Estratégias de manutenção para habitação social na América Latina

Dando sequência à série de artigos de Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy y Ernesto Philibert-Petit sobre o estudo da habitação social na América Latina, nesta ocasião os autores discutem as esratégias de manutenção dos conjuntos. 

14 - Habitação Social na América Latina: Estratégias de manutenção

Alternativas viáveis e uma abordagem inovadora

A tradição construtiva vernácula é novamente considerada como fornecedora de soluções absolutamente necessárias aos problemas de habitação do mundo contemporâneo. Utilizando tipologias tradicionais e materiais locais, as pessoas podem construir o tecido urbano de modo muito mais barato se comparado aos métodos industriais de construção que nós, das nações ocidentais desenvolvidas, passamos a aceitar inquestionavelmente. Olhando para o passado no que diz respeito a todas as soluções bem-intencionadas para a habitação em massa, muitas, se não a maioria delas, podem ser consideradas fracassos tanto do ponto de vista social como no sentido tectônico. Nós oferecemos neste artigo uma abordagem alternativa para a questão da habitação, trabalhando com a perspectiva de uma sustentabilidade em longo prazo. E ainda mais importante, nós acreditamos que o ponto essencial é tentar auxiliar na conexão entre moradores e ambiente construído.

Uma explícita seqüência de códigos geradores para construção de habitação em Greenfield (área verde sem construções ou virgem) ou em Open Brownfield (região com construções, normalmente industriais ou comerciais, que passaram por abandono, desmantelamento e posterior desocupação) é utilizada em projetos reais concebidos e construídos por Christopher Alexander (como detalhados em The Nature of Order, 2001-2005). Também fazemos extensas referências a trabalhos mais antigos do mesmo arquiteto, como A Pattern Language (1977).

As partes anteriores destes artigos investigaram os problemas multifacetados que envolvem uma abordagem inovadora para habitação social que pretende trabalhar a propriedade e o pertencimento social e emocional com os moradores. Oferecemos soluções práticas que estão em desacordo com as atuais propostas urbanas de agências governamentais e outras bem-intencionadas organizações não governamentais. Explicitamos nossas objeções, e oferecemos o que consideramos ser alternativas viáveis. Nesse sentido, esperamos contribuir para a solução dos problemas monumentais da habitação no mundo, utilizando as energias e aspirações dos próprios moradores.

O presente trabalho identifica alguns dos problemas que enfrentamos por causa de uma maneira definida de fazer as coisas nas últimas décadas. Existem problemas de percepção e de ideologia, que se misturam com outros problemas graves de implementação inovadora. Acreditamos que seja possível resolver todos esses problemas, mas não sem, antes, compreendê-los claramente.

Especificamente, estamos desperdiçando nosso tempo propondo soluções práticas ao mesmo tempo em que governos e a indústria da construção se apóia cegamente em dogmas da arquitetura e da moda. Como estes são profundamente imbricados à academia e a uma classe intelectual privilegiada, e são promovidos acriticamente pela mídia global, será uma luta árdua atingirmos nossos objetivos. A maioria dos arquitetos parece disposta a sacrificar a habitação adaptativa pela humanidade desde que eles possam manter sua ideologia de formas estéreis. Esperamos poder reverter essa situação retornando ao método de-baixo-para-cima de projeto.

Esta série de ensaios enfrenta o difícil problema de re-urbanizar a favela para fazer dela uma parte aceitável do tecido urbano. Algumas vezes isso não pode ser feito. Nós discutimos uma estratégia de reforço para quando for factível. Analisamos algumas dificuldades no entendimento da vida de um morador informal, como, por exemplo, a sua necessidade econômica de estar próximo ao centro. Isso faz com que a habitação social construída nos arrabaldes afastados da cidade seja pouco atraente. Nós também chamamos a atenção para os grandes esquemas que podem se tornar desastres econômicos, e culpamos os arquitetos por imporem formas modernistas às habitações sociais. Aquela geometria as faz hostis aos residentes. Mas também culpamos os residentes por rejeitarem tipologias urbanas e de habitação adaptáveis, desejando as estéreis imagens do modernismo. As condições são diferentes, hoje, das décadas passadas e demonstram otimismo ante a ampla aceitação da habitação adaptável.

A estratégia de manutenção se concentra no usuário

A não ser que se façam provisões, no começo, para a manutenção continuada do ambiente construído, ele irá tornar-se disfuncional. Os projetos de habitação social e as favelas podem ter problemas muito sérios, mas alguns são, claramente, de menor sucesso do ponto de vista social, do que outros, e a deterioração física é vista crescer ao longo do tempo. Esta idéia está de acordo com a concepção orgânica do tecido urbano. Todas as entidades vivas requerem manutenção contínua e reparo: é parte de estar vivo. Aqui nós podemos distinguir os dois componentes principais da vida, separados entre mecanismos genéticos e metabólicos. Em primeiro lugar, processos genéticos constroem o organismo, enquanto os processos metabólicos o mantém e continuamente o reparam.

Os mesmos processos, ou seus análogos próximos são aplicáveis ao tecido urbano como uma entidade orgânica. Uma vez construído, ele tem que incorporar em si mesmo, os mecanismos para sua manutenção. A manutenção não vem de um processo de-cima-para-baixo. Nós estamos desapontados pela ampla negligência das forças responsáveis pela evolução temporal do tecido urbano, e pelo que é requerido para mantê-lo numa ordem saudável. Muitas pessoas têm uma concepção não-realística, estática da forma urbana. O modelo orgânico leva a várias recomendações:

  • 1. Encoraje e apóie os ocupantes a manter suas moradias ao garantir uma conexão emocional, desde o início do processo. A solução de aluguel tradicional tem sido desastrosa. Não é razoável para um ocupante valorizar uma estrutura material, sem feições, e que é de propriedade de um outro. No entanto, é possível estabelecer um sentimento de propriedade e de responsabilidade coletivas. Numa situação de aluguel, a coisa mais importante é criar condições para controle e auto-gestão coletivos que sejam efetivos e significativos. Propriedade literal não é sempre necessária. Um investidor, no sentido usual, pode também ser alguém com um sentido de propriedade no processo.

  • 2. Torne possível possuir uma casa que a pessoa possa comprar, mesmo se ela for do tipo mais primitivo de moradia. Encoraje o governo a comprometer-se com o financiamento, visto como uma forma saudável de investimento futuro que previne a habitação social de ser destruída por seus habitantes.              

  • 3. Estabeleça um código legislativo estrito de responsabilidade para os residentes. A chave para o sucesso deste tipo de código é que os residentes devem ter um sentido de propriedade em relação ao código. È fundamental que eles participem em sua formulação. Os proprietários podem ser mantidos como os responsáveis pela manutenção do seu ambiente, o que é o mais difícil de conseguir com os que alugam. Já que o suprimento não vai nunca ser suficiente para a demanda, os proprietários podem cuidar de suas habitações.

  • 4. Uma regra observada no urbanismo é que o nível dos serviços providos é proporcional ao nível de regulações e de restrições. As favelas não têm serviços, e não têm regulações. No outro extremo, as comunidades cercadas, de altas rendas, recebem muitos serviços, mas são também altamente reguladas.

A habilidade dos ocupantes em manter suas moradias não pode alcançada através do requerimento de uma autoridade central (com poder suficiente para expulsá-los, caso não cumpram as regras) de que disponham seu tempo trabalhando. “Manutenção” tem que estar conectado com “governança”. Na reurbanização do Columbia Point, em Boston, a companhia de loteamento assinou um contrato que concordava em dividir as responsabilidades de controle do gerenciamento meio a meio com os residentes. O problema tradicional com habitação pública tem sido que as pessoas mantêm a parte interna das suas casas, mas não há uma capacidade coletiva de assumir a responsabilidade pela parte externa. A solução para “o espaço defensável” tem sido o de privatizar ou abandonar as áreas públicas, tanto quanto possível — o que é expresso na geometria do projeto. Isso, no entanto, leva a um crescente isolamento e em mudanças fundamentais, em direção a uma sociedade cada vez mais introvertida.

Um sentido de obrigação

A melhor solução é simplesmente um padrão com uma distinção bem definida entre as esferas públicas e privadas, MAIS uma capacidade coletiva de tomar responsabilidade pelo espaço. Uma parte desta capacidade tem a ver com um desenho que facilite “olhos na rua” (pórticos frontais, janelas, etc.), mas “olhos na rua” tem sentido somente se estiverem respaldados por condições de confiança, reciprocidade e eficácia coletiva. As pessoas tendem a esquecer, freqüentemente, que o bairro de Jane Jacobs funcionava não somente porque as pessoas podiam ver as ruas, mas porque as pessoas possuíam um sentido de obrigação como membros de um tipo de comunidade (Jacobs, 1961). Ela descreveu uma característica do ambiente social que é agora descrito em termos de “capital social”. Isto é como alguém cria um efetivo “código de responsabilidade”. Se você tentar impor isto (como tentam as autoridades que regulam a habitação social), então você gera uma ampliação da recusa, em face da qual nenhum mecanismo de reforço vai funcionar, não importa quanto intrusivo ele seja.                    

A propriedade das moradias parece ser uma boa coisa a ser encorajada, a partir de todas as evidências. No entanto, não é verdade que os moradores não podem ser responsáveis por manterem seu ambiente de entorno. Os proprietários podem ser responsáveis na medida em que eles tenham interesse em suas casas, o que significa que eles são motivados pela preocupação pelo valor de troca incorporado nas suas moradias. Os que alugam também podem ter um envolvimento no lugar, mas somente se as relações sociais envolvidas não estão reduzidas ao frio nexo do dinheiro — isto é, uma quantidade de metros quadrados por uma quantia mensal de aluguel. È possível, (e freqüentemente acontece) que os inquilinos podem construir seus “investimentos” no valor de uso do lugar, dependendo da extensão a qual eles se beneficiam do network específico de relações sociais que definem a vizinhança. (Note-se que a vizinhança de Jane Jacobs não era uma vizinhança de proprietários).

Também é importante incluir uma mistura de oportunidades de aluguel e de compra. Não é todo o mundo que quer se responsabilizar com a incumbência da propriedade de uma casa, e não são todos que tem possibilidade de manter uma casa. Uma das coisas que deveria ser conseguida pela “habitação social” é que os custos cotidianos da moradia fossem socializados, e não somente o preço de compra. Pense sobre a forma como o movimento de co-habitação tem feito a mesma coisa.

Algumas das idéias do movimento de co-habitação devem ser incorporadas para ajudar a garantir a manutenção. Para os que não são familiarizados com o termo, co-habitação refere-se a um conjunto de moradias que dividem a mesma área de terra, e que normalmente inclui compartilhar um prédio para reuniões e refeições em comum — veja o Padrão 37: Conjunto de Casas, em Alexander et al. (1977).  Na nossa experiência, o padrão funciona melhor quando moradores de classe média são relacionados fortemente por crenças religiosas comuns, como nos kibutzim israelenses ou certas seitas cristãs. Por outro lado, ter em comum a pobreza não é, por si só, um fator unificador suficiente!

Versão anterior deste artigo foi apresentada por NAS como uma palestra no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006. Publicado em URBE: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Vol. 3 No. 1 (Janeiro/Junho 2011), páginas 125-136.

Tradução para Português: Lívia Salomão Piccinini.

Bibliografia

  • Christopher Alexander (2001-2005) The Nature of Order: Books One to Four (Center for Environmental Structure, Berkeley, California).
  • Christopher Alexander, S. Ishikawa, M. Silverstein, M. Jacobson, I. Fiksdahl-King & S. Angel (1977) A Pattern Language (Oxford University Press, New York). Edición española (1980) Un lenguaje de patrones (Gustavo Gili, Barcelona).
  • Jane Jacobs (1961) The Death and Life of Great American Cities (Vintage Books, New York). Edición española (2011) Muerte y vida de las grandes ciudades (Capitán Swing, Madrid).

Sobre este autor
Cita: Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy & Ernesto Philibert-Petit. "Estratégias de manutenção para habitação social na América Latina" [Estrategia de mantenimiento para la vivienda social en Latinoamérica] 29 Jul 2019. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/921594/estrategias-de-manutencao-para-habitacao-social-na-america-latina> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.