nayana. A cidade (re) criada pelo imaginário e cultura lúdica das crianças. Tese de Mestrado, 2009.
EYCK, Aldo Van.  Aldo Van Eyck Withings. The child, the city and the Artist, editado por LIGTELIJN, Vincent e STRAUVEN, Francis. SUN, 1962.
GEHL, Jan; tradução Anita Di Marco, Cidade para Pessoas, 2a edição, São Paulo, Editora Perspectiva, 2013.
GOULART Beatriz. O pátio escolar como território entre escola e cidade, 2011.
SECCHI, Bernardo. Primeira Lição de Urbanismo, São Paulo, Editora Perspectiva, 2015.
ROLNIK, Raquel. O lazer humaniza o espaço urbano. In: SESC SP. (Org.). Lazer numa sociedade globalizada. São Paulo: SESC São Paulo/World Leisure, 2000
TONUCCI, Francesco. La ciudad de los ninos. Espanha, Grao, 2015.

Guega Rocha Carvalho formou-se em arquitetura e urbanismo pela Escola da Cidade, em 2017. Estudou Comunicação Social, Administração de Empresas e Design de Interiores e trabalhou como planejadora estratégica de comunicação. Colaborou com o escritório Brasil Arquitetura e fundou o Estúdio Guega, em 2019.

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Sobre este autor
Cita: Guega Rocha Carvalho. "Os espaços livres da cidade e a liberdade das crianças: novos caminhos para a infância ao ar livre" 04 Set 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/923962/os-espacos-livres-da-cidade-e-a-liberdade-das-criancas-novos-caminhos-para-a-infancia-ao-ar-livre> ISSN 0719-8906

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